“Novo popular” de R$ 60 mil não sairá do papel

Anfavea, que não quer a concorrência dos chineses, já tirou o corpo. Toyota, mesmo com lucro de R$ 40 bilhões no país, se prepara para fechar fábrica brasileira

Alckmin com Lula e pátio de carros
Alckmin com Lula e pátio de carros (Foto: Ricardo Stuckert/PR | Reuters)


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Hoje, até o mais crédulo dos brasileiros deve estar se perguntando, com cara de troncho, sobre o “novo carro popular”. Anunciada na última quinta-feira, pelo vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, a retomada de uma ideia que, lá atrás, fez os modelos 1.0 dominarem as ruas ainda não materializou, apesar de portais e jornalões terem adiantado uma lista com os preços “atualizados” de alguns modelos abaixo dos R$ 120 mil, sempre com o desconto máximo sugerido por Alckmin, de 10% – numa mistura de infantilidade, má-fé e busca por cliques. Menos de uma semana se passou e já deu para ver que, entre o anúncio e a realidade, existe um verdadeiro abismo. “Todos os esforços para a retomada das vendas serão em vão, se as taxas de juros não forem reduzidas”, avisa o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite. “O plano foi bem recebido pelas montadoras, mas não podemos dar certeza de nada”, acrescentou Leite, tirando o corpo fora sobre os descontos prometidos e deixando o governo federal pendurado na brocha, enquanto a Toyota esvazia as gavetas para fechar sua fábrica brasileira no final deste ano, botando mais operários na rua e aumentando a lista das marcas em debandada.

Segundo a subsidiária brasileira da JATO Dynamics, que fornece dados para a análise das tendências do mercado, a Toyota lucrou – não é faturou, não, é ‘lucrou’ – R$ 39 bilhões no país, em 2022. Apesar disso, a matriz japonesa não parece estar satisfeita com as remessas de lucro que a “colônia” tem enviado. “As altas taxas de juros são um fator que afeta o mercado, negativamente”, justifica o presidente da marca no Brasil, Rafael Chang. “Os danos já foram feitos”, complementa o executivo. Nos últimos dez anos, o preço do Corolla GLi mais do que dobrou, saltando de R$ 68 mil para R$ 149 mil – alta de 120%. No mesmíssimo período, o preço do sedã, em Portugal, foi de 25.600 euros para 34.380 euros, mas, lá, a alta de menos de 35% se justifica pela troca do motor a combustão por uma unidade híbrida – aqui, só mudou a “casca”.

Como o leitor deve saber ou, minimamente, desconfiar, a Anfavea representa as transnacionais do setor automotivo que, da mesma forma que Portugal fazia na era colonial, estão aqui única e exclusivamente para explorar o mercado brasileiro e remeter os lucros de sua operação para suas matrizes. Em outras palavras, essas marcas não estão aqui para fazer caridade, mas para ganhar dinheiro, juntá-lo e mandá-lo para o exterior, de modo que sua contribuição social se resume aos impostos que recolhem. “O que as marcas fizeram, no Brasil, foi manter os preços dos 0 km, todos equipados com velhos motores a combustão, num nível imediatamente abaixo dos EVs, se aproveitando de incentivos e até mesmo da redução dos preços dos combustíveis, no governo de Jair Bolsonaro”, avalia a pesquisadora e analista da Fastmarkets, Phoebe O’Hara. “Então, o preço mais baixo destes modelos garantiu aos fabricantes que o consumidor seguisse comprando, mas esta acessibilidade era relativa e a estagnação chegou”.

O’Hara chama atenção para aquilo que venho falando, gritando aqui neste prestigiado espaço há pelo menos dois anos: que o Brasil escolheu um caminho marginal à virada da eletromobilidade, seguindo com automóveis sucateados no mercado por preços aviltantes que, agora, as montadoras sequer conseguem manter, já que a pressão das matrizes é por remessas de lucro cada vez maiores. As marcas irão fechar suas fábricas e seguir operando, apenas com importados, com preços acima de R$ 200 mil. E qualquer anormal consegue enxergar que o jovem brasileiro com 16 ou 17 anos, hoje, não terá condição de adquirir um 0 km, nem quando tiver 35 anos de idade e dez, de carreira profissional!

Única salvação

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A única salvação que a indústria automotiva nacional tem, neste momento capitular, é uma parceria entre o governo federal e um grande fabricante chinês de EVs, que viabilizasse a montagem doméstica de veículos 100% elétricos. Estes EVs, então, poderiam ser ofertados por preços subsidiados ao consumidor, obrigando os fabricantes tradicionais que seguissem produzindo no país a modernizarem suas fábricas e promoverem uma virada industrial. Não é à toa, portanto, que a Anfavea luta pelo fim dos subsídios que, hoje, beneficiam a importação de EVs e de autopeças para veículos 100% elétricos: “Se o volume de vendas de EVs, no Brasil, permanecer baixo, tudo bem”, diz o presidente da Anfavea, Márcio de Lima Leite. “Mas se a regra – atual – continuar, a China poderá colocar no mercado brasileiro EVs que serão vendidos por US$ 5.000 (o equivalente a menos de R$ 27 mil)”, protesta Leite. Traduzindo para os mais ingênuos: as marcas que estão escalpelando o consumidor brasileiro, vendendo um franciscano Renault Kwid por R$ 70 mil, não querem que você tenha um compacto 100% elétrico por menos do que isso. Se o próprio presidente da entidade é que está falando, qual a dificuldade em entender isso?!?

Nunca é demais frisar que a política de desonerações só faz desviar o dinheiro do contribuinte, que poderia ser aplicado na criação de uma rede pública de recarga para EVs, para as matrizes das marcas que operam no Brasil. Junto com a proposta do “novo carro popular”, que ainda será avaliada pela Fazenda antes de tomar forma definitiva, o governo aprovou uma linha no Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDS) de R$ 20 bilhões (equivalentes a US$ 4 bilhões) para financiar a indústria nacional. Nos próximos quatro anos, os fabricantes que tomarem dinheiro emprestado no BNDS vão pagar juros anuais de 1,7%, enquanto a taxa básica (Selic) está atualmente em 13,75%. Ou seja, o “desenvolvimento social” será completamente subvertido para bancar a financeirização das operações de crédito dos bancos das montadoras.

“Pela primeira vez, estamos vendo uma política que pode reanimar a indústria”, comemora o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Andrade. “Queremos que o setor volte a responder por 48% do Produto Interno Bruto (PIB)”, acrescentou Andrade. Uma fantasia, já que, hoje, nossa indústria responde por cerca de 20% do PIB nacional, um dos menores resultados históricos desde o final dos anos 40. Apenas para o leitor ter uma ideia, em 1980, as montadoras brasileiras puxavam o país para uma participação de 6,5% no PIB mundial, contra menos de 2%, atualmente. A expectativa da CNI, portanto, não se justifica por nada que seja plausível, porque a desoneração poderá, no máximo, aquecer um pouco as vendas de 0 km, baixando os estoques, mas jamais reverterá o sucateamento do setor que não tem a mínima perspectiva, na medida em que perde importância para as matrizes.

Manobra financeira

Este esperado aumento nas vendas, que não tem garantia nenhuma de ocorrer na prática, se dará por meio de financiamentos que o consumidor irá contrair, a partir da linha de crédito com juros anuais de 1,7% dada aos fabricantes, que lhe será repassada por algo entre 1% e 1,5%, ao mês. Na ponta do lápis, é como se uma marca pegasse R$ 100 mil de dinheiro público emprestado e o repassasse para o cliente da seguinte forma: em cinco anos, ela receberia R$ 190 mil, enquanto devolveria aos cofres públicos apenas R$ 118.500 – os R$ 71.500 de diferença seriam embolsados sem que ela aportasse um único centavo em melhorias fabris ou desse R$ 10 reais de aumento, para seus operários. É, apenas e tão somente, uma manobra financeira que vai pegar os impostos pagos pelo contribuinte e convertê-los em lucro para os fabricantes que, para piorar o cenário, terão desconto nos seus próprios tributos.

Em 2012, o governo petista zerou o IPI dos 0 km. Na época, a medida que implicou na renúncia de R$ 26 bilhões de dinheiro público não aumentou as vendas, que, na contramão do esperado, recuaram 0,3%. Naquele ano, o objetivo da desoneração não era o aquecimento do mercado interno, mas a manutenção dos empregos no setor automotivo e, neste ponto, foram criadas mais de 27 mil vagas de trabalho, mesmo que temporárias. Porém, o resultado a médio prazo foi negativo, já que, entre 2014 e 16, as montadoras demitiram 200 mil trabalhadores. Então, basta olhar para os US$ 14,6 bilhões (na época, equivalentes a R$ 25,9 bilhões) em remessas de lucro enviadas para as matrizes, no exterior, que o leitor verá para onde foi o dinheiro, há 11 anos. E desta vez, será igualzinho.

É, simplesmente, inacreditável. Em qualquer país, mesmo nos mais pobres deles, um absurdo desses seria suficiente para ebulir uma revolta popular, mas aqui, em Pindorama, veremos muita gente fazendo fila nos concessionários, achando que está fazendo um negócio da China...

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