O Barão de Munchausen e o novo paraíso do mundo multilateral

Nossos analistas escrevem artigos, livros e fazem lives puxando-se a si mesmos pelos cabelos. No fundo no fundo, continuamos metidos no mesmo atoleiro

(Foto: Site da Rádio Internacional da China)


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Quando eu era menino, minha avó, que era neopentecostal fanática, comprou e me deu aquele livro das testemunhas de Jeová no qual, no paraíso, leões e cordeiros convivem mansamente e o animal carnívoro vira um feliz pós hippie vegano politicamente correto da Zona Sul do Rio. É a quimera do paraíso terrestre, que existe desde sempre, desde a época em que os animais falavam e que o homem não precisava trabalhar. Bem, aí, Adão, comeu a fruta proibida de Eva, que nas versões mais apimentadas é a própria Eva, e cá estamos nós, vagando neste mundinho do diabo, comendo o pão que satã amassou, com o suor do nosso próprio rosto.

Não dá para escrever, sem doses cavalares de ironia e sarcasmo, sobre o advento da nova ordem multilateral. Nela, Lênin não vai voltar (Putin não gosta muito dele não), Dugin nos brinda com a imagem de Putin trotando num cavalo branco e redimindo o mundo dos malvadões da Otan. O urso panda e o urso das estepes farão pesar o mundo para um novo mundo multilateral e não precisamos mais se preocupar com as contradições do mundo real: desaparecerão o fosso financeiro e tecnológico, a divisão internacional do trabalho, o neocolonialismo, a pobreza, a exploração do homem pelo homem, neste novo paraíso das Testemunhas de Dugin, já anunciou o profeta Beato Pepe Escobar, que viu este sinal no rabo do foguete de Roque Santeiro.

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A dialética é algo muito difícil, já alertava Gramsci. O socialismo é, num primeiro momento, apenas um preconceito na cabeça do trabalhador. O trabalhador trocou uma cosmogonia adâmica, cristã, por uma nova crença. Não à toa, muitos militantes ainda veem o socialismo como necessidade, não como possibilidade. Sair de um pensamento mecanicista, maniqueísta e fatalista, para um pensamento dialético, que não hipostasia a vontade numa teoria que tem que se cumprir, como o retorno da astúcia da história, como uma mão de Deus ateia no mundo, é uma tarefa rara, que tem que ser feita todo dia. A única coisa que a dialética nos pede é que a estudemos e estudemos sempre. Aprender, aprender, aprender sempre! Já nos dizia Vladimir Ulianov (ou, para os mais chegados, Lênin, aquele, do qual Putin e Dugin não gostam nem um pouco).

Os restos maniqueístas de uma visão fatalista do mundo, em que, ao fim e ao cabo, chegaremos ao paraíso terreno, conduzem análises sofisticadas, mas que, no fundo, padecem do mesmo mal, hipostasiar a razão no mundo e conduzir o mundo previamente pelo desejo do analista. Na verdade, esta astúcia da razão encontra-se até nos escritos de Marx. Marx é um gênio, e tem que ser estudado pela sua grandeza, e não pelos restos hegelianos que se encontram em sua teoria. Não estranhem, quando falo de restos hegelianos, não estou propondo nenhum “corte epistemológico althusseriano”, ou engrossando as filas de uma forma de ler Marx da Terceira Internacional, que soterrou o leitmotiv da emancipação humana, esqueceu da abolição do trabalho e nunca falou da educação dos cinco sentidos. Estou falando apenas da astúcia da razão história.

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Para entender, temos que refazer certo caminho. É bom lembrar que Hegel, apesar de gigante e gênio, era idealista e deísta. Hegel nunca foi ateu e materialista, mas a gênese do mundo hegeliana é mundo mais complicada que uma tola história creacionista de Adão e Eva, do homem que pariu uma mulher da sua própria costela. O mundo é uma objetivação, uma exteriorização da Razão (que ao fim e ao cabo é o logos, ou seja, uma manifestação de Deus), que se aliena e se projeta neste mundo. Para entender a Razão não é necessário estudar teologia, mas a obra desta Razão, ou seja, a História. Numa intricada gênese histórica, em que a Razão se projeta o tempo inteiro no mundo, no qual o racional é real, e o real é racional, Hegel vai buscar o mecanismo das estruturas de poder no mundo, das superestruturas de pensamento, inclusive. Esta forma dialética de pensar, no qual para se conhecer a Razão deve se estudar o objeto, a exteriorização desta razão, os epifenômenos do movimento da Razão, dialoga muito de perto da ética de um deus ateu spinozista.

Neste deus moto-perpétuo aristotélico, Marx percebeu que se ele retirasse Deus da equação a equação do mundo se manteria de pé. Bastava inverter os termos, usando da crítica de Feuerbach a Hegel, Marx vai endossar que o mundo não é uma exteriorização da Razão, mas a Razão é uma projeção idealizada deste mundo, os homens criaram Deus a sua imagem e semelhança, se os ratos fossem humanos, Deus teria a face de um rato. Já não há mais porque usar razão com maiúscula, ela deixa de representar o logos, e o mundo não é mais uma projeção sua. Com esta inversão, a alienação deixa de ser toda e qualquer forma de objetivação e exteriorização e tem que ser buscada na história do homem, que fez Deus e os deuses a sua história e semelhança. 

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Se falamos da astúcia da razão, temos que falar mais fortemente da astúcia de Marx. Se virou, primeiro, Feuerbach contra Hegel, para colocar o mundo assentado sobre seu próprio eixo, para que história do mundo não estivesse invertida e refletindo não o mundo real, mas a crítica do mundo; num segundo momento Marx virará Hegel contra Feuerbach e seu materialismo mecanicista, que via o homem no mundo, mas não via os processos do mundo do homem e o homem como processo. Marx percebe que o método hegeliano, de movimento perpétuo, em que os objetos da crítica não tem posição fixa e, inclusive, os próprios conceitos são objeto do objeto, estando sempre relativizados, numa perspectiva de influência recíproca, era muito superior ao materialismo mecanicista de Feurbach. Tudo, até mesmo o pesquisador sendo objeto do objeto, e nunca ponto de partida inicial de qualquer teoria, era, sem sombra de dúvida, o método de análise mais avançado da época. Bastava a Marx depurar os restos deístas e idealistas da teoria hegeliana e teria, em mão, a superestrutura crítica de pensamento mais avançada para analisar o mundo.

Mas, “peraí”, dirão vocês, você citou “restos hegelianos” em Marx. Sim, há traços da astúcia da razão, inclusive no maior gênio crítico da história da humanidade. Se pegarmos textos como os da crítica da guerra entre Estados Unidos e México (na qual Marx defendia a vitória do capitalismo diligente estadounidense contra o atraso mexicano), ou “Resultados futuros da dominação britânica nas Índias”, ou mesmo o “Discurso sobre o livre cambismo”, se vê claramente que Marx também se debate com uma herança de progresso linear hegeliano. É bom lembrar que Hegel, ao fim e ao cabo, dizia que “a Razão se realiza na história”, ainda que a realização da dita razão fosse, pasmem, a reacionária monarquia parlamentar prussiana (censitária e limitada). 

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Marx atacou a astúcia da razão, de Hegel, destruindo a ideia de um Estado racional e no qual se dirimem as controvérsias da sociedade civil. Marx demonstrou que o Estado não realiza uma espécie de grande consenso universal, ele apenas faz a mediação e administra as lutas de classes no seio de uma sociedade fraturada e dividida, na qual os homens se enfrentam não como homens, mas como reles proprietários reduzidos a objetos de objetos. Ainda assim, na ideia da necessidade do socialismo, a astúcia da Razão hegeliana, expulsa pela porta da frente (na crítica impiedosa de Marx ao Estado e a suposta realização da fraternidade universal, do consenso), retorna pela porta de trás, com a ideia da necessidade do socialismo. 

Nos textos supracitados, Marx ainda está prisioneiro desta tessitura de um progresso permanente e que inexoravelmente vai de formas menos desenvolvidas a formas mais desenvolvidas de organização humana (escravidão–modo de produção asiático–feudalismo– capitalismo–socialismo–comunismo). Ele era um homem do seu tempo, o capitalismo ainda não era um fenômeno global, no sentido que damos a palavra no século XX, e ainda não havia sido descoberta a lei do desenvolvimento desigual e combinado. Assim, a revolução seria inevitável e, mais dia, menos dia, chegaríamos a uma sociedade socialista. Esta foi a visão oficial da Terceira e mesmo da Quarta Internacional. Na verdade, muitos socialistas estão presos a esta visão fatalista de socialismo, na qual a astúcia da história, esta fortemente instalada e nos trará, mais dia ou menos dia, o socialismo.

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Rosa Luxemburgo foi a primeira a ver a armadilha desta forma fatalista de ver o socialismo quando prognosticou “socialismo ou barbárie”. O socialismo é uma possibilidade, não uma necessidade histórica, umas das muitas possibilidades, não a única, apenas a melhor. O progresso técnico científico por si só, ou uma mudança na correlação de força das grandes potências não muda absolutamente nada com relação à exploração do homem pelo homem, ou avança de per si, sem a luta organizada dos povos, em um segundo que seja, o relógio do mundo para um possível futuro socialista.

Gramsci de debruçou largamente sobre o fatalismo desta teoria, não por outra razão, ainda que tivesse sido fiel ao Partido Comunista Italiano, durante largo tempo sofreu o silenciamento de suas teorias. Ele demonstrou que, num momento de crise nas nossas fileiras, o fatalismo mecanicista cumpre um papel de manter coesa a resistência dos trabalhadores, faz o mesmo papel que a volta de Cristo faz nas igrejas. Ainda que me batam, que me prendam, que me torturem, o socialismo virá, é uma profecia inexorável. Mas há um outro lado da moeda nesta história. Se o socialismo virá, em que pesem nossos erros táticos e estratégicos, nosso nível de desorganização, nossa falta de trabalho ideológico, isto leva também ao afrouxamento da disputa ideológica, da deserção do trabalho teórico, ao rebaixamento da dialética a uma feira de prognósticos otimistas sobre um futuro feliz da classe trabalhadora.

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Gramsci tinha razão, duas vezes. Na primeira ao dizer que a dialética é, num primeiro momento, apenas um preconceito na cabeça do trabalhador, e, infelizmente, estamos trabalhando muito pouco para que os trabalhadores saiam do mecanicismo e do fatalismo para uma concepção realmente dialética de história; na segunda vez, muito ligada ao que ele disse sobre a dialética reduzida a um mero preconceito, a um rebaixamento da teoria a um fatalismo mecanicista, a que esta redução da dialética a um neopositivismo grosseiro, manual de tomada de poder e de futurismo, nos faça perder de vista a tarefa ao qual o marxismo se propôs, a emancipação humana.

Para alguns socialistas e comunistas, socialismo ficou reduzido a saber se temos um partido comunista no poder. A visão caricata de comunismo, que a direita tinha na guerra fria, no qual, todo e qualquer país que tivesse um partido de esquerda no poder se tornava socialista, está virando teoria “marxista” de alguns “especialistas”. 

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Tornei-me comunista em 1986 (com 15 anos de idade), entrei no PCB em 1989. Com toda a informação que hoje circula livre e tolamente na internet, fico espantado de como o estado da crítica do socialismo ficou rebaixado da década de 90 para cá, e não, não é saudosismo, é constatação de rebaixamento do nível do debate. Se todo partido de esquerda no Brasil discutia projeto de ruptura e revolução, e teorizava sobre o que seria o socialismo, na década de 20 do século XXI, esta discussão desapareceu.

Não dá para simplesmente largar esta declaração, como se eu fora o dono da verdade, um carimbador maluco, no melhor estilo Raul Seixas, no musical Pluct Plact Zum, e ir embora para casa, maratonar alguma série no netflix. Mordida a amarga maçã, só me resta comê-la até o fim. Há motivos para isto, para o alargamento da ala “campista”[1] dentro do campo dito marxista. Antes da queda da União Soviética e do chamado socialismo real, toda a crítica marxista, na verdade, reunia-se e se organizava ao redor da existência do chamado campo socialista. Tanto aqueles que defendiam a herança e o “modelo soviético (há diferenças de matiz inclusive entre os que defendiam herança e os que defendiam um modelo), quanto aqueles que propunham que a revolução havia sido traída, organizavam-se, metodologicamente, em torno da crítica de um mundo dividido entre capitalistas e socialistas.

Basta darmos uma olhada no Brasil, havia as influências russas, chinesas, maoistas, albanesas, o povo da Quarta Internacional dividido apenas em 5.807.348 organizações (segundo o censo de 1991). Como exemplo e ilustração de caso, podemos ver as aventuras e desventuras do PC do B. Criado em 1962 (não, queridos, o PC do B não foi criado em 1922, ele é um racha do partidão e nasce em 1962), ele é uma dissidência do PCB que se cria à sombra das críticas a Stálin no XX Congresso do PCUS (não dá para, neste já longo artigo, debater as agruras e delícias desta crítica), numa linha maoísta-stalinista (o que em si é uma contradição, porque, de fato, Stálin e Mao não convergiam em muita coisa). A URSS torna-se então, para o PC do B (e não só para alguns setores da Quarta Internacional), um restaurado capitalismo de Estado. Com a derrota dos herdeiros de Mao, na disputa pelo espólio do PC Chinês, o PC do B abandona a China (agora também transformada em “capitalismo de Estado”) e se apega ao último bastião do socialismo no mundo, a Albânia. Chegamos em 1991, e à derrota (derrota e fracasso são visões teóricas diferentes e diferenciadas sobre a experiência soviética) do bloco socialista varre a Albânia, como um doce sonho caprino de uma noite de verão. Para quem seguia modelos é impossível deixar de segui-los. A China, antes um “capitalismo de Estado”, é reabilitada (sem nenhuma autocrítica) como farol do socialismo e… segue o baile.

O exemplo do PC do B não é uma crítica ao PC do B (ainda que óbvio, haja crítica nela), é apenas a demonstração cabal do resultado do estrago que fez o furacão de 1991, a queda do bloco socialista, sobre os partidos e movimentos de esquerda do mundo inteiro. À derrota do bloco socialista seguiu-se a apostasia de grandes partidos comunistas pelo mundo. O PCI, o maior partido comunista do Ocidente, desapareceu. Muitos teóricos comunistas migraram para o pós-modernismo ou para o desbunde total, uma parte da crítica socialista migrou do campo do marxismo para uma forma rebaixada de teoria social, um neopositivismo não marxista, que gosto de chamar de campismo (não só eu, mas muitos outros teóricos).

Se na década de 90 podíamos discutir se o modelo chinês era socialista sem sermos acusados de sermos “quintas colunas”, “agentes da CIA”, “crítica paga Ocidental” ou “putinhas da Otan” (acreditem, já fui chamado de tudo isto), no século XXI, a crítica dita marxista descambou para uma fé messiânica e total falta de crítica, na qual, só merece o nome de marxista quem tiver um altar com um urso panda (China) e um urso pardo (Rússia), no qual se acenda uma vela diariamente e se reze 50 salve Stálin (poderia ser um salve Lênin, mas Putin o detesta demais Vladimir Ulianov para que façamos este sacrilégio).

Assim, se a ideia original marxista e leninista de expropriar os expropriadores vai de encontro a ideia de haver 100 bilionários na China, que danem-se Marx e Lênin. Em um debate, faz poucos dias, um amigo me disse que eu “fiquei no passado e não notei que o mundo agora usa i-phone” (qualquer semelhança com os argumentos idiotas da direita sobre o marxista de iphone não é mera coincidência), e chegou a dizer que Marx e Lênin foram superados porque não viveram na sociedade “pós-industrial”. Não se pode e não se deve criticar a China e a Rússia, para os campistas, porque, efetivamente, dentro de uma ideia de luta pelo socialismo e pela emancipação humana, dentro do projeto de um socialismo sem explorados e exploradores, as contradições reais saltariam aos olhos do leitor mais desatento.

A forma de defender o maniqueísmo campista é atacar e colocar, desonestamente, palavras na boca dos opositores. Quem diz peremptoriamente que a Rússia é um país capitalista, como outro qualquer, no qual a antiga nomenklatura tomou os meios de produção e se tornou uma oligarquia de bilionários, está “desejando a vitória da Otan’. Fazer a crítica real se tornou desejar o fim da Rússia. Isto é tão verdade quanto a arca de noé, o adão e eva, o creacionismo e o terraplanismo. Não, camaradas, quem não é campista não torce para a Otan, só não fez apostasia do marxismo e passou a acreditar nesta tolices maniqueístas que vocês perpassam, copiando de Dom Pepe Escobar, que, por sua vez, apenas plagia do Sputnik. Em lugar de desejarmos a guerra, como fazem os novos social chauvinistas, apenas continuamos na linha leninista propondo o básico da Internacional, “paz entre nós, guerra aos senhores”.

Da guerra imperialista da Rússia contra a Ucrânia (não, não é uma guerra defensiva, sim, a Rússia é o país agressor) não sairá nenhum novo mundo multipolar. O fosso entre países detentores de tecnologia de ponta e os que produzem comoddities não diminuirá. Não será destruída a divisão internacional do trabalho capitalista, apenas haverá mais países dominantes. Não há um processo de revolução socialista mundial, mas apenas uma disputa inter-imperialista por hegemonia. Ser produtor de commodities e consumidor de tecnologia de ponta não traz independência para nenhum país, seja esta relação desigual entre Brasil x EUA ou Brasil x China. Todas as contradições econômicas reais devem ser elididas para que acreditemos no novo paraíso do beato Pepe Escobar.

Aliás, os efeitos da guerra Rússia e Ucrânia são visivelmente reacionários, e não progressistas. A Otan sairá reforçada, não mais como uma aliança defensiva, mas novamente como uma aliança militar ofensiva. O discurso anti-Otan na Europa Ocidental, que avançava e se tornava hegemônico, hoje de tornou periférico e isolado. A linha pró guerra de parte da esquerda colide com o histórico do movimento socialista e comunista e nos desarma na disputa de corações e mentes. Com a guerra, em termos de fortalecimento na estrutura do Estado, todos os envolvidos ganham, menos os povos agredidos. Putin se fortalece na Rússia, Zelensy na Ucrânia e a hegemonia militar estadounidense é retroalimentada no Ocidente. Os orçamentos crescente de guerra já chegam previamente aprovados nos Congressos, pois não há oposição possível no meio da loucura da guerra (não coincidentemente os opositores da guerra são presos e reprimidos como traidores, seja na Ucrânia, seja na Rússia, como a mesma desculpa, “agentes infiltrados estrangeiros”, que sim, pode os haver, mas não significa de antemão que todos que protestam o sejam). 

Se na década de 60 a esquerda dava a linha hegemônica no mundo, com um potente discurso pela paz – que resultou nas revoluções da juventude de 1968, em Woodstock, no movimento hippie contra a guerra (faça amor, não faça a guerra), no maio francês (que muitos analistas até hoje apenas veem como manifestações pequeno burguesas), no Tribunal Russel contra o crimes de guerra, na condenação de todas as agressões imperialistas –, hoje, com um discurso cínico de apoio a uma invasão, estamos desarmados para falar além do nosso gueto e é impossível disputar hegemonia dentro da sociedade civil, sem condenar a guerra.

A foto fofinha das testemunhas de Jeová é só uma foto. Octavio Paz, um grande escritor e crítico literário e cultural mexicano, fazia uma analogia sutil e bem interessante entre a “morte de Deus”, o paraíso cristão e o messianismo socialista. A morte de Deus é uma figura literária romântica, não uma ideia filosófica.[2] O tempo na cultura cristã é linear e não cíclico, como na maioria das religiões orientais. O homem é criado uma única vez, Jesus nasce uma única vez, morre uma única vez, ressuscita uma única vez, o julgamento final acontecerá uma única vez. Diante da maldição da fugacidade do tempo, a única salvação é o paraíso imaginado cristão, que também pode ser o inferno do futuro sem nenhum porvir. Paz relaciona isto com a crença do socialismo como necessidade inevitável histórica, mostra como alguns marxistas fogem da crítica real do mundo, refugiam-se numa nova espécie de neossocialismo utópico. O inexorável porvir socialista é uma forma adaptada de paraíso cristão. Já ouvi, ninguém me contou, camaradas dizerem que comunismo é “quando o Partido Comunista governar o mundo todo”. As ideias, para além do seu tempo, de Marx, de emancipação total do homem, abolição do trabalho e educação dos 5 sentidos, que dialogariam, sem muito custo, com o Ubermensch de Nietzsche, desaparecem. Fica a ossatura deformada de um Partido Comunista eterno.

Assim, as tarefas inadiáveis da luta dos trabalhadores e trabalhadores, dos povos no mundo inteiro, contra a hegemonia crescente do capital, são trocados por uma profecia insonsa ateia futurista, de um novo mundo multipolar, na qual, inclusive, os povos e as classes sociais saem de cena e apenas atuam os chefes de Estado. Este arremedo de marxismo se parece muito toscamente com a escola historicista reacionária alemã, e todas as contradições do mundo real, inclusive os existentes dentro da Rússia e da China, são varridos para debaixo do tapete, porque religião de dogma não combina com pensamento crítico.

Na fábula do Barão de Munchausen ele se salva, depois de cair na areia movediça, puxando-se a si mesmo pelo cabelo.

Nossos analistas escrevem artigos, livros e fazem lives puxando-se a si mesmos pelos cabelos.

No fundo no fundo, continuamos metidos no mesmo atoleiro.

Isto é tudo, menos marxismo, senhores!

[1] Chamo de campismo um rebaixamento da teoria marxista a uma ideia rebaixada de campos de influência. Assim, em lugar de fazer o estudo de caso, caso a caso, de todos os epifenômenos (guerra da Ucrânia, por exemplo), basta aderir a uma área de influência, China ou Rússia, por exemplo, para, antecipadamente prever e tornar qualquer ato, mesmo uma guerra de anexação de um país por outro, como desejável e “progressista”. [2]Alegoria expressa, pela primeira vez por Jean Paul Richter, e recolhido por Madame de Stael, ele configura a agonia do homem diante da inexorabilidade da morte. Na alegoria, Jesus morre e vai ao inferno, mas retorna para dizer, “não existe nenhum pai”. Popularizada e imputada a Nietzche, ela está ligada a inexorabilidade destrutiva do tempo linear capitalista, “tudo que é sólido desmancha no ar”, como diria Marx.

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