No laboratório da história
Professor aposentado do IFSP Valério Arcary avalia a esquerda revolucionária no Brasil e na Argentina
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Por Valério Arcary
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Quem são os revolucionários? Quais devem ser os critérios para a classificação das distintas correntes na esquerda brasileira? Alguns parâmetros simples podem nos ajudar para definir o que é suficiente para ganhar a medalha revolucionária.
Ter uma posição revolucionária nas polêmicas sobre o que aconteceu em outro lugar do espaço-tempo, por exemplo, na Rússia em 1927, na Alemanha em 1933, ou na Argentina em 2002, não é o bastante. A história conta muito, mas não pode ser o que decide. Quem usa esta régua são os partidos-museu. Vivem no passado. Podemos ser melhores do que isso. Há três possíveis grandes parâmetros para responder a esta pergunta.
(a) O mais simples é aceitar a autodeclaração. Revolucionários são todos os que assim se definem. Não parece muito marxista, porque não deveríamos fazer juízos a partir daquilo que indivíduos ou organizações pensam de si mesmas. Mas é o mais simples.
(b) O mais restrito é cada corrente, militante ou intelectual classificar como revolucionários somente aqueles que concordam com seus critérios. Ou seja, quem tem identidade com suas posições. Não parece, também, muito razoável, porque cada tendência estaria somente romantizando a sua solidão política autoproclamatória.
(c) O terceiro é mais rigoroso que o primeiro e menos sectário que o segundo e, talvez, mais útil. Revolucionários seriam aqueles coletivos que, nos momentos chaves da luta de classes no Brasil, passaram pelas provas do laboratório da história, portanto, defenderam uma política de independência de classe, ainda que com diferenças táticas uns com os outros.
Na sequência, se usa o primeiro critério. Três apostas estratégicas dividem aqueles que na esquerda brasileira se apresentam como revolucionários. São três projetos distintos: a refundação/renovação do PT, a construção de uma organização revolucionária homogênea e independente, e o PSol como um projeto anticapitalista amplo. Há marxistas de distintas tradições engajados nos três: trotskistas, neoestalinistas, neomaoistas, gramscianos, luckacianos, e outros. As diferenças não se resumem, somente, ao programa, o que é muito importante, mas, também, à localização de espaço político. Qual deles se demonstrou até agora mais promissor? E por quê?
(1) O projeto de que o PT poderia interromper a sua dinâmica de crise era uma hipótese plausível, e ainda permanece viva, ainda que debilitada, em função de variados fatores. Não seria a primeira vez um partido reformista seria capaz de fazer um giro à esquerda, depois de uma grande derrota. Parecia mais animadora em 2018, quando se demonstrou irrefutável a autoridade política de Lula, mesmo preso, de transferir apoio para Fernando Haddad, e levá-lo ao segundo turno contra Bolsonaro. Ficou confirmado que a experiência com o reformismo não tinha sido esgotada, mas interrompida. Dois anos depois parece improvável, ou muito mais difícil, ainda que não seja impossível, que a corrente majoritária do PT venha a se dividir liberando forças para uma nova direção, uma condição sine qua non de uma revolução interna;
(2) O projeto das organizações marxistas de construção de um partido ou frente revolucionária independente, inspirado na experiência argentina que culminou na FIT, e que se apoia na premissa de que a experiência de ruptura com o PT abre, sema necessidade de mediações, o caminho para que a política revolucionária conquiste influência de massas não se confirmou. Ao contrário, parece estar estagnado, talvez, em um beco sem saída, com crescente enfraquecimento dos núcleos que fizeram esta aposta, como revelou o desempenho eleitoral invisível de 2020;
(3) O projeto de construção do PSol como um partido anticapitalista amplo unindo correntes revolucionárias, reformistas radicais e tendências intermediárias foi, até momento, aquele que conseguiu avançar de forma mais sólida, conquistando respeito na juventude trabalhadora de escolaridade média e superior, nos movimentos de mulheres, negros, LCBTIQ’s, ambiental de direitos humanos, indígenas, de direitos humanos e antiproibicionistas.
O fracasso da tática de construção de um partido ou Frente revolucionária independente nos remete ao paralelismo da evolução econômico-social e política nos dois países mais importantes do Cone Sul. No Brasil, em comparação com a Argentina, quando pensamos em perspectiva histórica, esse projeto não somente não avançou como retrocedeu. Por quê?
Há dois campos de análise para responder a este problema. O primeiro é que a explicação seria subjetiva. Mas a “argentinização” da análise da situação da esquerda revolucionária brasileira favoreceu comparações improdutivas. A esquerda brasileira não é menos revolucionária, menos proletária, ou menos marxista que a argentina. Tampouco é, infelizmente, menos sectária. A explicação mais complexa ou madura nos remete às diferenças nas condições objetivas, ou seja, nas peculiaridades de cada país. No Brasil as mediações foram muito maiores, portanto, situações mais adversas:
A primeira é que no momento decisivo da luta pelo fim da ditadura militar a Argentina viveu a derrota na guerra das Malvinas, o que impulsionou mobilizações que radicalizaram as massas populares e impulsionaram uma ruptura democrática, incomparavelmente, mais profunda. Os líderes da ditadura militar foram a julgamento e foram condenados. No Brasil, o fim da ditadura militar só foi possível com as maiores mobilizações políticas de nossa história, mas a direção nunca escapou das mãos dos representantes da fração burguesa liberal, e prevaleceu uma concertação que manteve intacto o aparelho militar. Nesse contexto, o peronismo estava em relativa decadência na Argentina, e o PT em vigorosa ascensão. Quem na esquerda brasileira não se uniu à construção do PT ficou condenado à marginalidade do processo de reorganização mais dinâmico.
A segunda é que, no Brasil, a estabilização do regime democrático-eleitoral foi menos turbulenta. Ou, por outro ângulo de análise, a longa decadência do capitalismo argentino foi sempre mais acelerada, intensa, e contínua. Nos dois países a aposta das organizações revolucionárias mais estruturadas foi que a crise do capitalismo semiperiférico seria tão aguda que estava no horizonte estratégico a abertura de uma situação revolucionária. Essa hipótese, que se apoiava no conceito de que nas nações da periferia do capitalismo regimes democráticos não poderiam ter a longevidade das democracias nos países centrais, não se confirmou.
Não foi, evidentemente, um processo linear em nenhum dos dois países. A crise final do governo dos liberais do Partido Radical liderado por Alfonsín culminou com uma semi-insurreição que antecipou a posse de Menem, no final dos anos oitenta, levando o peronismo ao poder, mais de uma década antes do PT vencer as eleições em 2002. O primeiro governo eleito depois de trinta anos no Brasil em 1989 perdeu a legitimidade em dois anos, e foi deslocado por um impeachment de Collor em 1992. Em nenhum dos dois processos foi possível a esquerda revolucionário dar o salto de organizações de vanguarda com implantação nacional para a influência de massas. Mas no Brasil, depois de hesitações, o PT esteve na primeira linha. E nos dez anos seguintes não existiu espaço político à esquerda do PT na oposição aos governos de FHC e do PSDB.
No Brasil não se abriu uma situação pré-revolucionária depois da terrível década dos anos noventa e, na Argentina, sim. Ao final de 2001/02 – um ano após a queda da gestão peronista de Menem – a Argentina conheceu uma semi-insurreição. Em paralelo, em 2002, o Brasil viveu a eleição de Lula e a formação do primeiro governo do PT, que depois venceu as quatro eleições presidenciais seguintes.
A diferente natureza e influência do peronismo e do PT, ou mesmo do lulismo.
O peronismo foi uma corrente burguesa nacional-desenvolvimentista, que permite comparações com o getulismo, ainda que mais radical, porque ambas mantinham influência no movimento sindical atrelado ao Estado. Mas o varguismo sucumbiu, politicamente, como a principal corrente entre os trabalhadores, depois do golpe de 1964, ainda que o brizolismo tenha sido seu herdeiro. O PT ocupou o lugar de partido hegemônico entre os trabalhadores organizados desde os anos oitenta.
Já o peronismo sobreviveu, depois de Perón e da experiência da ditadura militar de 1976/82, mas na forma de um movimento fracionado em diversas alas e, comparativamente, menos poderoso que o PT. O espaço político para a construção de uma esquerda marxista independente na Argentina foi, durante os governos Kirchner’s, comparativamente, muito maior que o espaço para construção no Brasil pela esquerda e exterior ao PT, onde a reorganização assumiu maior dinâmica nos movimentos sindical e popular.
2013
Outra grande e decisiva diferença, embora de signo oposto, foi a mudança na situação brasileira com as jornadas de junho de 2013, um profundo divisor de águas. O governo liderado pelo PT foi desafiado pela maior mobilização de massas desde a luta pelas Diretas Já em 1984. Junho de 2013 foi uma onda explosiva, porém, acéfala e fugaz que levou às ruas uma nova geração de assalariados com escolaridade mais elevada, mas, também, as camadas médias exasperadas com o desgaste de suas condições de vida. O impulso progressivo prevaleceu, mas foi breve e confuso. A disposição de luta se esgotou, rapidamente, muito antes que a esquerda revolucionária pudesse se posicionar. Dilma Rousseff ainda venceu as eleições de 2014. Mas em 2015/16, foram as forças mais reacionárias que conquistaram a hegemonia nas ruas.
Na Argentina o governo de Cristina Kirchner terminou, melancolicamente, com uma derrota eleitoral que levou Macri à presidência. No Brasil, Dilma Rousseff foi derrubada por um golpe institucional, o PT passou a ser criminalizado por uma operação judicial, Lula foi condenado, preso, e impedido de ser candidato em 2018. Este desenlace desfavorável, dialeticamente, permitiu uma contenção da crise do PT, embora não tenha bloqueado o espaço à esquerda. Mas desqualificou aqueles que importaram da Argentina o “Que se vayan todos” de 2002, na forma de “Fora Todos” no auge da crise em 2016.
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