Nó de Família
"Num gabinete, que parece o presidencial, a luz da tarde que cai entra através das persianas e espalha uma sombra em forma de grade no chão da sala. Duas figuras, pai e filho, conversam num canto, um no sofá, outro no chão encostado no sofá. O pai afaga o cabelo do filho, digo, os poucos cabelos do filho", escreve Miguel Paiva, do Jornalistas pela Democracia
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Por Miguel Paiva, para o Jornalistas pela Democracia
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Num gabinete, que parece o presidencial, a luz da tarde que cai entra através das persianas e espalha uma sombra em forma de grade no chão da sala. Duas figuras, pai e filho, conversam num canto, um no sofá, outro no chão encostado no sofá. O pai afaga o cabelo do filho, digo, os poucos cabelos do filho.
FILHO- Fala pai, você queria conversar comigo. Estava na aula de tiro.
PAI- Guenta ai, filho. Tiro você pode dar a qualquer momento. Eu preciso conversar com você.
FILHO- Tô sabendo, mas pode parar de fazer cafuné. Tá fazendo cócega.
PAI- Seguinte, 03, acho que a embaixada no esteites subiu no telhado.
O filho se assusta e levanta.
FILHO- Pô, pai. Como não? Você prometeu e promessa de pai não é promessa de campanha. Tem que cumprir.
PAI- Eu sei, filho, mas a coisa tá pegando. Não basta eu querer. Você sabe que por mim você já tava lá jogando play station com o Tio Donald.
FILHO- O Eric, filho dele é quem gosta. O Tio Donald só gosta de jogar War, mas perde sempre.
PAI- Pois é, eu tô travando uma verdadeira guerra aqui pra te nomear. Tem que passar pelo Senado, pela sabatina...falando nisso, você tá estudando.
FILHO- Já tô na lição 2...the book is on the table.
PAI- Já consegue ver Netflix sem legenda?
FILHO- Pô pai, tá pedindo muito.
PAI- A sabatina no Senado vai ser assim. Tem que estar preparado senão vão dizer que é nepotismo.
FILHO- Que porra de nepotismo é essa que vivem falando? Eu sei lá o que é isso!
PAI- Eu perguntei pro Carluxo que mexe com internet e ele viu no Google pra mim. É uma história do Papa, que queria nomear o sobrinho...
FILHO- Então, é com sobrinho, não é com filho.
PAI- É que o papa não pode ter filho, oficialmente, mas eu não sou Papa nem nada, eu posso, dai o pessoal tá fazendo a maior confusão dizendo que eu não posso te nomear. É inveja.
FILHO- Caga pra isso, quer dizer, dia sim, dia não, mas não liga. Me indica e pronto. A gente vence essa partida no Senado. A gente compra a votação.
Pai- Sei não. Tão pedindo muita coisa em troca, emendas, grana, nomeações...
FILHO- Oferece hambúrguer.
PAI- Nem todos comem. Eles gostam mais de vatapá, carne seca, caruru, essas coisa do nordeste.
FILHO- Tudo comunista, pai. Eles não querem saber de me ver nos Estados Unidos. Me manda de embaixador pra Venezuela...eles vão aceitar logo.
PAI- Jura? Você topa?
FILHO- Tá louco? Brincadeirinha, pai. Sem essa. E o nosso plano de conquistar o mundo? Capitão América e Super Eduardo? Não podemos esquecer.
PAI- É verdade, mas olha, se não rolar eu prometo outra coisa tão legal.
FILHO- O quê, por exemplo?
PAI- Sei lá, passaporte da Disney... boné novo do Trump, frigideira nova...
FILHO- Pô pai, quero uma coisa importante, política, afinal sou deputado...
PAI- Eu deixo você dar palpite no governo.
FILHO- Isso eu já faço, pai.
PAI- Te levo comigo em todas as viagens...
FILHO- Se não for pra ser embaixador, não quero.
PAI- Pô filho, colabora. Eu sou presidente não sou deus. Infelizmente tenho que seguir certas regras pra continuar sentado nesta cadeira.
Faz-se um silêncio revelador. Na janela o sol termina de se por. O filho caminha pela sala. O pai não entende. De repente o filho para.
FILHO- Deixa eu sentar na cadeira.
PAI- Na cadeira de presidente? Não filho, isso não.
FILHO- Pô pai, só um pouquinho.
PAI- Não dá, tem muita gente de olho nela...o Mourão, o Dória, o Witzel... até o Huck tá de olho. Se eles sabem que você anda sentando nela vão querer sentar também.
FILHO- Pô pai, fala sério. Libera a cadeira.
PAI- Só a cadeirinha, e no carro... aliás, quer um carro?
Pano rápido.
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