O Brasil profundo

A grande surpresa das eleições foi a espetacular passagem de Boulos/Erundina para o segundo turno em São Paulo, e a consolidação do PSol como um partido que disputa a liderança na esquerda brasileira com o PT

Guilherme Boulos e Luiza Erundina
Guilherme Boulos e Luiza Erundina (Foto: Reprodução/Facebook)


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Por Valério Arcary

(Publicano no site A Terra é Redonda)

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Bolsonaro não conseguiu erguer a Aliança pelo Brasil, seus apoiadores usaram várias legendas de aluguel, só se manifestou na reta final, mas saiu enfraquecido das eleições municipais. Não foi moído, esmagado, mas saiu ferido. Mesmo com o fortalecimento do Centrão governista, que cresceu em média 30%, porém não conquistou nenhuma cidade importante. As eleições confirmaram que, ao longo deste ano, apesar de oscilações, no contexto da pandemia, prevalece uma lento, porém, ininterrupto desgaste do governo Bolsonaro.

O Bloco da direita liberal PSDB/MDB/DEM perdeu um terço dos votos em comparação com 2016 – o MDB perdeu 4 milhões de votos, o PSDB perdeu sete milhões, e o DEM ganhou três milhões – mas essa derrota é compensada porque venceu em Salvador, Curitiba e Florianópolis, e disputa o segundo turno em São Paulo, e Rio de Janeiro. Além de arrastar para sua articulação das presidenciais de 2022 com Doria, Moro e Huck, provavelmente, Belo Horizonte, embora Kalil seja do PSD de Kassab. O bloco PDT/PSB/Cidadania, liderado por Ciro Gomes com um projeto nacional desenvolvimentista, conseguiu levar seus candidatos para o segundo turno em Recife e Fortaleza, mas não conquistou posições no sudeste com a eliminação de Márcio França em São Paulo e Marta Rocha no Rio. Portanto não saiu do lugar, relativamente, secundário que ocupa de uma centro-esquerda.

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O fato crucial para o PT foi não ter ido pela primeira vez para o segundo turno em São Paulo desde 1992. Mas, se considerarmos que 2016 foi o ano terrível do impeachment, e que depois o PT levou Haddad ao segundo turno em 2018, e calibrando que, em escala nacional, disputa Recife e Vitória, além de duas dezenas de cidades importantes, manteve posições, com viés de recuperação. O PC do B perdeu 40% dos seus votos, não elegeu vereadores em Sâo Paulo, Rio e Belo Horizonte, mas levou Manuela D’Ávila ao segundo turno em Porto Alegre, uma façanha eleitoral. O PSol conheceu a maior vitória política e eleitoral de sua história, com um resultado espetacular com Boulos na cidade chave do triângulo estratégico do Sudeste, e garantindo outra vez Edmilson Rodrigues em Belém do Pará. Aumentou de 53 para 75 vereadores, em especial, nas grandes capitais, se transformando na força mais dinâmica da esquerda do país.

As eleições de 2020 eram somente eleições locais e isso pode levar a um erro de perspectiva. Os mapas nacionais são interessantes para comparar a dinâmica evolutiva ao longo dos anos. Mas sempre introduzem uma ilusão de ótica. Por exemplo, comparar o nº total de prefeitos de cada partido que foram eleitos, ou vereadores este ano com 2016. Esta chave de análise não considera que a extrema-direita devorou o PSDB/MDB/DEM com Bolsonaro. O exercício mais produtivo é comparar estas eleições, também, com 2018. Acontece que são eleições diferentes, portanto, são necessárias muitas mediações. Boulos no segundo turno vale sozinho por quantos prefeitos de uma vila que é um lugar na vastidão continental do país? Ou um vereador no Rio ou em São Paulo vale por quantos vereadores perdidos nessa imensidão do Brasil?

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O Brasil é um país gigantesco. Não podemos deixar de considerar que o país tem vinte cidades com um milhão ou mais de habitantes, ou quase cem cidades com mais de duzentos mil habitantes. São duzentas cidades com mais de cinquenta mil habitantes. A capilaridade da representação política dos partidos da classe dominante é, incomparavelmente, maior que a da esquerda. As organizações civis que defendem os interesses do capitalismo estão presentes em escala nacional. A esquerda não tem presença nas redes comerciais de rádio e TV. Existe um Brasil profundo. Nesse Brasil profundo as liberdades democráticas são muito limitadas. Ser de esquerda e politicamente ativo na imensa maioria do Brasil rural é muito perigoso.

Se compararmos 2016 com 2020, e considerarmos o bolsonarismo como o núcleo duro da coalizão de extrema-direita que oferece sustentação ao governo Bolsonaro (Republicanos, PSL, Patriotas, PRTB, PSC) dobrou o nº de prefeituras, mas ainda muito pequeno, passando de 244 para 467. Mas se incorporarmos o centrão governista ao bolsonarismo (PSD/Kassab, PP/Ricardo Barros, PL/Artur Lira, PTB/Jefferson, Avante, Solidariedade/Paulinho da Força e PROS) se fortaleceram: evoluíram de 1710 para 2095. Sobrevalorizar esta comparação seria, contudo, um erro. Porque o bolsonarismo raiz foi um fenômeno que explodiu em 2018, e o deslocamento do centrão é sempre incerto. Mais importante, a derrota de Russomano é qualitativa, e o bolsonarismo disputa o segundo turno, mas sem ser favorito no Rio de Janeiro, Fortaleza, Belém, e Vitória.

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A grande surpresa das eleições foi a espetacular passagem de Boulos/Erundina para o segundo turno em São Paulo, e a consolidação do PSol como um partido que disputa a liderança na esquerda brasileira com o PT. Mas esta conclusão legítima pode alimentar ilusões perigosas. O voto no PSol não tem mais o mesmo sentido radical que tinha quando o PT estava no governo. Em outras palavras, não permite concluir que ocorreu uma experiência de ruptura ou mesmo desilusão irreversível com o PT. Mesmo em São Paulo a votação de Boulos/Erundina é maior que o dobro da votação, já por sei mesma espetacular do PSol para vereadores. Portanto, uma mediação na análise é que quem votou PSol para prefeito poderia ter votado PT, se fossem outras as candidaturas. Não foi um voto contra o PT. Foi um voto a favor da melhor candidatura na resistência contra Bolsonaro. Os eleitores escolhem quem são os candidatos que podem cumprir esse papel. Depende muito, portanto, de quem é o candidato. Mas tendo esta referência como uma mediação na análise o PSol se fortaleceu muito. Ainda que menor que o PT, o PSol, o partido de Marielle Franco e do Fora Bolsonaro está em uma posição de força muito superior. Porque convergiram no PSol, também, a expressão de lideranças feministas, negras, LGBTI’s, ambientalistas e jovens, além de candidaturas proletárias, unindo as lutas contras as opressões com a luta contra a exploração, que representam uma poderosa dinâmica de renovação de quadros.

As condições da pandemia tiveram um impacto na abstenção menor do que se esperava, embora não tenha sido irrelevante. O índice de abstenção no primeiro turno das eleições municipais deste ano foi de 23,14%. Ou seja, um comparecimento acima de 76%. Trata-se de um índice muito elevado, quando em comparação com outros países. Nas duas eleições municipais anteriores, a abstenção no primeiro turno foi de 17,58% em 2016 e de 16,41% em 2012. Na eleição mais recente, a presidencial de 2018, a abstenção no primeiro turno ficou em 20,33%. Uma variação quantitativa baixa, portanto, inferior a 5%. As pessoas foram votar. Somente 9,66% anularam ou votaram em branco. Mas em algumas cidades, foi mais elevada a abstenção, como no Rio de Janeiro, de 32,79%, e os votos brancos e nulos somaram 19,23%, superando os 50%. Esse fenômeno ocorreu em outras cidades, também, como São Paulo, dependendo da gravidade do momento da pandemia.

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Bolsonaro sofreu uma derrota eleitoral. A extrema-direita não foi além de 10% em média nas grandes cidades com poucas exceções. Mas é simbólico que em São Paulo Russomano tenha desmoronado e no Rio de Janeiro seu filho tenha perdido um terço dos votos de 2016, além da posição de vereador mais bem votado para Tarcísio Freitas do PSol. Ocorreu, nas grandes cidades, quando em comparação com 2018, um deslocamento de votos da extrema-direita para os três partidos tradicionais da representação da classe dominante, DEM, PSDB e MDB. Mas Bolsonaro era um caudilho sem partido e, embora não tenha tido capacidade de construir uma organização, ou sequer conquistar hegemonia no partido pelo qual se elegeu, ainda mantém uma influência de massas que não é menor, em escala nacional, considerando os interiores, do que algo em torno de 30%.

O ataque cibernético ao sistema do TSE é uma surpresa preocupante, ainda oculta em explicações obscuras. A quem interessava incendiar a desconfiança nas urnas eletrônicas? Somente a setores da extrema direita que têm fixação na denúncia conspirativa de que há fraudes. Mais importante, contudo, é que Bolsonaro se associou ao questionamento da lisura das eleições, ecoando Trump, e sinalizando o que pensa fazer em 2022.

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