Nísia e a PEC dos gastos: cortes prejudicam pesquisas

Na segunda parte de sua entrevista ao jornalista Paulo Moreira Leite, a nova presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, fala sobre as ameaças que a PEC do teto dos gastos representa para pesquisas pioneiras da instituição, referência internacional em saúde pública. "Estamos falando de recursos para a saúde, que envolvem dimensões essenciais para a qualidade de vida, e que não podem ser vistos como gastos, mas como investimentos", diz

Na segunda parte de sua entrevista ao jornalista Paulo Moreira Leite, a nova presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, fala sobre as ameaças que a PEC do teto dos gastos representa para pesquisas pioneiras da instituição, referência internacional em saúde pública. "Estamos falando de recursos para a saúde, que envolvem dimensões essenciais para a qualidade de vida, e que não podem ser vistos como gastos, mas como investimentos", diz
Na segunda parte de sua entrevista ao jornalista Paulo Moreira Leite, a nova presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, fala sobre as ameaças que a PEC do teto dos gastos representa para pesquisas pioneiras da instituição, referência internacional em saúde pública. "Estamos falando de recursos para a saúde, que envolvem dimensões essenciais para a qualidade de vida, e que não podem ser vistos como gastos, mas como investimentos", diz (Foto: Paulo Moreira Leite)


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Na segunda parte de sua entrevista ao 247, a nova presidente da FIOCRUZ, Nísia Trindade, fala sobre as ameaças que a PEC do teto dos gastos representa para pesquisas pioneiras da instituição, referência internacional em saúde pública. "Estamos falando de recursos para a saúde, que envolvem dimensões essenciais para a qualidade de vida, e que não podem ser vistos como gastos, mas como investimentos", diz. "O conjunto da atividade de pesquisa e inovação pode sem dúvida ser fortemente prejudicado." Eleita com mais de 60% dos votos, Nísia teve a posse confirmada pelo governo Michel Temer após a mobilização da comunidade científica, inclusive internacional.


247 -- Socióloga de formação a  senhora é a primeira mulher a assumir a presidência da FIOCRUZ. Qual a importância disso?

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NÍSIA -- Este é um fato muito significativo e uma conquista democrática, com o reconhecimento do valor das mulheres que hoje constituem 56% do total de servidores e 60% dos que realizam atividade de pesquisa na Fiocruz. Ao contrário do que se imagina, não sou a primeira presidente não médica.  Houve outros presidentes que não o eram, entre eles veterinários e outros profissionais do campo da saúde. De 1975 a 1979 a Fiocruz foi dirigida por Vinicius da Fonseca, um economista que desempenhou papel importante na área de desenvolvimento tecnológico.

247 -- Qual a importância do olhar sociológico na Fiocruz?

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NÍSIA -- Nós sabemos que uma visão sociológica tem sido fundamental na área de saúde. Em tempos de crise econômica, política e institucional, este olhar pode contribuir para ampliarmos nossas análises e encontrarmos caminhos para o futuro da sociedade com mais inclusão, justiça e cidadania.

247 -- Na prática, como isso acontece?

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NISIA -- Integro a equipe da Casa de Oswaldo Cruz, instituto dedicado à pesquisa histórica, à memória e à divulgação científica. Além de ter publicado vários trabalhos sobre a história do SUS, sou autora de uma obra que debate a importância de se  importante entender a história da saúde e das políticas públicas da área para a compreensão do passado e o presente da sociedade brasileira. Os temas da desigualdade, da construção do Estado Nacional e das profundas desigualdades que nos marcam historicamente estão presentes em meu livro Um sertão chamado Brasil. E o termo sertão, aqui, refere-se exatamente à ausência de direitos e de reconhecimento social. O enfrentamento dos problemas numa área de grande complexidade requer o consórcio entre diferentes ramos do conhecimento e múltiplas perspectivas. Em tempos de mudança, de transição demográfica e epidemiológica, os problemas relacionados à saúde não podem ser analisados sem que se leve em conta os fatores sociais, políticos e ambientais.

247 -- Nós sabemos que a FIOCRUZ não é uma ilha. Com a aprovação da PEC 55, que limita os gastos públicos por 20 anos, prevê-se um período de dificuldades para as instituições alinhadas com políticas públicas. Teremos um período de vacas magérrimas, quem sabe esqueléticas. Como a senhora acha que essa situação pode ser enfrentada?

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NÍSIA -- A discussão do financiamento público e do papel do Estado no desenvolvimento ficou muito comprometida pela visão contábil, fruto dos problemas fiscais que o País está enfrentando. Minha expectativa é de, no curto prazo, conseguirmos assegurar recursos públicos para a Fiocruz. Adicionalmente haverá um grande esforço para buscar fontes alternativas de financiamento, preservando a missão institucional, como os fundos de investimento para inovações que atendam ao SUS, o aporte de recursos internacionais para projetos de pesquisa e a priorização as atividades da Fiocruz pelas agências nacionais e internacionais de fomento, como tivemos oportunidade de conseguir na articulação de projetos ligados a prevenção e tratamento de Zika, Chikungunya e Dengue.

247 -- Colocando a situação numa perspectiva de longo prazo, como a senhora vê essa situação?

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NÍSIA --  Numa perspectiva de médio e longo prazos, é preciso avançar num  debate importante. Estamos falando de recursos para a saúde, que envolvem dimensões essenciais para a qualidade de vida, e que não podem ser vistos como gastos, mas como investimentos, essenciais num projeto nacional de desenvolvimento sustentável, como gasto com ciência, tecnologia e inovação, ambiente, no desenvolvimento regional, nas cidades inteligentes, na mobilidade urbana. Os indicadores de saúde e de educação, por exemplo, fazem parte do IDH, representando dois dos três componentes, sendo parte indissociável do próprio conceito de desenvolvimento. Na relação da Fiocruz com o Ministério da Saúde, houve avanço importante na compreensão que devemos trabalhar as questões orçamentárias e de resultados esperados para a sociedade na linha de uma contratualização que oriente todas as ações.

247 -- Nesta conjuntura, há projetos relevantes de pesquisa na FIOCRUZ que podem ser prejudicados e barrados? Quais?

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 NÍSIA -- O conjunto da atividade de pesquisa e inovação pode sem dúvida ser fortemente prejudicado. Entre as pesquisas relevantes cujo risco de descontinuidade trará resultados negativos a curtíssimo prazo, destaco as relacionadas à tríplice epidemia Dengue, Zika e Chicungunya. Além disso, há um  amplo espectro de nossas atividades que sofreriam fortemente em caso de redução de orçamento. Estou falando de  queda nas investigações, em programas de formação e desenvolvimento tecnológico, de  ações na atenção básica e especializada.

247 -- Em entrevista ao 247, o ex-ministro Arthur Chioro lembrou que a FIOCRUZ tem um papel importante como reguladora de mercado e na definição de negócios, públicos e privados, na área de saúde. Com a elegância possível, foi uma forma de lembrar a pressão dos imensos interesses, da ordem de 4 bilhões de reais, que constituem aquilo que chamou de "objeto de desejo" da FIOCRUZ. Como a senhora pretende enfrentar essa situação?

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NÍSIA --  A disponibilização de produtos da Fiocruz a diversos programas do ministério da saúde reflete política de Estado direcionada ao fortalecimento do setor público na perspectiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. A Fiocruz é hoje fornecedora de medicamentos de base química, biofármacos, diagnósticos laboratoriais e vacinas, constituindo-se no maior centro produtor de insumos da saúde da América Latina. Mais recentemente, a partir do programa do Ministério da Saúde de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo, as PDPs, se intensificaram no Brasil associações entre o setor público e privado, nacional e internacional, para nacionalização de produtos estratégicos para o SUS, segundo prioridades estabelecidas pelo Ministério. Trata-se de parcerias para transferência de tecnologia, co-desenvolvimento e também desenvolvimento próprio.

247 -- Quais as principais vantagens  deste programa?

NÍSIA -- Temos um exemplo  recente, no  desenvolvimento e produção do teste NAT molecular para detecção de Zika, Dengue e Chicungunya que chegará ao mercado a preço a preço 50% inferior ao praticado pelos concorrentes privados.  Se consideramos a cesta de vacinas ofertada ao Ministério da Saúde,    caso fossem adquiridas de forma convencional, no fundo de compras da Organização Pan Americana de Saúde, referência dos menores preços no mundo,  essas  mesmas vacinas implicariam numa despesa adicional na ordem de 360 milhões de reais/ano. Outros exemplos ocorrem no fornecimento pela Fiocruz de medicamentos e biofármacos que permitiram ao Ministério da Saúde  introduzir ou manter em seus programas produtos com significativa economia.

247 -- Há outros benefícios?

NÍSIA -- Um dos resultados mais marcantes do programa das PDPs foi o adensamento tecnológico das carteiras de produtos dos laboratórios públicos pela via da incorporação de tecnologias desenvolvidas alhures e também, mesmo que em ritmos diferentes, a atualização da infraestrutura fabril pública ampliando capacidade industrial. A Fiocruz é instituição que atua com protagonismo nesse programa, sendo a Instituição Pública, considerando Bio-Manguinhos, Farmanguinhos e Fiocruz Paraná, com maior número de parcerias estabelecidas. Em verdade a estratégia de parceiras para incorporação tecnológica data na Fiocruz da década de 70 do século passado, quando a Fiocruz e Instituto Pasteur firmaram acordo para nacionalização da vacina contra meningite. Essa estratégia ganha força 20 anos depois com uma série de acordos de transferência de tecnologia que permitiram a ampliação da oferta de produtos, inclusive medicamentos, sobretudo na classe de anti-retrovirais. É possível considerar que essa experiência da Fiocruz foi parcialmente incorporada pelo Ministério da Saúde na formulação do programa das PDPs. Assim a Fiocruz vem ampliando sua capacidade industrial e tecnológica, produzindo efeitos econômicos importantes, seja na balança comercial seja nos dispêndios do Ministério da Saúde com aquisição de produtos. Foi assim na incorporação do teste NAT molecular para detecção de HIV e Hepatites B e C, que pode ser introduzido na Hemorrede brasileira a custos bem inferiores à concorrência privada e hoje atende integralmente a demanda do MS. Trata-se de um círculo virtuoso que gira em torno da capacitação industrial e tecnológica que implicam ganhos de escala e de escopo, que se traduzem em reduções de preço no médio prazo, trazendo ganhos econômicos e ampliação do acesso. Ao mesmo tempo, garante o abastecimento no longo prazo, fator crítico em se tratando de um setor, como o  farmacêutico, altamente oligopolizado. Por fim, igualmente importante, concede ao Brasil soberania e domínio da agenda tecnológica o que reduz a dependência estratégica do SUS.

247 -- Em conclusão, o que se deve fazer?

NÍSIA -- A questão do orçamento tem que ser necessariamente analisada na perspectiva da saúde e da ciência como investimentos para o futuro do país, sem perder de vista eficiência e otimização de recursos. Isto, a meu ver, só se faz possível com o fortalecimento da esfera pública e do controle social.

247 -- Logo depois de sua confirmação na presidência, divulgou-se que haverá uma diretoria partilhada, com membros que apoiavam Tania Araújo-Jorge, a outra candidata, e um diretor indicado pelo ministério da Saúde.

NÍSIA -- A informação não é verídica. Não há e não haverá diretoria partilhada na Fiocruz. Passado o momento de concertação, exerci com autonomia a definição da equipe que hoje integra a Presidência da Fiocruz. Por iniciativa minha, o principal tema que discuti com o Ministro foi a proposta de contratualização de metas para o aperfeiçoamento dos processos de gestão, envolvendo a Fiocruz e as secretarias do Ministério da Saúde. Na segunda feira, dia 8 de janeiro, apresentei a nova equipe da Presidência ao conjunto de servidores e afirmei que a gestão atuará com unidade na definição de metas e na execução dos programas. Todos os vice presidentes são profissionais da Fiocruz, com reconhecida capacidade em suas áreas de atuação e importante experiência na gestão institucional.

247 -- O ex-governador Moreira Franco, um dos principais auxiliares do presidente Michel Temer, teve algum papel em sua escolha?  

NÍSIA -- Como um dos principais assessores do presidente Michel Temer, ele deve ter participado da análise da situação junto ao presidente da República. Afinal houve uma grande mobilização a favor de uma escolha que faz parte da melhor tradição da instituição. Isso se expressou em um abaixo assinado com cerca de 10.000 assinaturas, além de cartas e manifestações das primeiras sociedades científicas do País, da SBPC, de movimentos sociais, parlamentares, membros do Conselho Superior da Fiocruz, no qual estão representados diversos setores. Não faltaram membros da comunidade científica internacional, a exemplo do bioquímico Satoshi Omura, Prêmio Nobel de Medicina de 2015. Tive contato com o ex governador do Rio de Janeiro, em reunião realizada na Casa Civil sob coordenação do Ministro Eliseu Padilha e participação do ministro Ricardo Barros. A proposta era de busca de entendimento e superação da crise. Isto foi possível com a minha nomeação e todo o difícil processo deve servir de base para o maior entendimento sobre a importância da autonomia científica e do respeito aos processos internos em institutos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico e nas universidades. O resultado foi positivo, mas o processo gerou muita preocupação institucional. Por outro lado, em toda crise, temos a oportunidade de amadurecimento e felizmente poderemos agora iniciar o trabalho da nova gestão e contribuir com o que a sociedade espera da Fiocruz.

247 --   É curioso notar que tanto a senhora como  Tania Araujo-Jorge, que também disputou a presidência,  tomaram uma posição pública contra o impeachment de Dilma Rousseff. Esse posicionamento reflete o ponto de vista da grande maioria dos cientistas brasileiros?

NÍSIA -- Houve expressiva manifestação da comunidade científica contra o processo de impeachment, ainda que haja diversidade de posições e de análise política do processo. De todo modo, há uma grande unidade quanto à necessidade de se preservar a autonomia das instituições de ciência e tecnologia e universidades, com a defesa dos primeiros colocados nos processos eletivos. Além disso, une a comunidade a defesa da preservação dos gastos com ciência, tecnologia e inovação vistos como base para o desenvolvimento do País. Esta compreensão explica o grande movimento que uniu 400 intelectuais e cientistas das mais diferentes posições políticas e a quase totalidade das sociedades científicas em apoio a minha nomeação. Outro ponto relevante consiste em considerar, e tive oportunidade de manifestar meu modo de ver sobre o problema na reunião da Casa Civil, que posicionamentos políticos e mesmo vínculos partidários não podem se constituir como critério para escolhas ou vetos nos processos de nomeação de gestores nas instituições públicas, particularmente nos INCTs.

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