Neoliberalismo é racismo

Vinícius Júnior
Vinícius Júnior (Foto: Reuters/Pablo Morano)


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A utopia do neoliberalismo é a completa pulverização do homem. Trata-se de um tremendo programa de escravidão em escala global sob novo formato: o da expoliação total do ser. Mas ao individualizar o homem, extermina-se o próprio fundamento da humanidade: a coletividade. O filósofo alemão Christoph Türcke defende que a criação do ritual de sacrifício, no paleolítico, é uma espécie de mecanismo de defesa contra as experiências do horror experimentadas no ambiente natural. Movido pela compulsão à repetição, o homem teria criado sua própria forma de horror (uma primeira representação) para produzir uma descarga e suportar a própria vida. Mas, a esse raciocínio, eu acrescentaria: o sacrifício possui também outra função, quiçá mais importante que a busca por redenção. O sacrifício produz coletividade. O sacrifício reúne, cria aglomeração, produz assembleias. O temor é pai do amor. Aqui nasce o homo sapiens tal como nos reconhecemos, e aqui nasce, ao mesmo tempo, o homem político. Do sacrifício edifica-se a política.

A dialética do neoliberalismo coloca em risco nosso próprio desenvolvimento enquanto espécie. Ele pretende a dissolução total da coletividade. Pretende um indivíduo que seja apenas superego, mas o que se obtém é apenas o “id” como característica fundamental.  As sociedades agrárias e industriais, em suas origens, exploraram a coletividade humana. Dos anos 1980 para cá, com a instalação do neoliberalismo no mundo, é o indivíduo, em sua máxima condição, que deve ser explorado. 

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O racismo é a consequência que mais bem ilustra esta ideia. Se nas sociedades de massas o racismo projetava-se para grupos, raças e etnias que deveriam ser eliminados pelo regime nazista, sob os holofotes do neoliberalismo, este enfrentamento foi introjetado às mentalidades individuais. Não sem que técnicas específicas fossem utilizadas para tal, como a disseminação da ideologia do eu, do foco em si mesmo como prioridade absoluta, do egoísmo como modelo de vida. 

Daqui resultaram as catastróficas patologias e transtornos, como a depressão e os transtornos de atenção, o aumento exponencial de casos de autismo, o índice de suicídios etc. Em todas elas há um denominador comum que sugere uma hipótese a ser investigada: seus vínculos com o temperamento social resultante do neoliberalismo. O “senhorzinho satisfeito” de Ortega & Gasset aprimorou-se para o hiper indivíduo cuja característica central é o excesso de parresía  (ato corajoso de falar a verdade),  tal como observa Byung-Chul Han:

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“A parrhesia se degenera hoje em uma liberdade concedida a qualquer um de dizer coisas abstratas, de dizer mesmo tudo o que quiser ou que lhe traga vantagens. Afirmam-se coisas impudicamente que não têm sequer relação com os fatos. A crítica à democracia de Platão diz respeito justamente a essa forma de parrhesia. A democracia cria, para Platão, no fim, um “Estado que transborda liberdade e franqueza (eleutheria e parrhesia)”, um “Estado desordenado e colorido”, um “Estado sem unidade, no qual cada um anuncia sua opinião, segue duas própria decisões e se comporta como quiser. A democracia está hoje nesse estado. Tudo pode ser afirmado à vontade. Desse modo, a unidade da própria sociedade está em perigo. (HAN, Infocracia, 2022, p. 102-103).

Deste modo, quando nos deparamos com as terríveis e reincidentes experiências de racismo, como  o episódio envolvendo Vini Jr. nos gramados da Espanha, estamos lidando, no fundo, com um efeito de degradação da sociedade perpetrado pelo neoliberalismo. No caso do racismo espanhol destaca-se outra característica marcante: o ressentimento. Buscando mitigar o complexo de inferioridade no contexto europeu, difundiu-se a ideologia racista como último recurso de autoafirmação, de pertencimento ao continente, embora, desta vez, não mais sob o comando do Estado totalitário, mas por meio do totalitarismo algorítmico das sociedades digitais. Pela infusão ideológica do “todos contra todos”, como técnica central do neoliberalismo.

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O neoliberalismo é racismo porque, em seu núcleo duro, paira o espectro da divisão, da fragmentação, da separação. É o regime do ódio por excelência.  

A contenção do neoliberalismo não se restringe à mera regulação do mercado. Antes, os esforços devem convergir no fortalecimento da coletividade. É o coletivo, a dimensão gregária do homem, a única condição capaz de transformação da realidade e de exterminar o racismo. 

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