O algoz do futuro golpeia a memória nacional
"Capitão entregou-se à tarefa de interditar nosso futuro, ao atacar a cultura, a educação, a ciência e a tecnologia", escreve o ex-ministro Roberto Amaral
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Por Roberto Amaral
Desde os primeiros dias deste malsinado governo, o bolsonarismo vem dando sinais inequívocos de sucesso na macabra faina a que se atribuiu, qual seja, a de destruir o país. O que poderia sugerir loucura, revela método, aplicação e coerência. Não nos esqueçamos do discurso que o capitão, recém empossado, pronunciou na embaixada brasileira em Washington em jantar com o qual recepcionou líderes da direita mais primitiva dos EUA. Ditou, no seu conhecido estilo tatibitate: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa”. (Valor, 18/03/2019). Impune, sem peias, protegido pelos engalanados pendurados em comissões e sinecuras, está levando a cabo o projeto diabólico.
Não satisfeito em jogar por terra o crescimento econômico do país e de nos fazer viver o presente de desemprego, fome, inflação, desindustrialização, queda do PIB, devastação ambiental, redução recorde da renda dos trabalhadores, crise cambial e privatizações criminosas retirando do Estado as indispensáveis condições para atuar como agente de desenvolvimento, o capitão entregou-se à tarefa de interditar nosso futuro, ao atacar a universidade, o conhecimento, a cultura, a educação, a ciência e a tecnologia sem o que estaremos definitivamente condenados ao atraso. Prevarica, conspira contra os interesses do país e de seu povo, tranquilizado pela guarda pretoriana que o cerca e ceva, e à sombra do obscuro acordo de boa vizinhança firmado com o STF com a mediação do inefável Michel Temer, o perjúrio.
Ao cabo de décadas de muito trabalho e dedicação de pioneiros, um esforço de estadistas, pesquisadores e intelectuais que remonta aos primeiros tempos do Brasil de D. João VI, nosso país chegara aos primeiros anos do século XXI podendo orgulhar-se de haver construído um dos mais respeitados centros universitários do continente, responsável por destacada produção científica. Era o cume de um projeto amparado na vontade nacional, assim apoiado por governos das mais distintas opções ideológicas, do império à república, sobrevivendo mesmo aos mal vividos tempos de ditadura. Pois na era da aceleração da tecnologia, da revolução da informática, da cibernética e da robótica, o bolsonarismo, não satisfeito em desestruturar o ministério da educação, investe na destruição dos pilares de nosso desenvolvimento científico, econômico e social: o CNPq e a CAPES, responsáveis pela qualificação do ensino universitário, pelo desenvolvimento tecnológico (sem o qual não há indústria) e pela formação de nossos professores e pesquisadores de nível superior. A investida se dá, de início, mediante o garrote financeiro, e na sequência mediante a depredação administrativa. O CNPq teve seus recursos para 2022 reduzidos de R$ 3,3 bilhões, em 2013, para R$ 1,3 bilhão. Um corte de 39%! Na última investida surrupiou 82% das verbas destinadas ao financiamento da pesquisa científica. O orçamento da União para 2022 prevê R$ 3,1 bilhão, para a CAPES, contra os R$ 10,1 bilhões que lhe foram alocados no orçamento para 2015. Em protesto contra a desmontagem do órgão, cerca de 80 pesquisadores da CAPES pediram demissão ao longo da última semana.
A presidente da CAPES, a quem incumbe a avaliação dos cursos de pós-graduação, é a advogada Cláudia Mansini Queda de Toledo, com título de pós-graduação fornecido pelo Instituto Toledo (Bauru, SP), de sua família. Nessa mesma instituição de ensino se titulou o atual ministro da educação, o pastor Milton Ribeiro.
Outra instituição de vital importância para a educação brasileira, o INEP, cuja missão é promover estudos, pesquisas e avaliações sobre o sistema educacional brasileiro (o gigantesco Enem é apenas sua expressão mais visível), foi posta em crise pelos sucessivos ministros da educação do atual governo, igualmente ineptos e irresponsáveis. Seu presidente, um burocrata anônimo, assistiu, faz duas semanas, silente e paralisado, ao pedido de demissão de nada menos que 37 pesquisadores com cargos de chefia, que o acusam de “perseguição aos servidores, assédio moral, uso político-ideológico da instituição pelo MEC e falta de comando técnico no planejamento dos seus principais exames, avaliações e censos” (da denúncia da Associação dos Servidores).
Bolsonaro, porém, ainda não deu por acabada a obra macabra. Pretende, agora, destruir o passado. O alvo da paranoia, desta feita, é o Arquivo Nacional, instituição de 183 anos, nascida no período regencial do primeiro império. É a guarda da memória nacional, reunindo documentos públicos e privados. No antigo prédio da Casa da Moeda, na praça da República, no Rio de Janeiro, encontram-se 55 km de documentos textuais, 1,74 milhão de fotografias, mapas, filmes e registros sonoros, os processos julgados pelos tribunais superiores, além de coleções particulares, como os arquivos de Eusébio de Queirós, do Duque de Caxias, de Bertha Lutz, de Luís Carlos Prestes, de Salgado Filho, de San Tiago Dantas, de Góes Monteiro, de Apolônio de Carvalho, de Mário Lago, dos presidentes Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Afonso Pena, João Goulart e de instituições como a Academia Brasileira de Letras.
Lá estão a correspondência e a legislação originadas do império ultramarino português, os arquivos trazidos com a corte do príncipe em 1808, ao lado de toda a documentação oficial produzida do Império até nossos dias, como o acervo do Tribunal de Segurança Nacional, do Superior Tribunal Militar e do Supremo Tribunal Federal, relatórios dos órgãos de censura e do Serviço Nacional de Informações. Lá se conserva a memória de todas as constituintes, desde a de 1824, fundadora do Estado independente.
Pois esse patrimônio de valor inestimável, certidão de nossa história, que já foi gerido por historiadores e intelectuais como José Honório Rodrigues, Raul Lima e Celina Vargas do Amaral Peixoto, está sendo entregue a um tal de Ricardo Borba D’Água, que traz em seu currículo os títulos de ex-chefe de segurança do Banco do Brasil, de ex-subsecretário de Segurança Pública do Distrito Federal, de atirador esportivo agraciado como “colaborador emérito do Exército”. Esse senhor substitui Neide Alves Dias, bibliotecária e mestre em ciência da informação.
Infelizmente, o ataque à razão ainda não teve fim. O mais grave vinha a galope.
Como observa Ruy Castro em sua coluna na Folha de S.Paulo, Bolsonaro não se contenta em fuzilar a cultura; ele quer alterar a história. O colunista adita uma grave denúncia, que, no entanto, não provocou coceiras na alma nem da imprensa, nem da intelligentsia acadêmica, que a essa afronta assiste inerte e em silêncio, e assim se associa ao crime. Escreve:
“Como não é possível rasurar os documentos, a solução é destruí-los. Para isso Bolsonaro autorizou as repartições federais a requisitar documentos do Arquivo Nacional e eliminá-los sem qualquer controle”, como, aliás, fizeram os militares com os documentos da repressão.
É incrível que isso seja permitido! Lamentavelmente, esse escândalo, na ameaça que representa para a pesquisa histórica, não despertou os protestos merecidos. Ninguém levantou a voz em defesa de nossa memória. Estaremos nos habituando ao absurdo, por mais insólito?
Onde está o ministério público federal?
A coluna de Ruy Castro foi estampada na edição de 26 de novembro. Desde então aguardo a repercussão que a denúncia da anunciada dilapidação de nosso acervo documental cobra. Silêncio total da imprensa, a começar pela própria Folha, porém. Silêncio do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, da acomodada universidade brasileira e dos cursos de história, silêncio da SBPC, do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Letras, silêncio sepulcral da União Nacional dos Estudantes... silêncio da sociedade brasileira, retrato do quadro constrangedor do Brasil de hoje.
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Um servo no STF - A sabujice da maioria dos senadores nos brindou mais um ministro do STF sem lustro e sem biografia. Por 47 votos contra 32, André Mendonça teve aprovada sua indicação para ocupar, até 2047, um posto na mais alta corte do país. Advogado de saber jurídico desconhecido, Mendonça deixou o anonimato – nesta triste quadra de nossa História que traz ao proscênio atores que mal servem para figurantes – com a ascensão ao poder do capitão protofascista, de quem se declara “servo”. Na AGU e no Ministério da Justiça, com efeito, destacou-se pelo empenho com que se utilizou do cargo para perseguir e tentar intimidar opositores do governo de seu mestre e senhor. Sua escolha é, evidentemente, uma lástima para uma corte em que já atuaram Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Adauto Lúcio Cardoso. Para não deixar dúvida a este respeito, apenas finda a sessão, o neófito declarou que sua aprovação era “um passo para um homem, um salto para os evangélicos” – somando bazófia a falta de imaginação, e abandonando as juras de amor ao Estado laico que acabara de fazer para garantir a vaga.
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