O Acordo de Alcântara e a violação da soberania nacional
É imperativo que o parlamento brasileiro possa reagir a este agressivo assédio e que impeça a celebração de acordos pautados pelas circunstâncias do período mais subalterno de nossa história. Não há dúvidas a respeito da importância de fortalecer o Programa Espacial Brasileiro
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Por Larissa Ramina, Carol Proner e Gisele Ricobom
*Doutoras em direito internacional, membros da Secretaria de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD
Recentemente Jair Bolsonaro reagiu a declarações do Presidente francês Emmanuel Macron condenando as queimadas na Amazônia, alegando violação da soberania brasileira. É importante pontuar que soberania nacional não é incompatível com o interesse internacional na preservação da maior floresta tropical do mundo, o que nos obriga a uma reflexão ressalvada do que significa efetivamente defender a soberania nacional.
Paradoxalmente, o ufanismo indecoroso do governo brasileiro não parece tão engajado em outras situações. Acumulam-se exemplos de desnacionalização de nossos interesses para beneficiar os Estados Unidos. Desde o fim da exigência de visto para cidadãos norte-americanos sem qualquer contrapartida, fazendo com que o governo federal deixe de arrecadar cerca de R$ 60,5 milhões por ano, são ostensivas as medidas em proveito do Big Brother. Notem-se as negociações relativas à perda do controle acionário da Embraer, terceira maior empresa de fabricação de aeronaves do mundo, para a norte-americana Boeing, já que se trata de empresa estratégica na geopolítica militar (o negócio envolve a criação de uma nova empresa com o setor de aviação comercial da Embraer, o mais lucrativo da empresa e competitivo internacionalmente); ou a entrega do Pré-sal, jazida com estimativa de 143,1 bilhões de barris – recursos que já estão sendo entregues para exploração internacional desde o golpe de Estado de 2016, quando foram leiloados a valor inferior ao que teria sido gerado de recursos para o país se tivessem sido explorados pela Petrobras; também são exemplos, na área agropecuária, a concessão de uma cota de até 750 mil toneladas para importação de trigo dos EUA sem taxas e a abertura do mercado brasileiro para a carne suína estadunidense sem contrapartida imediata.
Alcântara segue na mesma direção. A celebração do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas – AST com os EUA para a utilização da Base de Alcântara, no Maranhão vem sendo construído de modo pouco transparente e sem a participação popular, representando graves riscos aos interesses do país, a começar pelo fato de ser negociado por um presidente que bateu continência para a bandeira americana durante as eleições de 2018.
No final da década de 1970, o governo militar lançou a Missão Espacial Completa Brasileira, que previa a criação de um centro espacial no País. A área escolhida foi a Ilha do Cajual, onde fica a cidade de Alcântara, no Maranhão. O local é considerado uma das melhores zonas de lançamento do mundo, por estar próximo da linha do Equador, que permite economizar 30% no combustível necessário para essas operações. O local é ideal para os EUA na América do Sul, pois está em frente à África e é estratégico para sua geopolítica mundial de confronto com a Rússia e com a China. Por outro lado, Alcântara está na Foz do Amazonas, no Atlântico Sul.
Não é de se desprezar os movimentos coordenados que estão acontecendo em outras frentes. Os EUA já reativaram a quarta frota naval em 2008, e por isso pretendem utilizar o espaço geográfico brasileiro para o controle de todo o Atlântico Sul.
O Brasil nunca conseguiu realizar lançamentos para colocar satélites em órbita. Décadas depois e três tentativas fracassadas de mandar para o espaço veículos lançadores de satélites (VLS) – em uma delas 21 pessoas morreram -, o governo Bolsonaro assinou o Acordo em março de 2019, que vinha sendo negociado desde o golpe de 2016. Cabe lembrar que um primeiro AST foi firmado com os EUA em 2000, tendo sido barrado no Congresso Nacional. Em 2002, foi firmado outro Acordo com a Ucrânia, que viria a criar a Alcântara Cyclone Space, empresa binacional com o objetivo de comercializar e lançar satélites utilizando-se da tecnologia de foguetes ucraniana e do CLA. O Acordo foi abandonado definitivamente em 2015 por motivos variados, mas sobretudo porque os EUA nunca admitiram que o Brasil tivesse um programa espacial autônomo.
Basicamente, o AST atual visa regulamentar o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) por parte do governo norte-americano e de empresas desse país. Foguetes e satélites desenvolvidos com tecnologia estadunidense, tanto do governo como de empresas privadas autorizadas por ele, poderão ser lançados de Alcântara, e o Brasil receberá como contrapartida uma compensação financeira com o aluguel da base.
O problema é que o Acordo está envolvido em uma séria de polêmicas e de suspeitas de atentar contra a soberania nacional. Já no Artigo I, fica evidente que a maior limitação imposta pelos EUA está no cerceamento da transferência de tecnologia, quando prevê que “Este Acordo tem como objetivo evitar o acesso ou a transferência não autorizados de tecnologias relacionadas com o lançamento, a partir do Centro Espacial de Alcântara...”. Tal limitação interfere nas decisões soberanas do Brasil no sentido de desenvolver tecnologia avançada na área espacial, pois está explícito que não haverá transferência tecnológica para que o Brasil retome a construção de seus próprios VLS.
No Artigo II §14 e 15, o Acordo prevê a existências de “áreas restritas” e “áreas controladas”. “Áreas controladas” seriam áreas cujo acesso é controlado por Brasil e EUA, ao passo que “áreas restritas” seriam áreas onde o Brasil “somente permitirá acesso a pessoas autorizadas pelo Governo dos Estados Unidos da América”. Dito de outra forma, o Brasil não tem terá qualquer controle das atividades exercidas nas áreas restritas, pois não terá acesso, não poderá fiscalizar os equipamentos, ou seja, não saberá o que está sendo lançado e nem o destino do lançamento.
No Artigo III, §1, (A) o Brasil assume o compromisso de não permitir o lançamento de “Espaçonaves Estrangeiras ou Veículos de Lançamento Estrangeiros de propriedade ou sob controle de países os quais, na ocasião do lançamento: ...tenham governos designados por uma das Partes como havendo repetidamente provido apoio a atos de terrorismo internacional.” Ora, o Brasil fica impedido de decidir para quem vai alugar a base, pois não poderá aluga-la para países que os EUA unilateralmente listarem como apoiadores do terrorismo. Atualmente, estão nesta lista Irã, Coreia do Norte, Sudão e Síria, embora ela sofra alterações regularmente. Todavia o Irã, por exemplo, é parceiro estratégico do Brasil. Nesse sentido, não seria exagero observar que o AST serve para garantir que os EUA reservem o direito de determinar quem usará a base.
No §1, (B) do mesmo Artigo III, o Brasil de compromete a “não permitir o ingresso significativo, quantitativa ou qualitativamente, de equipamentos, tecnologias, mão-de-obra ou recursos financeiros no Centro Espacial de Alcântara, oriundos de países que não sejam Parceiros (membros) do MTCR”. Ocorre que o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR, na sigla em inglês) só tem 34 Estados-membros, dentre os quase 200 países existentes hoje. Portanto, o Brasil fica proibido de lançar satélites em parceria com países como a China, por exemplo.
Já o Artigo III, § 2 dispõe que o Brasil “poderá utilizar os recursos financeiros obtidos por intermédio das Atividades de Lançamento para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do Programa Espacial Brasileiro, mas não poderá usar tais recursos para a aquisição, desenvolvimento, produção, teste, emprego ou utilização de sistemas da Categoria I do MTCR.” Na prática, isso significa a proibição do uso de recursos gerados em Alcântara para financiar o Programa Espacial Brasileiro, evitando que o Brasil avance no desenvolvimento da tecnologia para construção de seus próprios sistemas completos de foguetes e veículos aéreos não tripulados (incluindo mísseis balísticos, veículos espaciais, foguetes-sonda, mísseis de cruzeiro, drones-alvo e drones de reconhecimento), capazes de fornecer uma carga útil de pelo menos 500 kg a uma faixa de pelo menos 300 km, seus principais subsistemas completos (como estágios de foguetes, motores, conjuntos de orientação e veículos de reentrada) e software e tecnologia relacionados, além de instalações de produção especialmente projetadas para esses itens.
O exame dos primeiros artigos do AST já sugere a possibilidade de violações à soberania nacional. De fato, parece que seu objetivo principal é assegurar aos EUA uma base militar em território brasileiro na qual exerçam sua própria soberania em detrimento da soberania brasileira, e onde possam desenvolver livremente atividades de cunho militar. Essa situação impõe limites diretos à soberania territorial do Brasil, tratando-se de verdadeira cessão de parte do território brasileiro, na qual o Brasil não terá acesso livre sem autorização de um país estrangeiro. Isso equivale a concordar em que o território brasileiro possa ser utilizado pelos EUA para quaisquer finalidades, inclusive militares, atentando contra a soberania nacional e consequentemente contra a própria Constituição Federal de 1988. Por outro lado, o Acordo não pressupõe a contrapartida de transferência de tecnologias dos EUA para o Brasil, impede o desenvolvimento da tecnologia espacial brasileira, e se satisfaz tão somente com uma contrapartida financeira relativa ao aluguel da área.
A defesa do AST pelo governo brasileiro se baseia em argumentação de cunho exclusivamente econômico, escapando da discussão das implicações de um alinhamento geopolítico e tecnológico com os EUA no setor espacial. Isso porque o Acordo cria salvaguardas políticas, além das tecnológicas, impondo limites à soberania nacional. Se a vantagem brasileira será exclusivamente econômica, o Brasil poderia assinar contratos específicos para cada lançamento, não tendo justificativa para aceitar tamanhas limitações a sua soberania territorial. A terceirização de áreas fundamentais para a defesa de um Estado, como no caso do CLA, pode ser um erro estratégico gravíssimo, pois a partir do momento em que os EUA se instalarem em Alcântara, será mais fácil manter a política externa brasileira alinhada aos seus interesses, e cada vez mais difícil adotar uma política externa independente.
Infelizmente, desde o golpe de Estado de 2016 o país amarga uma postura diplomática antinacional, que o coloca numa posição de subordinação a interesses estrangeiros. Há um mudança de rumo evidente das posições do Brasil em relação a América do Sul, com o enfraquecimento do Mercosul e da Unasul, e em relação a parceiros estratégicos, com o afastamento dos Brics, que reúne Rússia, Índia, China e África do Sul. O retrocesso é tamanho que se pode falar de subalternização explícita aos interesses dos EUA.
Mais grave ainda é a situação quando consideramos que essas decisões vêm sendo tomadas sem a participação popular, atendando contra a soberania popular, que por sua vez está estritamente vinculada aos valores democráticos.
É imperativo que o parlamento brasileiro possa reagir a este agressivo assédio e que impeça a celebração de acordos pautados pelas circunstâncias do período mais subalterno de nossa história. Não há dúvidas a respeito da importância de fortalecer o Programa Espacial Brasileiro e, por essa exata razão, é preciso garantir que seja feito da forma mais altiva e soberana possível, respeitando a nossa tradição em defesa nacional.
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