No recadastramento, brasileiros tiveram de lutar pelo direito de voto

"Ao contrário do que sugeriram ministros do STF que cassaram titulo eleitoral de 3,4 milhões de brasileiros dando a entender  que não se empenharam o suficiente para garantir o direito de voto, reportagens sobre o recadastramento mostram cidadãos capazes de passar o dia inteiro na fila e até dormir na calçada para garantir presença nas urnas da eleição presidencial", escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247

No recadastramento, brasileiros tiveram de lutar pelo direito de voto
No recadastramento, brasileiros tiveram de lutar pelo direito de voto


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Considerando que os 3,4 milhões de eleitores excluídos do pleito presidencial estão destinados a se tornar assunto obrigatório na contagem de votos, nunca é tarde para esclarecer o que aconteceu.

Em minha opinião, a reconstituição do recadastramento biométrico organizado em 22 estados da federação mostra um típico caso de banalidade do mal, conceito formulado pela pensadora Hanna Arendt para expor as deformações culturais e políticas de altos funcionários de regimes totalitários.

Estou convencido só a arrogância típica das altas burocracias pode explicar a eliminação dos direitos políticos de milhões de cidadãos e cidadãs no Brasil -- como se fosse um ato de rotina. 

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Vivemos num país onde o voto é obrigatório, e uma pessoa só pode ser impedida de comparecer às urnas caso cumpra sentença penal com  transito em julgado.

A outra hipótese de perda de direitos eleitorais é administrativa. Por sua natureza, só pode ser admitida com extrema cautela, já que envolve uma das penas mais graves de um regime democrático -- cassação de direitos políticos -- para faltas e irregularidades que, frequentemente, são responsabilidade do Estado e não do cidadão que será punido.

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Se a ideia do cadastramento biométrico era regularizar a situação de uma parcela do eleitorado, o saldo numérico foi um fiasco memorável. Entre 4,6 milhões de títulos inicialmente cancelados, apenas 1,3 milhão foram regularizados -- perto de um terço do total.

Por que? Nos debates no STF, relator Luiz Roberto Barroso, que liderou uma maioria de 7 votos a 2,  eximiu a própria Justiça Eleitoral de qualquer responsabilidade, chegando a rememorar um fato pitoresco. Lembrou que, no esforço para convocar os eleitores para o recadastramento, a Justiça Eleitoral baiana chegou a colocar anúncios em estádios de futebol -- deixando claro que nem assim os possíveis eleitores apareceram. 

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Por trás dessa argumentação, que também seria reproduzida por outros ministros, sustenta-se a visão de que a responsabilidade pela perda dos direitos políticos de 3,4 milhões de pessoas deve ser atribuída aos próprios eleitores prejudicados, que não teriam se empenhado como deveriam para garantir o direito de votar. 

Lendo a coluna de Lucas de Abreu Maia, na edição eletrônica da Piauí, encontrei uma outra visão: "Sugiro que o leitor faça uma breve pesquisa no Google por 'filas recadastramento biométrico Bahia. Os resultados revelam o caos. No último dia para regulamentação da situação eleitoral, houve gente que chegou à fila às 2h – e que, quase 24 horas depois, ainda não tinha sido atendida. Houve fila sendo organizada em folha de caderno. Houve, de sobra, eleitor que ficou na fila em vão, sem conseguir cadastrar-se'".

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Seguindo a dica, pude comprovar que a realidade a vista na internet vai por aí. Na Bahia, estado mais atingido tacão da Justiça Eleitoral, numa etapa inicial 927.264 títulos foram cancelados. Após sucessivas campanhas de recadastramento ao longo de dois anos, 586.333 continuarão de fora do pleito presidencial.  

Ao contrário do que se poderia imaginar pela metáfora dos campos de futebol, os fatos mostram uma situação na qual eleitores correram atrás de seus títulos com um empenho inegável. Em muitos casos,  só conseguiram obter o documento após sacrifícios imensos e uma disposição fora do comum.

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Conforme reportagem da TV Bahia publicada pelo portal G1 em 9 de janeiro de 2018, quando faltavam 22 dias para o fim do recadastramento no Estado, 800 mil pessoas ainda corriam o risco de perder o título. No esforço para garantir o direito ao voto, a pedagoga Miriam Brasileiro contou que precisou dormir na estação do metrô localizada nas proximidades  para ser atendida. Foi uma lição aprendida na véspera:  "eu cheguei aqui 4h30 da manhã e já tinha 250 pessoas na frente. Aí, eu vim hoje de novo. Cheguei 22h30 de ontem e dormi aqui mesmo. Só assim para conseguir".  

Uma cena semelhante ocorreu em, Camaçari, conhecida pelo polo petroquímico. Ciente das imensas filas que iria encontrar, e mesmo assim disposta ao sacrifício, a  acompanhante de idosos Janete de Oliveira levou um papelão e um tapete para dormir na calçada. "Vou ficar até amanhã aqui na fila", disse ela, cuja imagem, acomodada ao relento, foi exibida pela TV local.

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Em 22 de março de 2018, penúltimo dia, o portal R-7 esteve em Guarulhos, uma das 92 cidades de São Paulo atingidas pelo recadastramento. Ali, Leonilde de Araújo, de 42 anos, disse que deixou a regularização da biometria para a última hora porque tem pouco tempo disponível. "Eu cuido da minha mãe e do meu sobrinho, aí não tenho tempo, no caso, para vir antes disso. Eu vim de última hora e ainda deixei minha mãe na mão da vizinha. Para mim, é uma sacanagem isso daí. É uma roubalheira que eles fazem isso com a gente, porque a gente fica numa fila esse tempo todo para resolver uma coisa tão simples e eles deixam para resolver de última hora. No caso, eles tinham que fazer três meses antes, entendeu?"

O conferente de e-commerce Washington Queiroz, de 30 anos, morador de Guarulhos, contou ao portal que  enfrentou o sol quente e a fome para regularizar a biometria. "Estamos aí tentando fazer a biometria para fazer do Brasil, quem sabe, um país melhor acertando na votação", afirmou. O desempenho geral do Estado de São Paulo ficou no mesmo padrão da Bahia.  Dos 535.297 títulos cancelados, apenas 160.128 -- pouco mais de um terço -- foram salvos, enquanto 375.169 foram para o cadafalso.

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Em 19 de março ao G1 anunciava que o prazo para os eleitores de Belém realizarem o cadastramento biométrico encerra na próxima sexta-feira (23). Citando o TRE, o site dizia que 250 mil ainda se encontravam pendentes. No fim do prazo, 204.914 títulos foram cancelados e 84.823 conseguiram regularizar a própria situação.

Não é difícil chegar a uma conclusão lógica. Se o sacrifício de quem obteve o título pode até merecer conhecidos elogios ao espírito cívico dos brasileiros, como nossas autoridades adoram repetir periodicamente, não pode servir para esconder as dificuldade de quem acabou ficando de fora.

Como está na moda campanha presidencial de 2018, pode-se dizer que Justiça Eleitoral está devendo uma autocrítica sobre o lamentável trabalho realizado: excluiu 3,4 milhões de eleitores para regularizar a situação de apenas 1 milhão e 300 mil. Como se discutiu na tarde do 7 a 2, a melhor forma de remediar o erro cometido será autorizar o eleitorado proibido de votar no primeiro turno a voltar as urnas em 27 de outubro. A ideia foi apresentada por Ricardo Lewandowski na triste jornada na qual os 3,4 milhões de brasileiros e brasileiros foram excluídos do exercício da nossa democracia. Se não repara o erro de impedir a participação no primeiro turno, pelo menos diminui o dano causado.

Algumas consequências políticas desse desfalque de eleitores são difíceis de negar. A maioria das exclusões ocorreram no Norte e Nordeste, região de forte presença do Partido dos Trabalhadores. A Bahia, campeã nacional para 2018,  é um conhecido reduto do PT, prevendo-se que o governador Paulo Costa deverá ser reeleito em primeiro turno e que o candidato ao senado Jaques Wagner terá uma votação recorde. O corte de eleitores -- talvez -- não faça diferença no plano estadual mas pode prejudicar a contabilidade federal de Fernando Haddad. Segunda cidade mais populosa de São Paulo, vice-campeão de exclusões, Guarulhos é uma velha fortaleza do PT. Entre 2002 e 2016, todos os quatro prefeitos eleitos da cidade eram filiados ao partido.

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