O atraso nas obras brasileiras: mau-caratismo ou cultura?
Perdura uma cultura de não-organização, de não-otimização, de não-acabamento porque ela é assim dada a nossa inexperiência no fazer e, sobretudo, no planejar o fazer para fazer bem feito
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Carta à minha irmã no estrangeiro:
Júlia, como vai?
Hoje acordei pensando na tua chegada ao Brasil. Estou assustado. Minha mãe e eu passamos ontem o dia tentando limpar a casa após a reforma que contratamos. Quanto mais organizávamos as coisas, mais víamos os "problemas" de acabamento e o caos da construção.
Mana, queríamos que, quando tu chegasses do estrangeiro, que visses uma bela casa, uma casa arrumada, bem dividida, bem feita. Ainda bem que é só a primeira etapa da obra, pois decidimos que teu quarto e demais reparos faríamos somente decididos contigo, aqui, no Brasil.
Fiquei procurando um culpado para a má-construção: o pedreiro; insuficiência de recursos para o "todo" dessa obra; falta de planejamento; erro meu, da mãe? Enfim. Não há propriamente um culpado isoladamente. É o conjunto. É, sobretudo, a nossa inexperiência em projetos, digamos, da nossa não-rotina. Bem poderia eu ter planejado melhor, guardado um dinheiro a mais pras emergências que surgiriam no caminho, pagar um pouco mais ao pedreiro a fim de valorizar seu trabalho caprichoso. Nada disso fiz, Júlia. E começo a me preocupar com a impressão que tu terás com nossa casa. Desculpe-me, irmã! Esforçamos-nos ao máximo, mas a casa não está tão bonita.
Feito o pedido de desculpa, digo-te, minha mana, que uma coisa foi boa: penso ter descoberto porque os políticos são tão criticados por obras mal acabadas no Brasil, ou deficientes (e deficitárias) nessa terra. E – que grata notícia! – nem sempre eles agem assim porque sejam mau-caráter. É cultura mesmo! Quando não, a falta de experiência nos temas de grande relevância para o País. Não sabem ainda como planejar as ações.
Somos um povo com pouca idade. Lamentavelmente acometidos com as primeiras obras de integração do Brasil com o Brasil, as realizadas pelos bandeirantes portugueses (séculos XVI e XVII, sobretudo) que tão somente se interessavam pelo ouro encontrado (ganância sintomática) na Terra de Santa Cruz. Não havia qualquer interesse de se deixar um "legado" ao povo "brasileiro". Era somente "levar" as nossas riquezas para a Europa da época. Qualquer que fosse a infraestrutura haveria de ser um canal para a "litoraneidade", vetor de escoamento da produção. Mobilidade, ou ações vultosas, portanto, carregada de descompromisso com legados locais, ou com as futuras gerações.
Não poderia ser diferente: não havia consciência de Nação, identidade nacional e sequer cultura civilizatória. Éramos um "amontoado" de bárbaros disputando espaço existencial. Éramos os degredados (personas non gratas) portugueses, compostas por alguns ladrões, outros contraventores, outros somente relegados do Sistema lá na península ibérica, indesejados pelo Rei, expulsos (exilados) para o Brasil. O máximo de nossa relação interpessoal era a tentativa de escravização de índios, e a exploração cruel e exacerbada do trabalho dos negros sequestrados do continente africano. Não passava dessa infame modelo social, baliza para o sistema orgânico de Estado nacional.
Além da pouca idade de Brasil-nação, temos menor idade ainda no que tange a independência nacional, menos ainda na democracia participativa e interventiva [do povo na escolha de suas vontades e necessidades]. Para atrasar ainda mais essa gente – e seus sonhos – faz bem pouco tempo começamos a nos preocupar conosco enquanto coletividade, ou seja, até alguns dias não tínhamos o básico pra viver e sofríamos de uma dependência gritante do protótipo paternalista de políticos mesquinhos que nos sustentavam com migalhas que caiam de seus banquetes. Nossa vida tinha tão pouco que nos bastava estar vivos; já era muito. Este fato nos faz crer que a nossa experiência no fazer e no exigir o bem feito é ainda muito opaca e teremos de prover mais à frente um novo processo de Nação. Isso já está acontecendo. E é irreversível, ainda bem!
A ideia de compor esse argumento não denota um fator estático para nossa cultura. Nada é perene. Tampouco a "suavização" de nossas culpas pelos desmandos na ordem pública e na política de Estado para o bem das pessoas. É tão somente para atribuir uma reflexão de que a evolução sistêmica passa pela enorme mudança do paradigma cultural. Não são eles; somos todos nós que temos de mudar o aprendizado e, daí, mudarmos a forma de ver e fazer as coisas (obras e políticas públicas). Somente assim haveremos de ver lisura no trato de nossas necessidades pagas com suor de nosso trabalho e arraigada em impostos tantas vezes usurpados de nossos cofres. Haveremos de perceber o planejamento nuclear e, sobretudo, a qualidade nas coisas que nos pertencem; que são para o nosso bem-viver.
Viu, irmã?! Tal como não houve descaso da minha parte ou da parte de nossa mãe em fazer da reforma de nossa casa a desastrosa obra que se configurou, imagino que nem todas as deficientes transações brasileiras para atender o povo foram estimuladas por mau-caratismo dos seus agentes políticos. Perdura, por conseguinte, uma cultura de não-organização, de não-otimização, de não-acabamento porque ela é assim dada a nossa inexperiência no fazer e, sobretudo, no planejar o fazer para fazer bem feito. E, óbvio, isso terá de mudar a qualquer momento.
Dessa forma visto, podemos inferir que há muitos políticos bons e fazendo o melhor de si para que sejamos bem tratados, como merecemos e somos signatários, muito embora também tenhamos ainda de conviver com alguns que não passam de neo-degredados modernos e bem qualificados; cínicos, portanto.
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