O bem-estar social e a Reforma da Previdência

Alterar regras de acesso aos direitos sociais não é por si só impossível. Mas quando se vislumbra nas entrelinhas da proposta um desejo incontido de prejudicar severamente os mais pobres e, simultaneamente, beneficiar os grandes capitalistas financeiros do país, é inaceitável, por desumanidade compulsiva

O bem-estar social e a Reforma da Previdência
O bem-estar social e a Reforma da Previdência (Foto: Sérgio Moraes - Reuters)


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*Texto publicado com Alencar Ferreira, Mestre em Economia, ex-Superintendente do Iprem-SP, ex Secretário Executivo do Ministério do Trabalho e Emprego

Nada mais adjeto, repugnante, indecoroso, abominável, entre outros adjetivos cabíveis e impublicáveis, sobre a decisão do Presidente Jair Bolsonaro em comemorar o golpe de Estado de 1964, que derrubou o Presidente João Goulart do poder; exatamente, no ano em que se celebra o centenário do seu nascimento.

Jango morto no exílio, e longe de sua pátria e de seu povo.

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As calúnias, injúrias e as mais atrozes mentiras voltam a se avolumar contra a biografia do Presidente golpeado.

O tuiteiro Presidente ou Presidente tuiteiro deve comportar-se, dignamente, com o Estado Democrático de Direito, além dos princípios da Administração Pública como determina o Decreto 4.081, de 11 de janeiro de 2002, que Institui o Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República, em seu artigo 4º, item I: “... pautar-se pelos princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, moralidade e probidade.”

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Ordenar a comemoração de uma das páginas mais vergonhosas e infames da História brasileira é agredir a memória daqueles que lutaram pela democracia; aos que sofreram no pau-de-arara e nos crimes cometidos contra a humanidade.

Um ataque a nossa própria democracia, em um mundo que tem repulsa por ditaduras e golpes de Estado.

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Contrariamente às infâmias e inverdades cometidas sobre a pessoa e o governo de João Goulart – de que era comunista – isto é uma mentira; e se também o fosse, não seria desonra nenhuma. Jango nunca envergonhou sua pátria e sempre teve projeto de desenvolvimento nacional e pensou no trabalhador brasileiro.

João Goulart, ao contrário do que vivenciamos atualmente, teve um projeto de nação; um projeto de desenvolvimento nacional e industrial para o país; um projeto educacional, com o revolucionário método Paulo Freire, a fim de combater o analfabetismo brasileiro; um projeto agrário, quando criou a SUPRA e desapropriou duas, de suas próprias fazendas, para incentivar o pequeno produtor rural; um projeto estruturante de reformas de base; e não de subserviência e mendicância ao mercado estrangeiro.

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Homenagem ao golpe de 64 e reverenciamento aos criminosos torturadores são uma desonra à memória dos mortos e desaparecidos que lutaram contra a ditadura.

Desviar o foco da população com um tema tão assombroso da história brasileira, para aprovação de medidas que afrontam o trabalhador brasileiro, não é digno de um ocupante do posto mais alto de nossa nação.

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Jango foi golpeado sim, mas com certeza, muito mais pelos seus acertos do que pelos seus erros, e jamais, durante sua trajetória política, foi na contramão do trabalhador brasileiro. 

Porquanto, golpe não se comemora. Repudia-se.

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O filme Os Fuzis, direção de Ruy Guerra, de 1964, obra-prima do Cinema Novo, mostra em seu enredo a mobilização de uma tropa de milicianos por um Coronel local a fim de defender o armazém de mantimentos da invasão de uma legião de famélicos, que, sem política ou ideologia, estavam à beira da dignidade humana. Tais cenas, que se repetiram no Brasil real até o início dos anos 1980, mostravam a dura realidade social brasileira jogando uma legião de seres humanos maltratados pela seca e por suas condições materiais para o limite da condição humana.

Por que situações como as descritas no filme não mais acontecem no Brasil da década de 1980 pra cá? Certamente não se devem às condições climáticas ou de empobrecimento de nosso povo.

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A Constituição de 1988 erigiu, no seu artigo 194, o Sistema de Seguridade Social, integrando e articulando a Assistência Social, a Saúde e a Previdência; no artigo 195 as fontes de receitas que financiariam este Sistema, com contribuições previdenciárias e sociais (CSLL, PIS, Cofins e outros).

Os pilares Previdência e Assistência Social, são responsáveis hoje pela manutenção da renda de mais de 35 milhões de pessoas; 2/3 destes recebendo um salário mínimo de benefício. Na previdência rural, 99% dos benefícios são de até 1 salário mínimo, na Assistência Social 100% deles. Houve uma mudança no status social dos idosos do país e estes benefícios estão longe de atingirem o patamar de privilégios.

Estes benefícios sustentam a renda dos mais velhos e de suas famílias, geram renda nas comunidades e movimentam a economia dos Municípios. Segundo dados da Secretaria de Previdência/ME, em 2013, 70% dos Municípios brasileiros receberam mais de repasses da Previdência e Assistência Social que os repasses federais Constitucionais do Fundo de Participação dos Municípios-FPM.

Na Previdência Social urbana, com 20,5 milhões de benefícios, tivemos superávit das contas de 2009 até o ano 2015, a partir daí com a crise econômica financeira mundial que se arrasta desde 2008, as pautas bombas apresentadas pela oposição, as dificuldades políticas enfrentadas pela Presidenta Dilma e o Golpe de 2016, tivemos aumento do desemprego, diminuição da demanda efetiva e consequente diminuição da base de arrecadação das empresas. Esses fatores, conjuntamente com a elevação dos subsídios e isenções aprovados pelo Congresso Nacional explicam a performance das contas da Previdência Social urbana de 2016 a 2018.

A PEC 06/2019 ataca direitos dos velhos e pobres com a mudança das regras para concessão dos benefícios assistenciais para idosos muito pobres do Benefício de Prestação Continuada-BPC; ataca direitos dos trabalhadores rurais, desconhecendo a realidade econômica e de elevada precarização das relações no campo, ao exigir a elevação da contribuição mínima de 15 para 20 anos; altera as regras especiais de professores e policiais civis e militares; acaba com a aposentadoria por tempo de contribuição, desprezando a regra 85/95 (hoje 86/96) que tem a virtude de capturar as desiguais características do mercado de trabalho brasileiro, onde normalmente os mais pobres começam a trabalhar mais cedo, em empregos precarizados, de menor remuneração e informais.

Por outro lado, a PEC 06/19 prevê em seu artigo 201-A a mudança de modelo Previdenciário para o Regime de Capitalização individual, que só tem ocorrência no Chile, a partir de 1981. Aliás, é interessante que o modelo ultraliberal só tenha sido implementado pelos “Chicago Boys”  na Ditadura sanguinária de Pinochet. Ideias fora do lugar.

Para avaliarmos bons modelos de Previdência, devemos olha-los no longo prazo. Todo aquele que a pensa no curto prazo, erra ao focar no fluxo  de caixa e não enxerga o movimento intergeracional. Estamos prestes a completar 40 anos da reforma ultraliberal no Chile, portanto período adequado para analisarmos seus méritos, e o que vemos é um sistema com 80% dos beneficiários recebendo até 1 SM e 45% deles com rendimento abaixo da linha de pobreza. Um sistema gerido por grandes fundos de investimentos americanos (MetLife, Principal, Prudential), que investem 40% dos recursos fora do país e que mantém rentabilidade média sobre o patrimônio líquido de mais de  25%.

O artigo 201-A da PEC 06/19 quer implantar este modelo aqui. Nas palavras do Ministro Paulo Guedes, economizar R$ 1 trilhão para mudar o modelo”.

Na verdade, mutilar um modelo que com todas dificuldades financeiras, de gestão ou de controles que possa ter, fez sumir da conjuntura política brasileira as cenas de Os Fuzis. O Sistema de Seguridade Social inscrito nos artigos 194 e 195 da Constituição Federal de 1988 é o que conseguimos construir de um estado de bem estar social; sua destruição terá consequências irremediáveis do ponto de vista social, político e econômico.

A solução possível e necessária passa pela reformulação de sua estratégia de financiamento, com uma reforma tributária que tribute dividendos e elimine a aberração da distribuição de Juros sobre Capital Próprio, além de dar progressividade efetiva ao Imposto sobre Heranças e Doações (ITCMD). Além disso, eliminar as desonerações da folha de pagamento e calibrar as alíquotas dos regimes especiais.

Alterar regras de acesso aos direitos sociais não é por si só impossível. Mas quando se vislumbra nas entrelinhas da proposta um desejo incontido de prejudicar severamente os mais pobres e, simultaneamente, beneficiar os grandes capitalistas financeiros do país, é inaceitável, por desumanidade compulsiva.

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