O Brasil no contexto dos Golpes do século XXI

Mais uma vez as camadas médias são insufladas por uma mídia com histórico golpista e práticas pouco transparentes. Novamente a OAB se coloca do mesmo lado, buscando agora a 'legalidade' através de um impeachment sem crime de responsabilidade

Mais uma vez as camadas médias são insufladas por uma mídia com histórico golpista e práticas pouco transparentes. Novamente a OAB se coloca do mesmo lado, buscando agora a 'legalidade' através de um impeachment sem crime de responsabilidade
Mais uma vez as camadas médias são insufladas por uma mídia com histórico golpista e práticas pouco transparentes. Novamente a OAB se coloca do mesmo lado, buscando agora a 'legalidade' através de um impeachment sem crime de responsabilidade (Foto: Diego Pautasso)


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Os processos históricos não são dados a coincidências. E como diria o velho filósofo, os grandes personagens e fatos históricos ocorrem duas vezes, "a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa". A crise política que vem se agudizando desde junho de 2013 no Brasil não reflete apenas suas contradições domésticas. Ao contrário, somente é possível compreendê-la à luz das dinâmicas internacionais e das novas formas que assumem os velhos processos.

Cabe rememorar que as ditaduras militares na América Latina entre as décadas de 1960 e 1980 emergiram, sem exceção, profundamente articuladas à dinâmica internacional: Brasil em 1964, Chile em 1973, Argentina e Uruguai em 1976. Ou seja, não é possível entendê-las dissociadas da lógica da Guerra Fria, do patrocínio político-diplomático dos EUA através da Doutrina de Segurança Nacional, da promoção da retórica anti-comunista pela grande mídia e indústria cultural, da instrumentalização dos militares na Escola das Américas no Panamá, etc.

Nesse sentido, a desestabilização interna, com a espiral inflacionária, o denuncismo moralista da corrupção pelos setores conservadores, a paralisia institucional e a crise econômica foram pré-condições construídas para a efetivação dos golpes militares. Já o fim desses regimes também ocorreu no mesmo contexto da virada dos 1980-90, quando estes tornaram-se disfuncionais para os EUA e seus aliados. Com o colapso do bloco soviético, o objetivo era afirmar a agenda liberal a partir das políticas do Consenso de Washington. Não por acaso firmaram-se os governos de Collor-FHC (Brasil), Salinas de Gortari (México), Andrés Pérez (Venezuela), Fujimori (Peru), Menem (Argentina),Sanchéz de Lozada (Bolívia), Sanguinetti (Uruguai), etc.

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As políticas neoliberais recrudesceram as contradições na América Latina ao término da década de 1990. O resultado foi uma virada à esquerda com os governos Chávez-Maduro, Evo, Lula-Dilma, Néstor-Cristina Kirchner, Rafael Correa, etc. Não parece coincidência que todos tenham enfrentado processos de desestabilização importantíssimos tais como aqueles do contexto da Guerra Fria. A Venezuela (2002) teve um golpe, com a tentativa de apresentá-lo como renúncia, que fracassou; enquanto a elite na Bolívia (2008) tentou fragmentar o país com o separatismo da elite da Meia Lua. Em Honduras (2009) e no Paraguai (2012) os golpes foram bem-sucedidos e assumiram a face constitucional. Em Honduras, o Presidente Zelaya chegou a ser expulso do país, em decisão frontalmente contrária à Constituição do país posteriormente anulada pela Corte; enquanto no Paraguai o processo de impeachment foi encaminhado de forma açodada sem o devido processo legal. A tragédia dos golpes na região se repete, mas farsa, assumindo contornos de 'legalidade'.

Como chama a atenção Jessé Souza ao tratar do Brasil, o golpe moderniza-se, substituindo a arma pelo argumento pseudo-jurídico e sua aparente neutralidade. Os endinheirados, que controlam a riqueza, o poder e instrumentalizam a mídia, mobilizam seus recursos para evitar regimes reformistas aproveitando-se da fragilidade institucional para subverter a soberania popular (SOUZA, p. 261). As práticas típicas de Estados de exceção são realizadas sem a interrupção do Estado democrático. Assim, o entrelaçamento de interesses de certas elites latinas é encaminhado e, com efeito, se atropela a soberania popular.

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Já Losurdo destaca que o Ocidente, na sua autodefinição de guardião da consciência moral da humanidade, se acha autorizado a desencadear desestabilizações, golpes de Estado e 'revoluções coloridas', embargos e guerras 'humanitárias' em todos os quadrantes do globo (LOSURDO, 2012, p. 277). O imperialismo cru do século XIX também assume novas formas. A outrora narrativa cínica do 'fardo do homem branco' agora recebe a forma legal e legítima das agressões por meio da retórica da 'intervenção humanitária' e do 'direito de proteger', sob mandato de poderes ampliados autoconcedidos às potências membras do CSNU – ou, no limite, violando suas próprias atribuições.

Seria ingênuo supor que as 'revoluções coloridas' no entorno da Rússia, como a Revolução das Rosas (Geórgia-2003), Laranja (Ucrânia, 2004-14) e das Tulipas (Quirguistão-2005), teriam sido "espontâneas" ou não orientadas pelo ocidente. Moniz Bandeira foi exaustivo ao revelar os grupos criados pelo governo dos EUA como a NationalEndowment for Democracy (NED) e a Agência Internacional para o Desenvolvimento (Usaid), assim como os thinktanks e fundações como FreedomHouse e Open SocietyInstitutevoltados a 'exportar a democracia' (BANDEIRA, 2013, 95). Novos golpes que convergem com a velha política de contenção da Rússia, como destacamos (PAUTASSO, 2014).

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Assim, não se entendem esses processos de desestabilização e golpes do século XXI (ou políticas de regime change como prefere a elite estadunidense) fora do quadro internacional. Da mesma forma, o abandono de conceitos centrais do marxismo, como de imperialismo e luta de classes, fez setores progressistas não entenderem as raízes profundas do golpismo no Brasil. De um lado, os interesses e o poder (imperialista) das grandes potências inspiram e apoiam os grupos que patrocinam o golpe constitucional no país, ansioso por atuar no Pré-Sal; evitar o protagonismo diplomático do país na integração regional, na África e/ou no BRICS; ter acesso privilegiado ao gigantesco mercado doméstico e seus recursos naturais. De outro lado, os conflitos (de classe) que atravessam o aparelho de Estado estão no âmago da crise atual; e as ingênuas noções 'republicanistas' deixaram míope a esquerda brasileira.

Agora como antes repetem-se afirmações alarmistas vindas da direita mais alinhada aos ultraliberais e neoconservadores dos EUA. Em 1964, Jango não era comunista nem corrupto como acusados pelas oligarquias e camadas médias aliadas à UDN. A partir de novembro de 2014, repetem-se mantras no Brasil. Os governos socialdemocratas de Lula-Dilma não são nem bolivariano, nem passível de crítica de moralidade pelo PMDB e seus aliados – silentes diante da sonegação, do financiamento privado de campanha e da corrupção dos partidos tradicionais. Novamente, a moralidade é a retórica para interromper as políticas reformistas e voltar ao seio do Estado e de seus privilégios autoconcedidos.

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Mais uma vez as camadas médias são insufladas por uma mídia com histórico golpista e práticas pouco transparentes. Novamente a OAB se coloca do mesmo lado, buscando agora a 'legalidade' através de um impeachment sem crime de responsabilidade, o que em 1964 buscou-se através do discurso de que Jango teria renunciado e, com efeito, assumido a Junta Militar, conforme a Constituição e mantendo-se funcionamento das instituições (STF, Parlamento, etc.) pelo menos até o AI5 em 1968. Tal como antes, não parece improvável que os grupos líderes das manifestações (Movimento Brasil Livre, Estudantes pela Liberdade, Revoltados Online e Vem pra Rua) tenham apoio externo, como em outros países e em outros contextos (em 1964 o IPES-IBAD). Enfim, a História não é dada a coincidências e mais uma vez veste-secom o manto da farsa. E com isso o Brasil continua sendo o país do futuro a realizar-se...

Bibliografia

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BANDEIRA, Luiz. A Segunda Guerra Fria. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013.

LOSURDO, Domenico. A não-violência. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

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MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

PAUTASSO, Diego. Da política de conteção à reemergência. In:Revista Austral. Vol. 3, nº 6, 2014, pp. 73-94.

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SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2015.

 

 

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