Nuances na literatura

Se o singelo beijo nos quadrinhos da bienal do Rio de Janeiro levou ao descalabro do prefeito daquela cidade, o que se dirá da biografia de Mário de Andrade, com algumas revelações sobre sua homossexualidade?



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Em tempos de censura clara e deslavada, estas reflexões são alguns assuntos sobre questões literárias recentes. Se o singelo beijo nos quadrinhos da bienal do Rio de Janeiro levou ao descalabro do prefeito daquela cidade, o que se dirá da biografia de Mário de Andrade, com algumas revelações sobre sua homossexualidade? Isso obviamente não me importa tanto quanto os meandros de sua elaboração intelectual e literária. São esses momentos da formação intelectual do país que precisam ser urgentemente resgatados. Espero também que algo elucidativo sobre a (não) participação de Lima Barreto no modernismo também tenha sido abordada nessa biografia ainda não lida.

Nessa ressaca pós-luto pela independência do País, foi esperançoso ler sobre o trabalho dos que lidam com leitura no cárcere, ou seja, o trabalho de levar obrar literárias aos presos. O livro liberta, estando o leitor atrás de grades ou não. Pena que a mesma diretriz não seja aceita pelos governantes que insistem em censurar a literatura baseando-se em políticas de costumes e crenças míticas.

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Duas curiosidades incluo nestas reflexões. Nas comemorações do centenário de Primo Levi, uma carta do escritor italiano a parentes brasileiros foi recentemente descoberta e a tradução trazida a público no meio do ano. Essa abordagem motiva-me ainda mais a conhecer a obra de Primo Levi, dadas nossas semelhanças. Químicos, com certeza; escritores, da minha parte nem tanto. A carta de Levi mostra sua clareza e precisão na descrição dos fatos, mas alimenta a curiosidade sobre uma anterior perdida, mais longa ainda, segundo ele menciona. Da mesma forma que a busca da experiência da infância explica nossa formação, não existe a ruptura entre o escritor e o cientista, reforçando o camoniano verso “engenho e arte”.

O inusitado apareceu também no artigo “Parceiros na letra N”, de Álvaro Costa e Silva, nos brindando com uma crônica sensível sobre o poeta do samba Elton Medeiros, recém falecido, revelando também mais uma faceta do preconceito e racismo estruturais do Brasil, quando do registro cartorial de nomes equivocados feito de propósito. Elton revelou que seu nome era oficialmente grafado sem a letra n. Mais do que nunca, o samba de raiz também é resistência cultural neste país lançado às sombras da ignorância.

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Por fim, cito nestas considerações o editor da Folha de S. Paulo Otavio Frias Filho, ainda que de forma um pouco deslocada em função do seu falecimento ainda recente. A regra é escrever memórias agradáveis apenas de quem já morreu, como os representados neste artigo. A morte não tem hora, mas tem lugar certo: aqui. Assim, as palavras de Eduardo Giannetti sobre Otavio Frias Filho em artigo no caderno Ilustríssima daquele jornal de agosto passado são, ao mesmo tempo, doces e profundas, mas fica o quê de vontade de ter conhecido antes as múltiplas facetas desse editor.

Adilson Roberto Gonçalves, pesquisador da Unesp, vice-presidente da Academia Campineira de Letras e Artes e membro da Academia de Letras de Lorena

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