O bom selvagem
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Graças a Deus é sexta-feira. Sextou, suspira o cidadão comum deixando o resto da marmita na pia, as roupas sujas no cesto, correndo ao banho, cantarolando, caprichando no visual antes de sair para a balada na arte do encontro. Ufa, sexta-feira e a noite é uma criança, se pode brincar, soltar as frangas, comer, beber, dançar e não parar. Se não gosta de baladas ou carnaval, tudo bem. Entretanto, na segunda brava... o brasileiro cordial levanta-se com o despertador a sorrir para a rotina.
Sexta-feira também é o nome do escravo do romance de Daniel Delfoe, de 1719, que conta do náufrago e de uma ilha situada na costa do Chile. O aborígene submete-se à servidão.
Em 1492, ao invadir as terras de nosso continente a serviço de reis católicos, Cristóvão Colombo dizia que tinha “descoberto um paraíso na terra”. Em referência à terra apossada deu-se ao toponímico o primeiro nome do explorador Américo Vespúcio, América, que não é nome da mãe dele, hein.
No século XIX a hegemonia é inglesa, senhora dos mares, a Inglaterra em busca de tesouros e portos – a era dos descobrimentos se completara, mas o domínio, a desaculturação e espoliação continuavam. Não faltam livros de aventuras como os de Delfoe sobre a busca de tesouros em novos mundos e estamos nessa rota. O jovem Robinson Crusoé vê o mundo como coisa a ser conquistada, selvagem, e a sua religião imposta como a verdadeira.
Jean Jacques Rosseau expõe o mito do bom selvagem como o ser puro e inocente em seu estado natural, mas que pode ser corrompido pela sociedade. Em estado puro, seria um homem numa ilha de tantos contos ingleses, que não incomodasse a lavra de seu ouro, o esbulho de suas roças, o defloramento de suas filhas, submisso, numa “exploração consentida”.
A ideia dos europeus era de selvagens sem a alma branca, passíveis de domesticação, carregadores de toras ao navio, corpos nus morenos, belos e disponíveis, o paraíso de mil virgens a serem defloradas, de ingênuos sobre um chão do El dourado, obsessão branca por ouro e esmeraldas.
A concepção de indígena incivilizado ainda persiste na mente ignorante do senso comum ou na má fé dos expropriadores da reserva deles. Ainda hoje, se pensa que os vinte mil garimpeiros na reserva ianomâmi estão lá “ajudando” os indígenas que não gostam da bateia, que os tais nativos são vagabundos ou terceirizam o envenenamento de seus próprios rios e roças para ficar nas redes descansando.
As chacinas mais recentes contra os Krenak e Ianomâmi são as mesmas que os bandeirantes faziam e não se noticiava, mas se enaltecia, se mentia. Nossos indígenas não são mais “bons selvagens” se é que foram, reagem, formam associações, organizam-se nas aldeias, estudam nas malocas, têm intelectuais publicando obras literárias, conhecem a mídia e semiótica, entram na política e lutam pelo que lhes resta, mantendo a floresta em pé.
Esses povos não se submetem voluntariamente como o Sexta-feira do romance de Delfoe.
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