O Brasil de Bolsonaro visto pela literatura

O Brasil atual tem atraído a atenção de vários escritores de outros países, que têm ambientado aqui suas obras mais recentes



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O Brasil atual tem atraído a atenção de vários escritores de outros países, que têm ambientado aqui suas obras mais recentes. O nosso país se tornou uma irresistível fonte de inspiração tanto para autores já consagrados como para os iniciantes,  que vêm buscar aqui matéria para os mais diversos experimentos literários, de peças de teatro a romances, de biografias a ensaios. Apresentamos aqui alguns destes autores e dos livros que estarão em breve disponíveis nas livrarias nacionais.

O conhecido militante LGBT e escritor irlandês Oscar Wilde já tem duas obras publicadas com estórias e personagens brasileiros. Primeiro a peça de teatro A Importância de ser Ernesto – The Importance of Being Earnest, no original inglês – que, devido à pandemia, só recentemente pode estrear. Trata-se de uma comédia sobre um atabalhoado  diplomata brasileiro que, por razões mirabolantes, acaba se tornando Ministro das Relações Exteriores. Este diplomata, um monarquista nefelibata – para usar um vocabulário condizente com a personagem – adora usar as redes sociais para fazer as declarações mais estapafúrdias, causando as maiores confusões com outros países. A peça é engracadíssima e está fazendo um enorme sucesso, com sessões sempre lotadas no St.James Theatre de Londres. 

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Mas foi através de seu romance O Retrato de Deltan Grey – The Picture of Deltan Grey -  que Oscar Wilde tornou-se conhecido internacionalmente. O livro é uma hábil mistura de thriller político, de estudo filosófico e de romance policial. Nele, a personagem  Deltan Grey é um charlatão brasileiro, um golpista consumado que consegue cometer os maiores crimes praticamente à vista de todos sem ser incomodado, graças ao seu retrato – sua imagem pública,  habilmente criada por seus cúmplices na grande imprensa –  que o protege. Deltan Grey deixa um enorme rastro de destruição por onde passa, mas até onde ele ainda poderá ir com  seus crimes, até quando seu retrato continuará a protegê-lo? Perguntas como estas mantém o leitor em suspense, preso até o fim à intricada trama deste instigante romance.

Em Paris, o jovem autor de origem romena Eugène Ionesco está fazendo um grande sucesso com uma outra peça de teatro com um tema brasileiro– Rinocerontes – Rhinocéros em francês. A ação da peça se passa em São Paulo, onde mais e mais pessoas, num processo de desumanização,  se transformam em rinocerontes listrados, como zebras, só que de verde e amarelo. Esta obra é considerada a primeira manifestação de um movimento artístico internacional inteiramente dedicado à expressão do carácter profundo e único do Brasil atual, conhecido como o Teatro do Absurdo. Os rinocerontes listrados de verde e amarelo se multiplicando pela Avenida Paulista é uma das imagens de maior impacto  desta importante obra.

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E na distante e bucólica Áustria, Robert Musil, um dos mais reconhecidos escritores contemporâneos, publicou recentemente um enorme romance que já é visto pela crítica como um marco da literatura do século XXI: O Homem Sem Qualidades – Der Mann ohne Eigenschaften, no original alemão. Nesta obra, Robert Musil criou uma personagem fascinante, um juiz que se declara  defensor das causas mais nobres da sociedade brasileira. Em seu delirio, este juiz recebe o apoio de uma ampla parcela da população  que, aos poucos, porém, vai perdendo suas ilusões na capacidade e nas intenções deste juiz, uma patética personagem que nunca foi mais do que um homem sem qualidades. Nos três volumes que compõe esta obra gigantesca, Musil descreve minuciosamente o processo pelo qual uma grande parte da sociedade é enganada por uma personagem que, no final , se revela vazia. Mas como foi possível um tamanho engano, uma tamanha manipulação? Como foi que um juiz sem nenhuma qualidade se tornou tão poderoso e influente? Este é o tema central de O Homem Sem Qualidades, obra fundamental para a compreensão do Brasil de hoje.

Mas não é só a Europa que tem os olhos voltados para o Brasil. O vizinho Uruguai revelou um imenso escritor, Juan Carlos Onetti, autor de uma impressionante  biografia de um presidente do Brasil intitulada Juntacadáveres.  É um livro duro, de leitura difícil, sufocante, chocante ao expôr as mais contundentes verdades sobre o Brasil e sua tortuosa história recente e impiedoso com quem lê, pois Onetti mostra com muita lucidez quantos pequenos juntacadáveres são necessários para levar o país à situação atual e muitos reconhecerão sua parcela de responsabilidade ao ler a magistral obra de Onetti.

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De todos os autores estrangeiros que escreveram sobre o Brasil, porém, o mais conhecido é sem nenhuma dúvida o russo Fiódor Dostoievski. Por ocasião do lançamento recente em São Petersburgo do seu novo romance Os Demônios, realizamos com este autor uma pequena entrevista pela internet que segue abaixo.

- Fiódor, muito obrigado por nos conceder esta entrevista. Como não dispomos de muito tempo, vou direto para a nossa primeira pergunta: as leitoras e os leitores do Brasil gostariam de saber o que levou um escritor russo a se interessar pelo Brasil? 

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- Na verdade eu não sou o primeiro escritor russo a escrever sobre o Brasil. Antes de mim,  Nikolai Gogol escreveu este extraordinário romance sobre a oligarquia  brasileira que é  Almas Mortas. Eu tenho uma enorme admiração pelo Gogol e foi ele quem me fez ver a importância do Brasil para a criação literária. Daí muitas das minhas estórias se passarem no Brasil com personagens brasileiros.

- Você poderia nos falar um pouco sobre o este seu novo romance que acaba de ser publicado na Rússia?

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- Sem entrar em detalhes que possam estragar as surpresas da leitura, posso dizer que a estória de Os Demônios se baseia em grande parte em acontecimentos recentes no Brasil, quando pelas redes sociais e nas ruas começaram movimentos de difusão de  ódio e intolerância. Os demônios do título são todas estas pessoas que, cheias de arrogância e de uma  convicção doentia da própria  imaculada pureza, cometem as maiores atrocidades, perseguem a comunidade LGBT, os povos indígenas, os militantes pelos direitos humanos , os defensores do meio ambiente, etc. No meu romance, o Brasil é um país onde os demônios não apenas estão à solta mas estão no próprio governo.

- E você pretende continuar a escrever sobre o Brasil?  Já tem planos para um próximo romance?

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- Sim, já estou trabalhando no meu novo projeto, um livro de ficção cientítifca também ambientado no Brasil. Para este novo livro eu parti da hipótese  de que nada mudará no Brasil, que o governo atual continuará até as eleições de 2022. Imaginei então um brasileiro narrando suas memórias no Brasil de 2023.

- Este seu novo livro já tem um título?

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- Recordações da Casa dos Mortos.

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Todos os autores citados acima bem como os títulos dos livros são reais. Fiz apenas uma pequena modificação no título do conhecido romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Grey - The Picture of Dorian Grey , de 1891.The Importance of being Earnest estreou  em 14 de fevereiro de 1895 no St.James Theater em  Londres e, claro,  não tem nada a ver com diplomatas brasileiros.

Oscar Wilde (1854-1900) certamente não seria bem visto pelos bolsonaristas e seus livros sempre ainda podem ser censurados, portanto quem quiser lê-los é bom se apressar....

A peça Rhinocéros de Eugène Ionesco (1909 – 1994) foi montada primeiro na Alemanha em 1959, a seguir em Janeiro de 1960 na França sob a direçâo de Jean-Louis Barrault. Em abril do mesmo ano a peça foi montada em Londres , com  direção de Orson Welles e Laurence Olivier no papel principal. É uma obra emblemática do ‘Teatro do Absurdo’ e uma das criações mais conhecidas de Ionesco. A peça é sobre uma epidemia de ‘rinocerite’ que apavora os habitantes de uma pequena cidade e os transforma em rinocerontes que não tem listras verdes e amarelas. Mas como todos sabem, no Brasil os rinocerontes são sim listrados de verde e amarelo.O Homem sem Qualidades de Robert Musil (1880 – 1942) foi publicado em três volumes em 1930 e é considerado uma das grandes obras literárias do século XX.

O russo Fiódor Dostoievski (1821-1881) é um dos maiores escritores de todos os tempos. Os Demônios foi publicado em 1872 e é um painel do pensamento social, político, filosófico e religioso da Rússia do século XIX, bem como um dos maiores romances deste autor. Recordações da Casa dos Mortos, de 1862, é em parte um relato autobiográfico dos anos que Dostoievski passou na prisão na Sibéria. Seu contemporâneo e grande rival Leon Tolstói considerava Recordações da Casa dos Mortos uma das maiores obras da literatura russa de seu tempo.

Juan Carlos Onetti (1909 – 1994) é considerado não apenas o maior escritor uruguaio, mas um dos mais importantes escritores da língua espanhola do século XX. Juntacadáveres foi publicado em 1964, ano do golpe militar no Brasil, o que foi apenas uma coincidência. Mas como título para uma eventual biografia do atual presidente da República me parece bem apropriado. Fica  a sugestão.

                                                                                                  Franklin Frederick

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