O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia – contra as normoses da sociedade de “força bruta”



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Como estudioso da ciência do direito enquanto manifestação antropológica incontornável da sociedade (CHINI; CAETANO, 2019; CHINI; CAETANO, 2020; CHINI; CAETANO, 2021), não posso deixar passar incólume a data dos 50 anos da publicação da obra mais célebre da dupla Gilles Deleuze-Félix Guattari. Trata-se do livro O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, que dialoga criticamente com o nunca esgotado Sigmund Freud, sobretudo quando o pai da psicanálise aborda as questões civilizatórias e culturais que ele próprio pôs, em suas próprias palavras, sob as dicotomias de sociedade de “direito” versus sociedade de “força bruta” (FREUD, 2011 [1930], p. 101) 

A figura de Édipo é central na obra de Freud. É a representação anímica de tudo aquilo de que devemos abrir mão para sedimentarmos as sociedades ao redor de normas que sejam aceitas pela maioria das pessoas da coletividade. Vemos aí, então, parte significativa do pilar da civilização e sua ligação intrínseca com as questões do direito. Em Freud, o que encontramos é uma dicotomia entre aquilo que Deleuze-Guattari chamarão logo adiante de “máquina desejante” em contraste com a “estrutura edipiana”. Em outras palavras, as sociedades civilizadas apresentam, como condição sine qua non para seus estabelecimentos, que submetamos nossos desejos às condições que estão circunscritas a normas (incluídas no direito) apresentadas no consenso coletivo-social.

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No entanto, como tenho mostrado, essas mesmas normas aceitas pelo consenso da sociedade podem estar desgastadas e não mais representar a realidade empírica do povo a que elas deveriam servir. É o que chamamos de normose. Trata-se do desgaste das normalidades e mesmo das normas, escritas ou tácitas, que o direito não deixa de reconhecer ao precisar, frequentemente, rever suas fontes e remodelar seus ordenamentos jurídicos, em torno de leis, doutrinas, jurisprudências etc. que reflitam a atualização dos costumes no meio social. É graças ao direito que normas que já não condizem com a realidade atual – as normoses – não são capazes de gerar um vácuo que geraria situações caóticas e anárquicas, porque fariam a civilização retroceder do Estado de “direito” para a coletividade de “força bruta”, retomando a dicotomia freudiana. 

Freud também não estava desatento a essa questão central nas discussões do bem-estar da coletividade e do indivíduo. Tanto é assim que sua obra arquitextual de 1930 se chama exatamente O mal-estar na civilização. O título por si só retrata que sua preocupação básica reside em se pesquisar e tentar minimizar a colateralidade do efeito de “mal-estar” que Édipo, como complexo castrador, imporia ao exigir que abríssemos mão de pulsões e desejos que já não representam, de forma alguma, supostas ameaças à construção civilizatória harmônica e baseada no “direito”, não na “força bruta”, para repisarmos sua inesgotável dicotomia.

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Deleuze e Guattari, assim como todos os pós-freudianos, observam com muita acuidade a obra de Freud e a centralidade de seu conceito de Édipo enquanto complexo das introjeções das normas sociais no campo intrapsíquico. Com isso, o que logram é justamente apontar para o que tenho chamado de normose, alertando para o perigo de serem impingidas, aos indivíduos, normas sociais (representadas em Édipo) que estejam em discrepância com a aceitabilidade e a consensualidade coletivas de dado espaço e tempo, o que abriria lugar, como vimos, para que o Estado de direito fosse avassalado por forças pré-civilizatórias de força bruta.

Sintetizarei o importante acréscimo de Deleuze e Guattari na seguinte citação de sua obra acima mencionada, onde o par “máquina desejante” (o desejo subjetivo da pessoa) e “estrutura edipiana” (a obrigação de adequar-se a normas e também a normoses) é didaticamente mostrado em forma de questionamento por parte dos Autores: “Nós até mesmo acreditamos no que nos dizem quando nos apresentam Édipo como um tipo de invariante. Mas a questão é totalmente outra: haveria adequação entre as produções do inconsciente e essa invariante (entre as máquinas desejantes e a estrutura edipiana)? Ou então essa invariante não exprimiria tão somente a história de um longo erro através de todas as suas variações e modalidades, o esforço de uma interminável repressão?” (DELEUZE; GUATTARI, 2010 [1972], pp. 75 (sublinhamos))

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Herbert Marcuse dialoga profundamente com essas articulações em sua obra Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Marcuse lança mão do conceito freudiano de Eros não apenas para mencionar a “pulsão de vida” (em contraposição a Tânatos, ou a “pulsão de morte”), como também, em outros aspectos, a própria pulsão em si mesma. Marcuse e a Escola de Frankfurt se preocupavam em inserir na civilização o que Guattari chamará em outra obra sua de “ecologia simbólica”, ou seja, o ser humano enquanto “máquina desejante”. A pulsão, energia que repousa entre o físico e o psíquico, é regente do princípio de prazer, presente em toda a teoria que Freud evidenciou, até mesmo quando ele vai além dela, o que se dá, por exemplo, quando justamente ele discute as questões do ser humano como ser social, cultural, civilizatório, submetido, portanto, às normas de coerção da coletividade que o direito busca sintetizar.

Em resumo, podemos dizer que Édipo é a representação, oriunda da sociedade, que faz nascer e estabelecer-se, no indivíduo, o Superego (ou Supereu). Esta é a instância psíquica responsável, na atilada psicanálise de Freud, pelas interdições, repressões, censuras, denegações, rejeições, recalcamentos. O Édipo, portanto, como fator que Freud considera não apenas universal como também unívoco (no sentido de sempre estabelecer limites ou castrações, na linguagem psicanalítica), será alvo de importantíssimas releituras pós-freudianas. Édipo e Superego são elementos fundamentais a partir dos quais as normas do direito ou dos consensos (e até mesmo as normoses, a serem derrubadas) são introjetadas na psique do indivíduo, moldando em grande parte seu complexo atitudinal.

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Mas há leituras diferentes e complementares acerca de Édipo e do Superego.

É assim que Bauman, por exemplo, seguindo Lacan, descreve um Superego que, diferentemente da castradora instância freudiana, exige que o sujeito “deseje ininterruptamente”, criando o que Bauman chamou, por exemplo, de “relações líquidas”. Zizek descreve esse Superego como “insaciável” e, pior, como sendo obrigado a sê-lo, abraçando, obrigatoriamente, as imposições da sociedade de produção e de consumo. Essa obrigação que Zizek descreve se assemelha ao que Vico, lido por Karl Marx, dirá em relação à religião (em contraposição à magia), quando diz que as sociedades erigidas ao redor da religião nos obrigam a querer o que temos, ao passo que as sociedades estabelecidas sobre a magia nos permitem ter o que queremos. Trato do assunto em meu livro dialógico de pós-doutorado na Universidade de Copenhague. Lacan atribui, antes de todos eles, uma “jouissance” (“gozo-dor”) incansável e até despótica inerente ao Superego pós-moderno.

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Nesses pós-freudianos, portanto, há em comum a percepção de que o Superego deixa de ser o interditor que nasce e se desenvolve a partir do Édipo universal enquanto complexo (a introjeção da castração que a sociedade impõe com suas normas), e passa a ser um tirano (no que eles remontam até ao nome completo da obra dramatúrgica de Sófocles, que é “Édipo Tirano”) que escraviza o sujeito, impelindo-o a fetichizar o prazer, reduzindo-o a partes incompletas de sensações compensatórias. De toda forma, como se percebe, em Freud e nos pós-freudianos, quando Édipo é discutido, é-o sempre como um tirano. 

O Superego, assim, seguindo-o ou o negando, é igualmente tirânico. Em todos os casos, Édipo e Superego constituem conceitos que coligam o indivíduo e seu estatuto social, inserido nas civilizações regidas pelo Estado de direito. Deleuze-Guattari enriquecem muito a discussão com seu conceito de “anti-Édipo”.

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Trazendo mais uma vez Lacan e Zizek ao debate, estes observam criticamente, também, a percepção de Freud sobre os mecanismos do Superego (ou Supereu) de castrarem o prazer para a consolidação da “civilização”, que terá, como efeito colateral, o conhecido mal-estar freudiano: “Lacan foi, no campo da psicanálise, o primeiro a investigar e analisar a mudança sofrida pelo imperativo do supereu, que de interditor do gozo passou a ser o seu mandante: “Goza!” Grosso modo, o gozo para Lacan não significa o usufruto dos bens de que alguém dispõe, nem a satisfação sexual cumprida, ele é, antes, um tipo estranho de satisfação que não leva em conta os interesses de preservação do eu, que incita o sujeito a ir além do seu bem-estar. Para Zizek, o supereu pós-moderno nos obriga, em primeiro lugar, a sentirmos prazer naquilo que somos obrigados a fazer. Tais como os dirigentes de empresa que procuram criar um vínculo de devoção do empregado em relação à empresa, de modo a que ele trabalhe como se estivesse em família, em busca de sua própria realização espiritual, enfim, para usar um termo muito em voga nas organizações, de modo que ele se sinta um “colaborador”, e não um empregado”. (SAROLDI, 2017, pp. 136-137) 

Confrontando diretamente o que consideram a tirania freudiana de Édipo (por sua universalização e por sua suposta univocidade castradora, apontadas há pouco), ou a tirania lacaniana de Édipo (por querer avassalar o sujeito numa “jouissance” incessante), Deleuze e Guattari se expressam em outros termos. Com isso, contribuem enormemente para as discussões sobre normose, já que põem o sujeito em confronto com sua condição coletivo-social-antropológica guiada por um complexo de normoses do patriarcado como consolidador da família “tradicional”. Nesse ponto, divergem, de certa forma, da tirania edipiana que Lacan, Zizek e Bauman estabelecerão (embora os três também tratem de Édipo como normose, mas de outra categoria), e apontam uma possível “terceira” tirania para Édipo, a qual eles chamam de “Édipo soberano”, que está muito mais de acordo com os paradoxos das sociedades multiculturais em que vivemos, em que, portanto, as normoses – e o patriarcado grita – aparecem cada vez mais explícitas e, por isso mesmo, em crises cada vez mais evidentes.

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Então, o que Deleuze e Guattari focalizam, em primeiro lugar, é a normose imensa que Édipo impõe ao fincar suas bases apenas na família de modelo patriarcal, que Vico, mais uma vez, assim como Weber, descreveu. Deleuze e Guattari acrescentam a esse modelo patriarcal o modus operandi da sociedade capitalista, que traz uma espécie de “mal-estar” (freudiano) não apenas sintomatizado na neurose, como Freud salientou, mas principalmente na esquizofrenia (enquanto denegação de Édipo, ou forclusão, na linguagem lacaniana), que os dois autores põem até no subtítulo de seu O anti-Édipo (cf. “capitalismo e esquizofrenia”).

Dizem Deleuze e Guattari sobre esse “Édipo” patriarcal, capitalista ecriador de esquizofrenia: “Em sentido restrito, Édipo é a figura do triângulo papai-mamãe-eu, a constelação familiar em pessoa. Mas, ao fazer dele o seu dogma, a psicanálise não desconhece a existência de relações ditas pré-edipianas na criança, exoedipianas no psicótico, paraedipianas em outros povos. Como dogma ou “complexo nuclear”, a função de Édipo é inseparável de um forcing [esforço] pelo qual o teórico da psicanálise chega à concepção de um Édipo generalizado. De um lado, para cada sujeito de um ou outro sexo, ele leva em conta uma série intensiva de pulsões, afetos e relações que unem a forma normal e positiva do complexo à sua forma inversa ou negativa: é o Édipo de série, tal como Freud o apresenta em O eu e o isso [Das Ich und das Es, 1923], e que permite, em sendo necessário, ligar as fases pré-edipianas ao complexo negativo”. (DELEUZE; GUATTARI, 2010 [1972], p. 74)

O que percebemos, enfim, é que as discussões de Deleuze e Guattari, por não negligenciarem a centralidade de Édipo como censor responsável pela malfada tentativa de manterem-se normoses, estão no mais íntimo cerne da manutenção do Estado de direito, que naturalmente respeita as subjetividades e as leva em conta para criar as condições em que a civilização possa ser calcada no bem-estar social e, como causa e consequência recíprocas, no bem-estar individual. Trata-se de condições que afastam as possibilidades anticivilizatórias de “força bruta” que Freud opõe, com todos os pós-freudianos, à égide do Estado de direito, sublinhado como antídoto àquelas forças. 

Referências bibliográficas

CAETANO, Marcelo Moraes. Em busca do novo normal: reflexões sobre a normose em um mundo diferente. Rio de Janeiro: Editora Jaguatirica, 2020.
_______________________. Platão e Aristóteles na terra do sol. As vertigens de um conservador reacionário brasileiro. Seattle, Amazon Books, 2022 (no prelo)

CHINI, Alexandre; CAETANO, Marcelo Moraes. Argumentação jurídica: indo além das palavras. Brasília: OAB Editora, 2019.
_____________________________________. Gramática Normativa da língua    portuguesa: um guia completo do idioma. Brasília: OAB Editora.
_____________________________________. Tratado de colocação pronominal. E dois textos jurídicos. Brasília: OAB Editora, 2021.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010 [1972].

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1930]. p. 21.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

SAROLDI, Nina. O mal-estar na civilização: as obrigações do desejo na era da globalização. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017.

WINK, Georg. Brazil, land of the past. Cuernavaca, Morelos (Mexico): Bibliotopia, 2021.

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