O belicista-mor retrata Trump como um hippie pacifista

O livro de Bolton atirou Trump na lona, mas seu cáustico relato pode, ao final, levantar o líder caído antes do próximo round das eleições

(Foto: Reuters)


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Um belicista profissional se torna o queridinho dos liberais de limusine só porque está ridicularizando o presidente dos Estados Unidos. 

O labiríntico espetáculo que atualmente se desenrola nos sacrossantos salões do Império merece ser comparado ao enredo mais demente do mundo da luta livre profissional - já que tudo que se refere a  Donald Trump tem que ser entendido como um acúmulo de enredos de telecatch. Aqui temos o ex-consultor de segurança nacional John Bolton no papel de O Coveiro, enquanto Trump tenta brilhar como O Rochedo.    

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No entanto, quando olhamos em resolução 4 K para a figura da suposta liderança do governo dos Estados Unidos mais suas extensões no Beltway, atoladas em um pântano cheio de víboras traiçoeiras, a luta mais parece uma briga patética de unhadas e puxões de cabelo.

O consultor da Casa Branca para assuntos de comércio Peter Navarro - um demonizador hidrófobo da China - foi quem descreveu melhor as intenções de John Bolton em seu livro supostamente revelador, negociado com uma editora por dois milhões de dólares: a pornovingança do pântano Distrito de Colúmbia. 

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As memórias de 592 páginas de Bolton, a serem lançadas na próxima terça-feira, foram convenientemente vazadas pela Simon & Schuster para o New York Times e o Washington Post, e um trecho foi publicado pelo Wall Street Journal. 

Bolton escreveu: "Um presidente não pode fazer mal uso dos poderes legítimos do governo da nação, definindo seus próprios interesses pessoais como sendo sinônimos do interesse nacional, nem inventar pretextos para mascarar interesses pessoais sob o disfarce do interesse nacional". 

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Um picareta do New York Times escreveu: "Mr. Bolton tentou usar seus dezessete meses na Casa Branca para alcançar objetivos políticos que eram importantes para ele próprio [os itálicos são meus], como por exemplo, retirar os Estados Unidos de uma série de acordos internacionais que ele considerava falhos, tais como o acordo nuclear com o Irã, o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário e outros".

Então, um belicista certificado - com folha corrida fartamente documentada - pode, impunemente, "alcançar objetivos políticos importantes para ele mesmo e, ao mesmo tempo, acusar o Presidente de igualar seus "próprios interesses pessoais com o interesse nacional". 

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O que realmente importa aqui para quem se descreve como um jornal factual e confiável parece ser a singular oportunidade de citar livremente uma fonte privilegiada cuja exatidão simplesmente não pode ser checada. O fato de Bolton, como fonte, não ser mais confiável que um boateiro qualquer do pântano Distrito de Colúmbia? Isso é convenientemente varrido para baixo do tapete. 

O Washington Post, de sua parte, gabou-se de que essa é, até o presente momento, "a dissecção mais substantiva e mais crítica de um presidente partindo de um integrante do governo", que retrata Trump como um "comandante em chefe errático e surpreendentemente desinformado". 

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O Post também confia na palavra de Bolton quando este diz que Trump age com base em "instinto pessoal" e o descreve como "atuando para a plateia de um reality show". Pelo menos Bolton parece perceber vagamente o clima de telecatch que predomina no governo Trump, e percebe também o óbvio: a única coisa que realmente importa acima de tudo para Trump é a reeleição.

Onde fica a Finlândia? 

Só quem passou os últimos anos trancado dentro de um iglu no Polo Norte ficaria surpreso em saber que Trump pensa que a Finlândia é parte da Rússia, não sabe que o Reino Unido é uma potência nuclear e confunde os nomes de presidentes afegãos. 

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Afinal, ele é um espelho fiel da ignorância generalizada dos americanos a respeito do mundo lá fora - devidamente alimentada com o pão e circo da "cultura de celebridade".     

O mesmo se aplicaria ao fato de Trump supostamente ter dito que uma invasão da Venezuela seria "bacana"- já que aquele país, na verdade, "é parte dos Estados Unidos" - e a Trump ter afirmado ao Presidente Xi Jinping que os americanos iam adorar se ele mudasse a constituição americana para permitir que ele governasse por mais de dois mandatos. 

Aqui, também, o problema é a fonte. Deixemos de lado o fato de que Bolton é um escritor extremamente medíocre - se é que o livro não foi escrito por um ghostwwriter. Eu o entrevistei anos atrás em um de seus antros favoritos: a reunião anual da Comissão de Assuntos Americano-Israelenses, no Distrito de Colúmbia. 

Em pessoa e relativamente relaxado - eu não era um jornalista americano e portanto ele não se sentia ameaçado - a figura de um psicopata se escondendo atrás de sorrisos forçados era claramente visível. Seu senso de sua própria importância tinha dimensões intergalácticas.  

Então, há também a questão de uma possível traição. Se Trump de fato cometeu toda essa litania de "crimes", então por que Bolton não os comunicou ao Congresso durante o fiasco que foi o impeachment conduzido pelos democratas? Bem, ele precisava embolsar os dois milhões de dólares da venda do livro. 

Recapitulemos brevemente alguns dos "crimes" de Trump revelados por Bolton. 

Crimes suspeitos

Em uma reunião privada com Xi, na Cúpula do G-20 de junho de 2019, realizada no Japão, Bolton conta que Trump, "então,  de forma chocante, desvia a conversa para as futuras eleições presidenciais dos Estados Unidos, aludindo à capacidade econômica da China de afetar campanhas eleitorais e pedindo a Xi que assegurasse sua vitória. Ele enfatizou a importância dos agricultores, dizendo que o aumento das compras chinesas de soja e trigo afetaria o resultado das eleições. Eu publicaria as palavras exatas de Trump, mas o processo de revisão para republicação de documentos oficiais decidiu em sentido contrário".

Caso isso seja verdade, temos aí a clássica arte da negociação de Trump. Como "crime", é inverificável.  

Quanto a Xi ter defendido "a construção pela China de campos de alojamento para até um milhão de muçulmanos uigur em  Xinjiang, Bolton escreve: "De acordo com nosso intérprete, Trump disse que Xi deveria levar adiante a construção dos campos, com os quais Trump concordava plenamente".

Qualquer um que conheça bem os rituais da diplomacia chinesa sabe que a simples ideia de um presidente da China "confessar" a um presidente americano detalhes de sua política interna em um caso ultra-sensível como Xinjiang é ridícula e absurda. 

Bolton, pelo menos, reconhece a vacuidade da política do governo em relação à China: "Tínhamos um bom slogan, que pedia um 'Indo-Pacífico livre e aberto'. Mas um adesivo de parachoque não é uma estratégia, e nós fizemos todo o possível para não sermos sugados pelo buraco negro que são as questões comerciais Estados Unidos-China.

Quanto à Huawei e à ZTE, Bolton se limita a recitar lugares-comuns sem nenhuma prova: "O objetivo mais importante das 'empresas' chinesas como a Huawei e a ZTE é o de se infiltrar nos sistemas de telecomunicações e de tecnologia da informação, principalmente a 5-G, e submetê-los ao controle chinês". 

Sobre o notório toma lá dá cá entre Washington e Kiev, Bolton conta que Trump "disse não ser favorável a enviar a eles o que quer que fosse até que todo o material das investigações russas relacionadas a [Hillary] Clinton e Biden tivesse sido entregue".

Para a felicidade dos liberais da turma da limusine, Bolton confirma a lógica do impeachment conduzido pelos democratas, e também do Ucraniagate - o Russiagate, a estas alturas, já havia sido totalmente desmoralizado.   

Narrando uma conversa telefônica de maio de 2019 entre Trump e o Presidente Putin, Bolton conta que Putin teria comparado o "líder da oposição" venezuelana Juan Guaidó a Hillary Clinton, no que Bolton chama de uma "brilhante exibição de propaganda ao estilo soviético" para reforçar seu apoio a Maduro. Putin "em  grande medida, conseguiu convencer Trump". Ah, esses soviéticos malvados. 

Segundo o Washington Post, "Ao descrever sua experiência na Casa Branca com assuntos ligados à Rússia, Bolton pinta o quadro de um presidente impulsivo, tosco e consistentemente contrário a qualquer política norte-americana destinada a desencorajar a agressão russa e a punir com sanções o comportamento maligno de Putin".

Repetindo: Bolton pode acusar Trump impunemente, contanto que ele o retrate como fraco em tudo o que se refira aos mantras do Deep State: "agressão russa" e "comportamento maligno".  

Escrevendo sobre a decisão de Trump, de novembro de 2018, de defender incondicionalmente MbS, o príncipe-herdeiro da Arábia Saudita, quanto ao assassinato do colunista do Washington Post Jamal Khashoggi, Bolton cita o presidente dizendo que tudo era apenas uma tática diversionista para esvaziar uma matéria sobre Ivanka Trump usar seu e-mail pessoal para assuntos do governo dos Estados Unidos: "Isso vai desviar a atenção de Ivanka. Se eu ler pessoalmente a declaração, isso irá ofuscar totalmente essa história sobre Ivanka". 

Bem, Bolton não diz nada sobre o que realmente interessa: as conversas no Whatsapp entre Jared e MbS visando a acelerar negociatas suspeitas  no Oriente Médio.

Chega de guerras

Bolton revela toda a extensão de seu belicismo quando se queixa de que Trump estava sempre exigindo alguma retirada de tropas - do Oriente Médio, da África, da Europa: "Eu quero sair dessa coisa toda". 

Em algum momento de 2018, discutindo com o Cachorro Louco Mattis, Trump teria dito a ele que a Rússia deveria cuidar do ISIS/Daesh: "Nos estamos a sete mil milhas de distância, mas ainda assim somos o alvo. Eles virão dar em nossas praias. É isso que eles dizem. É um show de horrores. Em algum momento, teremos que sair". 

Sobre o Afeganistão. Trump: "Isso tudo é obra de uma pessoa estúpida chamada George Bush". E, ainda por cima, Mattis meteu os pés pelas mãos: "Eu dei tudo o que você pediu. Autoridade ilimitada, sem regras nem restrições. Você está perdendo. Você está levando uma surra. Você fracassou". 

Tudo o que foi dito acima é factualmente correto. Trump estava apenas cumprindo suas promessas de campanha. No entanto, o Deep State passou por cima da autoridade do presidente, não apenas no Afeganistão, mas especialmente na Síria. Bolton, é claro, ficou horrorizado e, além de tudo, não conseguiu nenhuma de suas guerras favoritas - Irã, Venezuela e Coreia do Norte. 

Um contrato de publicação de dois milhões de dólares, é claro, serve para adoçar a frustração de Bolton por não ter conseguido as guerras que queria. Trump tuitou que Bolton é um "filhotinho doente". De fato, o real papel de Bolton era o de um funcionário imperial de baixo escalão, e apenas por um breve período de tempo. O Deep State continua conseguindo tudo o que quer de Trump: o Império das Bases continua intacto; não houve retirada de tropas, nem de terceirizados, nem de mercenários; e a Rússia, a China e o Irã consolidaram-se como "ameaças" existenciais.  

O "filhotinho doente" é só um dano colateral. Em seguida vem Tulsa   – onde Trump, em "clima sem lenço sem documento", mais uma vez terá toda a liberdade para banhar-se na própria glória.     

Amarrando o enredo da luta-livre: e se tudo isso não passar de uma elaborada encenação, de uma luta combinada? Comparado a um belicista descartado, o Presidente pode agora emergir do pântano como um hippie pacifista e moderado, pronto para ser abraçado pelas massas do voto pendular. Nesse caso, quem está dando uma surra em quem? 

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