O Bicentenário da Independência sequestrado e a soberania popular ultrajada, à sombra da Ditadura Militar

É chegada a hora do Brasil romper com a sua longa tradição histórica despótica

(Foto: Reprodução / @DefesaGovBr)


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Luiz Carlos Villalta

Em várias peças publicitárias do Governo Federal, já se vê a Comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil. 

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Infelizmente, a efeméride coincide com um cenário político que guarda similitudes com o do Sesquicentenário da Independência: se em 1972, havia uma terrível Ditadura Militar-Civil, hoje, em 2022, vivemos sob ameaças à democracia, em boa parte oriundas de segmentos que detêm o comando das Forças Armadas brasileiras e, quase sempre, irradiadas pelo comandante em chefe destas últimas, Jair Messias Bolsonaro, Presidente do Brasil. Não por acaso, trata-se de um capitão reformado do Exército, guindado ao posto máximo da República por meio de um processo eleitoral marcado por manipulação judicial, que, na semana passada, foi condenada pelas Nações Unidas.

Na propaganda do Bicentenário da Independência, há uma peça chancelada pelo Ministério da Defesa. Como seria de se esperar, após enaltecer as Forças Armadas, ela se encerra, em tom grandiloquente, com as seguintes palavras: “2022, ano do Bicentenário da Independência. Nenhum valor é maior do que a nossa liberdade. Nenhum ideal é maior que a nossa soberania. PÁTRIA AMADA BRASIL. GOVERNO FEDERAL”. Tais palavras têm como pano de fundo as imagens do Almirante Tamandaré, Patrono da Marinha do Brasil; do Duque de Caxias, Patrono do Exército Brasileiro; e de Eduardo Gomes, Marechal do Ar, Patrono da Força Aérea Brasileira; sucedidos pela do quadro “Independência ou Morte” (1888), de Pedro Américo e, depois, pela marca de propaganda do atual governo federal (https://youtu.be/KqeQoKIw6Wk). Essa junção entre palavras e imagens produz um sentido ideológico evidente (e evidente porque, como ocorre frequentemente com os discursos ideológicos, não é enunciado por palavras): liberdade tem por sinônimo soberania; e soberania, por sua vez, se confunde com as Forças Armadas. Essa operação discursiva encerra duas ameaças à nação e ao povo que a constitui, ao retirar-lhes dois de seus atributos fundamentais: a soberania e a liberdade.Outra peça publicitária patrocinada pelo Governo Federal vem com o lema “Bem-vindos ao Bicentenário da Independência do Brasil” (https://youtu.be/6OSAXlDaPV8). Ela traz a logomarca que registra “Bicentenário da Independência do Brasil (1822-2002)” e que tem, ao centro, a imagem de um fragmento de uma espada. Mais eloquente do que a anterior, ela começa aparentemente noutra linha política, falando em “Liberdade para cada Brasileiro”. Todavia, a ilusão logo cessa quando se consideram as imagens que acompanham tais palavras e que, com isso, demarcam quais são os brasileiros concebidos como detentores do direito à liberdade: eles se resumem aos partidários de Jair Bolsonaro. Assim, primeiramente, num plano geral, vê-se a Avenida Paulista, lotada de manifestantes vestidos de verde e amarelo e, em seguida, em plano americano, visualizam-se alguns manifestantes, homens e mulheres, com os mesmos trajes, um deles, ao fundo, levantando uma pequena faixa de papel em que se lê: “Queremos voto impresso”, bandeira, que, como se sabe, é insistentemente defendida pelo presidente da república e por seus apoiadores, fardados ou não. Em seguida, em uma sucessão de planos gerais que trazem imagens de nossas supostas grandezas naturais e/ou geográficas (rios e aves) e de políticas governamentais (conjuntos habitacionais e grandes obras), registra-se: “SOBERANIA PARA NOSSA NAÇÃO. INDEPENDÊNCIA PARA TODOS. QUE 2022 SEJA UM ANO DE MUITO TRABALHO, UNIÃO E ALEGRIA EM FAMÍLIA PARA CADA BRASILEIRO”. Estas palavras trazem outro sujeito reconhecido e exaltado pelo discurso político governamental: a família. A família, como se sabe, a família do bolsonarismo, é família ideológica. É família ideológica porque, na própria peça publicitária, ela é associada apenas a trabalho, à união e à alegria, idealização que está bem longe da realidade produzida pelo governo Bolsonaro, realidade de desemprego, de conflitos e de mortes (em alguns casos, com certeza, resultantes de uma política sanitária genocida). É uma família ideológica também por causa da concepção sobre sua composição, algo não visto na peça publicitária em questão, mas continuamente repetido pelo governo e por seus pastores neopentecostais: uma família exclusivamente composta por pai, mãe e filhos, a família nuclear. Tal composição, ressalte-se, oculta a multiplicidade das organizações familiares existentes em nossa sociedade, ao longo da nossa história, desde o período colonial, quando, ao lado das famílias extensas, que iam dos patriarcas à sua escravaria, passando por toda a sua parentela, havia, por exemplo, famílias chefiadas por mulheres, muitas vezes solteiras, com filhos, de pais ausentes ou incógnitos. Se a propaganda governamental em questão se encerra com uma saudação de boas-vindas – “BEM-VINDOS AO ANO DO BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL” –, este texto, leitor e leitora, traz a seguinte advertência: “A História do Brasil e a memória histórica nacional estão sendo vítimas de mais um sequestro protagonizado pelo Governo Federal! Tal pesadelo, para além de histórico, é político: a ditadura bate às nossas portas – e exige continência!”.

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Desde 2016, as Forças Armadas, por intermédio de suas lideranças, vêm ampliando sua atuação política e sua participação em cargos de governo, já há muito girando na casa do milhar. Há indícios de que participaram das articulações que levaram à derrubada da Presidenta Dilma Roussef, cuja Comissão da Verdade acendeu o farol vermelho entre as altas patentes. Estiveram por detrás das iniciativas abusivas e ilegais do “juiz da roça”, não por acaso objeto de homenagens e condecorações militares, manobras judiciais condenadas na semana passada pelas Nações Unidas, que cobraram do governo brasileiro medidas reparatórias para o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, cujos direitos foram violados, inclusive o de candidatar-se à presidência em 2018. Jair Bolsonaro, em cerimônia pública, agradeceu, por sinal, ao General Vilas-Boas pela ajuda que dele recebeu para chegar à Presidência da República naquele ano. 

Nas últimas semanas, a ousadia das altas patentes, das três Forças, ultrapassou todas as fronteiras do decoro aparente: depois dos escândalos de compras das famosas pílulas azuis e de próteses penianas (ah, psicanalistas do estrangeiro devem estar a divertir-se com isso, fazendo ilações sobre poderios!), envolveu o apoio explícito ao vergonhoso indulto presidencial a um criminoso condenado pelo STF e, mais, questionamentos ao processo eleitoral, que denotam uma posição prévia de não aceitá-lo caso o candidato vitorioso não seja o “capitão”. Em tudo isso, não há senão uma compreensão e um anseio: as Forças Armadas são forças tutelares da Nação, ou, em outras palavras, a Nação não detém a soberania plena!

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Essa compreensão e esse anseio, registre-se, fundam-se em nossa história pregressa e numa leitura da Constituição de 1988 já refutada pelo Supremo Tribunal Federal. Da história pregressa, vêm as repetidas afrontas à ordem constitucional e legal por parte das Forças Armadas, afrontas essas iniciadas com o Golpe Militar de 15 de novembro de 1889, que derrubou o Imperador d. Pedro II, e perpetuadas pelos sucessivos golpes de Estado vistos em nossa tristíssima história republicana, tão ou mais cruel que nossa história imperial. Da Constituição de 1988, vem o famigerado artigo 142, que diz:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (itálicos meus).

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Na interpretação de muitos membros das FFAA, tal artigo lhes dá o direito de interferir na política nacional, de constituir-se como uma espécie de quarto poder, o que é refutado pelo STF. Como o texto é ambíguo (o que se vê no trecho em itálico), convém às forças democráticas brasileiras lutar por sua supressão, pura e simples, mediante a respectiva aprovação pelo Congresso Nacional.

Entretanto, mais do que isso, cumpre às forças democráticas atentar para a disputa política e pela memória que se avizinha em torno do Bicentenário da Independência. Do contrário, veremos, em primeiro lugar, o mesmo pesadelo ocorrido em 1972 e, ainda, em 2016, quando a Comissão da Verdade foi sepultada, senão na prática, ao menos simbolicamente, quando um deputado saudou um militar, célebre torturador e psicopata da Ditadura Militar, ao pronunciar seu voto favorável à derrubada de Dilma Roussef, significativamente, vítima de tortura. Do contrário, além disso, aceitaremos um princípio político, bem como sua materialização, o princípio nefasto segundo o qual as Forças Armadas são forças tutelares da Nação, compartilhando com ela a soberania.A Independência do Brasil (1822-1824) teve como ponto central a questão da soberania. O governo federal espertamente o percebeu. Não se trata, aqui, do senso comum, segundo o qual a Independência foi o momento em que o Brasil firmou sua soberania em relação a Portugal, que estaria a ameaçá-lo. Ou mesmo de uma compreensão um pouco mais específica, segundo a qual a Independência do Brasil teve como um de seus motivos principais a não aceitação, pelas Cortes Constituintes de Lisboa, de um compartilhamento de poder entre a capital portuguesa e o Rio de Janeiro, Corte desde a chegada da família real em 1808. Mais do que isso, na Independência do Brasil, ocorrida entre 1822 e 1824, o que se viu foi o confronto entre duas ideias de soberania. De um lado, havia a compreensão das Cortes Constituintes de Lisboa, para quem a soberania residia na Nação. De outro lado, havia a concepção de que a soberania seria compartilhada pelo rei e pela nação – e tal concepção era defendida pelo rei d. João VI e por seu filho, d. Pedro, o príncipe regente do Reino do Brasil. Como os reis da época da nossa Independência, as Forças Armadas, hoje (e, na verdade, desde muito tempo), sustentam que a nação não detém integralmente a soberania, mas a compartilha com elas!D. João VI, assim que chegou em Portugal em 1821, contrapôs-se ao princípio segundo o qual a soberania residia unicamente na nação. Por essa razão, o rei foi censurado pelos constituintes. Na sessão das Cortes Constituintes de Lisboa, de 9 de julho de 1821, deu-se a leitura de um discurso de d. João, já devidamente censurado pelos deputados, mas que, mesmo assim mereceu críticas de um constituinte, por causa das ideias “equívocas a respeito da soberania. Esta Assembleia reconheceu que a soberania existe na Nação; e no discurso acho uma ideia complexa, que julgo difere tanto destes princípios”.D. Pedro, por sua vez, recusava a aceitar as Cortes Constituintes de Lisboa, formada por deputados eleitos para fazer uma Constituição para o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, como o órgão que exprimia a soberania da nação portuguesa (que englobava os “brasileiros”), rejeitando por isso suas determinações (em alguns casos prejudiciais a grupos e instituições do Brasil, nomeadamente do Rio de Janeiro). Em 1º de dezembro de 1822, já depois de rompido o Reino Unido e declarada a Independência do Brasil, dia de sua coroação como imperador, D. Pedro I, “diante do povo, de uma das janelas do paço da Cidade, assim falou: ‘Juro defender a Constituição que está para ser feita, se for digna do Brasil e de mim’”. Em 12 de novembro de 1823, d. Pedro I fechou a assembleia constituinte, por julgar que o projeto de constituição ali em elaboração afrontava suas prerrogativas como monarca e, mais do que isso, como um dos detentores da soberania. Em 25 de março de 1824, d. Pedro I viria a impor uma Constituição ao Império nascente.

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As lideranças e grupos de várias províncias do Reino do Brasil, em muitos casos sem o perceber e/ou sem o querer, por vezes sob a força das armas, vieram a apoiar essa Independência do Brasil que traduzia uma ideia de soberania compartilhada, entre nação e rei. Agora, em 2022, ficam os alertas: vamos celebrar acriticamente o Bicentenário da Independência, sem levarmos em consideração que ideia de soberania ela consagrou? Vamos, ainda, deixar que a comemoração do Bicentenário consagre uma ideia de soberania compartilhada, agora não mais pela nação e por seu monarca, mas por nação e Forças Armadas? Vamos deixar que essas mesmas Forças decidam quem pode ou não ser eleito Presidente da República? Vamos delegar a Jair Bolsonaro a soberania que nos pertence, permitindo-lhe decidir se as eleições são válidas ou não? É chegada a hora da nação brasileira afirmar, altaneira, sua soberania e sua memória histórica! É chegada a hora do Brasil romper com a sua longa tradição histórica despótica, evitando que, em futuro próximo, o Presidente da República, apoiado por seus fardados, venha outorgar uma Constituição “digna” dele(s), com isso afrontando a soberania nacional e imitando, de forma grotesca, trágica e mesquinha, nosso primeiro imperador, um personagem indubitavelmente fascinante, ainda que autoritário.

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