Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico
Mas o que vemos atualmente é algo de outra ordem, a saber, a justificação de ações econômicas e a paralisia da crítica através da mobilização massiva de discursos psicológicos e morais
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“Um paraíso habitado por assassinos sem maldade e vítimas sem ódio” (Günther Anders).
“No era depresión, era capitalismo” (Pixação no Chile, feita à ocasião da revolta de 2019).
O ano foi 2015, em plena efervescência da crise econômica grega. A tensão era contínua entre os negociadores do governo grego, à procura de evidenciar a irracionalidade das políticas econômicas implementadas na Grécia após a crise de 2008, e os representantes da chamada troika, composta pelos principais detentores da dívida grega. Diante do desejo dos gregos em trilhar um caminho heterodoxo, a então presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, não teve dúvida: foi à imprensa exigir o fim do “comportamento infantil” dos seus contendores e dizer que esperava retomar o diálogo “com adultos na sala”.
No dia seguinte, a então vice-presidente da Comissão Europeia, Viviane Reding, cantava a mesma música, ao dizer que chegara a hora de termos diante de nós adultos, e não “crianças mal educadas”. Ou seja, discordar não era entrar em um embate sobre visões macroeconômicas distintas, mas agir como crianças que desconheceriam a “responsabilidade” da emancipação, com suas “obrigações”. O embate era simplesmente entre maturidade e minoridade psicológica. Por isso, o embate não era debate algum, a voz dos gregos era apenas a expressão patológica da irracionalidade.
Talvez não tenham sido muitos os que estranharam o uso de um vocabulário entre o psicológico e o moral em meio àquela discussão eminentemente política e econômica. Afinal, o mundo já estava paulatinamente se acostumando a isso. Durante anos, as políticas de combate à crise econômica foram vendidas como políticas de “austeridade”. No entanto, até segunda ordem, ninguém até então tivera notícia de alguma “teoria econômica da austeridade” elaborada, até porque “austeridade” não era exatamente um termo técnico da teoria econômica,[ mas um termo vindo diretamente da filosofia moral. O uso cada vez mais extenso do termo aparece apenas com a hegemonia neoliberal, mesmo que as políticas de controle de gastos do Estado encontrassem suas bases em John Locke, Adam Smith e David Hume.
Mas a nomeação de tais políticas como “austeridade” era um fato a ser sublinhado. Pois ela explicitava como valores morais eram mobilizados para justificar a racionalidade de processos de intervenção social e econômica. Note-se que ser contra a austeridade é, inicialmente, uma falta moral, um desrespeito ao trabalho de terceiros, além de uma incapacidade infantil de retenção e poupança. Criticar a austeridade é assim colocar-se fora da possibilidade de ser reconhecido como sujeito moral autônomo e responsável. Da mesma forma, era moral a defesa de que os indivíduos deveriam parar de procurar “proteção” nos braços paternos do Estado-providência a fim de assumir a “responsabilidade” por suas próprias vidas, aprendendo assim a lidar com o mundo adulto de uma “sociedade de risco” (embora nunca tenha realmente ficado claro se os riscos afinal eram para todos).
Mas há algumas perguntas que acabamos por não fazer até agora. Pois o que termos vindos da filosofia moral estavam fazendo em meio a debates econômicos? Como eles chegaram lá? Seriam meras metáforas, usos mais ou menos livres visando “dramatizar” o problema? Mas se aceitarmos que nenhuma metáfora é “mera”, que seus usos indicam decisões conscientes de colocar em relação profunda sistemas distintos de referência, como deveríamos compreender tal fenômeno?
Pois era fato que estávamos a assistir a uma tendência, cada vez mais extensa, em se servir de termos psicológicos e morais para falar sobre processos econômicos. Como se certa psicologia moral estivesse a colonizar as múltiplas esferas da vida social através do discurso econômico. Certamente, o fenômeno não era exatamente novo. Quando Stuart Mill afirmou, no final do século XIX, que a economia política era “‘a ciência que trata da produção e distribuição da riqueza na medida em que elas dependam das leis da natureza humana’ ou ainda ‘a ciência relacionada às leis morais ou psicológicas da produção e distribuição da riqueza” (Mill, 1973, p. 303), a referência às leis morais ou psicológicas era vaga o suficiente para se referir simplesmente à racionalidade de um pretenso “desejo de riqueza” inscrito no coração das paixões humanas. A economia política analisaria assim as dinâmicas coordenadas socialmente a fim de realizar o desejo humano de enriquecimento, ou antes a obtenção da: “maior soma de coisas necessárias, de conveniências e de luxos com a menor quantidade de trabalho e abnegação física exigidas para poder obtê-los no estado existente de conhecimento” (Mill, 1973, p. 304).
No entanto, Stuart Mill ainda tinha o cuidado de afirmar que tal princípio de racionalidade era uma “premissa” que poderia não ter nenhum fundamento nos fatos, embora pudesse ter efeitos na dimensão concreta, com “concessões apropriadas”. Isso significava, entre outras coisas, que a redução da estrutura da motivação humana ao desejo de riqueza era uma abstração útil, e não uma explicação geral sobre o comportamento humano, com sua multiplicidade de variáveis singulares e efeitos imprevistos.
Mas o que vemos atualmente é algo de outra ordem, a saber, a justificação de ações econômicas e a paralisia da crítica através da mobilização massiva de discursos psicológicos e morais. O que pode nos levar a questões sobre a efetiva natureza epistemológica do discurso econômico, isso em um momento no qual ele arroga para si autonomia operacional completa em relação à esfera do político, como antes ocorrera quando enfim a economia ganhou autonomia em relação ao sagrado. Pois podemos nos perguntar sobre o quanto essa autonomia do discurso econômico em relação à política é ela mesma a mais clara expressão de uma decisão política violenta.
Nesse sentido, devemos meditar a respeito do significado dessa relação inesperada entre autonomia da economia em relação ao político e sua transmutação em psicologia moral. Como se um processo só fosse possível através do outro. A autonomia da economia, sua posição de discurso de poder ilimitado na definição das orientações de gestão social, caminha juntamente com a legitimação cada vez mais clara de suas injunções como uma psicologia moral, ou seja, como um discurso no qual se articulam injunções morais e pressuposições a respeito de desenvolvimento e maturação.
O que nos leva a afirmar que o império da economia é solidário da transformação do campo social em um campo indexado por algo que poderíamos chamar de “economia moral”, com consequências maiores não exatamente para os modos de produção e circulação de riqueza, mas para a eliminação violenta da esfera do político enquanto espaço efetivo de deliberação e decisão, com a redução da crítica à condição de patologia. Uma eliminação que, como gostaria de mostrar, tem consequências maiores para os modos de sujeição psíquica e sofrimento social.
A tese a ser defendida aqui é que o uso reiterado de tal estratégia cresce com a hegemonia do neoliberalismo. Fato que os textos da Sociedade Mont Pèlerin não nos deixa esquecer. Lembremos, por exemplo, como se iniciava o texto que apresentava os objetivos dessa sociedade, primeiro grupo formado nos anos 1940 para a difusão dos ideais neoliberais: “Os valores centrais da civilização estão em perigo… O grupo defende que tal desenvolvimento tem sido impulsionado pelo crescimento de uma visão da história que nega todo padrão moral absoluto e por teorias que questionam a desejabilidade do império da lei” (apud Mirowski; Plehwe, 2009, p. 25).
De onde se seguia a exortação para explicar a pretensa crise atual a partir de suas “origens morais e econômicas”. Essa dupla articulação é extremamente significativa. A recusa ao primado da propriedade privada e da competividade não seria apenas um equívoco econômico, mas principalmente uma falta moral. Sua defesa deverá ser não apenas assentada em sua pretensa eficácia econômica diante dos imperativos de produção de riqueza.
Ela devia se dar através da exortação moral dos valores imbuídos na livre iniciativa, na “independência” em relação ao Estado e na pretensa autodeterminação individual. “Assim, o que faz a economia possível e necessária é uma perpétua e fundamental situação de escassez: diante de uma natureza que, por si mesma, é inerte e, salvo para uma parte minúscula, estéril, o homem arrisca sua vida. Não é mais nos jogos da representação que a economia encontra seu princípio, mas é do lado desta região perigosa na qual a vida se afronta à morte […] O homo oeconomicus não é este que representa suas próprias necessidades e os objetos capaz de satisfazê-las. Ele é este que passa, e usa, e perde sua vida tentando escapar da iminência da morte” (Foucault, 1966, p. 269).
Essa situação fundamental de escassez não é, no entanto, um “dado evidente”, uma realidade natural inelutável. Ela é uma derivação relativa, pois depende de onde se encontrará a linha do horizonte que define a abundância.[iv] Daí por que Foucault precisa articulá-la à fantasmagoria moral da finitude e da iminência da morte. Pois a transformação da escassez em dado evidente só pode ser produzida através da absorção, pelo discurso econômico, da força disciplinar da crença na vulnerabilidade da vida, em sua fragilidade constitutiva. Crença que é peça fundamental para certa moral e uma circulação de afetos fundados no medo e capazes de motivar a ação em direção ao trabalho compulsivo e à poupança.
Vale a pena ainda salientar como essa psicologização muito específica do campo econômico tendo em vista a eliminação da possibilidade de contestação política a respeito de sua “racionalidade” não deixa de ter, por sua vez, uma espécie de efeito reverso. Efeito esse visível no próprio redimensionamento contemporâneo do campo político. Pois é um dos fatos contemporâneos mais relevantes a redescrição completa da lógica motivacional da ação política em uma gramática das emoções. É cada vez mais evidente como lutas políticas tendem a não ser mais descritas a partir de termos eminentemente políticos, como justiça, equidade, exploração, espoliação, mas através de termos emocionais, como ódio, frustração, medo, ressentimento, raiva, inveja, esperança.
E em um movimento que parece complementar tal lógica, chegamos rapidamente ao momento em que novas levas de políticos parecem especializados em mobilizar setores da população como se estivessem diante de sujeitos eminentemente psicológicos. Assim, suas falas são feitas para serem lidas não como confrontações políticas a respeito da vida em sociedade, mas como “ofensas”, como “desrespeito”; suas promessas são permeadas por exortações ao “cuidado”, ao “amparo”.
Como sabemos, falas constituem seus ouvintes. Um discurso construído como “ofensivo” visa produzir um sujeito que reagirá como “ofendido”. A fala ofensiva é astuta. Ela procura, inicialmente, quebrar uma espécie de solidariedade genérica diante de uma injustiça feita não apenas contra um, mas contra todos ou, antes, contra todos através de um. A fala ofensiva visa quebrar a emergência da reação de “todos”, pois ela singulariza, ela ofende um, ela escarnece um. Não falamos: “Você ofendeu a sociedade brasileira em mim”. Antes, dizemos: “Você me ofendeu”. O problema parece algo entre “você” e “ela/e”. O problema não parece mais político, mas de respeito à integridade psicológica.
É fato que na esfera política conhecemos múltiplas estratégias de psicologização de seu campo desde os tempos mais remotos. Uma das mais antigas é a redução das relações políticas à expressão de relações familiares. Sobreposições da autoridade às figuras paternas e maternas, sobreposições das relações entre iguais às figuras fraternas, que visam fazer das demandas sociais demandas decalcadas nas expectativas de amor e reconhecimento próprias ao núcleo familiar. Essa sobreposição entre corpo social e estrutura familiar tem função clara.
Tudo se passa como se a família fosse o modelo de “relações harmoniosas” que teria a força de eliminar o caráter muitas vezes aparentemente intransponível dos conflitos sociais. O familiarismo em política pressupõe a fantasia social da família como núcleo de relações hierárquicas naturalizadas, não problemáticas, da autoridade baseada no amor e na devoção. Núcleo no qual os lugares sociais de autoridade e submissão são lugares naturais. Algo muito distante da explicitação freudiana da família como núcleo produtor de neuroses.
Lembremos que a economia ainda guarda seu traço familiarista. Ela guarda sua lógica originária da oikos que aparece periodicamente, principalmente quando se acredita que o governo deva fazer o mesmo que uma dona de casa quando falta dinheiro.Essa sobreposição das relações econômicas sociais complexas à lógica elementar da “casa” não visa apenas à produção ideológica de ilusões de naturalidade dos modos de circulação e produção de riquezas. Ela visa à sobreposição fantasmática entre corpo social e o corpo do pai, da mãe e dos irmãos. Sobreposição essa que deve produzir a docilidade em relação à autoridade, a perpetuação de um sentimento de dependência e, principalmente, a naturalização da sujeição de gênero. No limite, ela deve produzir uma “identificação com o agressor”.
O Estado total neoliberal
Mas se é fato que a hegemonia neoliberal exige a explicitação da economia como uma psicologia moral, há de se compreender melhor as razões de tal processo e suas consequências. Nesse sentido, voltemos um instante os olhos para o ano 1938. No ano anterior à eclosão da Segunda Grande Guerra, vários economistas, sociólogos, jornalistas e mesmo filósofos se reuniram a fim de discutir o que aparecia à época como o ocaso do liberalismo. A reunião passou à história como Colóquio Walter Lippmann, nome de um influente jornalista norte-americano que havia escrito um dos mais discutidos livros de então, A boa sociedade, e um dos responsáveis pela organização do evento.[ix] Em seu livro, Lippmann insistia em que o mundo via a derrocada do liberalismo devido à ascensão do comunismo, de um lado, e dos fascismos, de outro. Mesmo o capitalismo estaria sob a hegemonia do intervencionismo keynesiano. Havia então de se perguntar por que isso estava a ocorrer e o que fazer para reverter a situação.
Um diagnóstico que se impôs no colóquio fora o equívoco da crença, própria ao liberalismo manchesteriano do século XIX, de que livre-iniciativa, empreendedorismo e competitividade seriam características que brotariam quase que espontaneamente nos indivíduos, caso fôssemos capazes de limitar radicalmente a intervenção econômica e social do Estado. Antes, a liberdade liberal teria de ser produzida e defendida. Como dirá décadas depois Margareth Thatcher: “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”. E essa mudança dos corações e mentes teria de ser feita através de doses maciças de intervenção e de reeducação. Isso até o momento em que os indivíduos começassem a ver a si mesmos como “empreendedores de si”, isso até o momento em que eles internalizassem a racionalidade econômica como a única forma de racionalidade possível.
Assim, a ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidário de uma sociedade com menos intervenção do Estado, ideia tão presente nos dias de hoje, é simplesmente falsa. Em relação ao liberalismo clássico, o neoliberalismo representava muito mais intervenção do Estado. A verdadeira questão era: onde o Estado efetivamente intervia? De fato, não se tratava mais da intervenção na esfera da coordenação da atividade econômica.
Para os neoliberais, mesmo a regulação de moldes keynesianos era tão insuportável quanto qualquer forma de Estado socialista, embora valha a pena lembrar que o nível de regulação econômica aceito pelo ordoliberalismo alemão e sua “economia social de mercado” é maior do que aquele pregado, por exemplo, pela Escola Austríaca, que dará o tom do neoliberalismo norte-americano. Na verdade, o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social.
Ou seja, o neoliberalismo é um modo de intervenção social profunda nas dimensões produtoras de conflito. Pois, para que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa pudesse reinar, o Estado deveria intervir para despolitizar a sociedade, única maneira de impedir que a política intervisse na autonomia necessária de ação da economia. Ele deveria bloquear principalmente um tipo específico de conflito, a saber, aquele que coloca em questão a gramática de regulação da vida social.
Isso significava, concretamente, retirar toda a pressão de instâncias, associações, instituições e sindicatos que visassem questionar tal noção de liberdade a partir da consciência da natureza fundadora da luta de classe. Mas o aprofundamento desse processo exigia uma destituição completa da gramática do conflito e da contradição objetiva. Ou seja, tratava-se de passar do social ao psíquico e levar sujeitos a não se verem mais como portadores e mobilizadores de conflitos estruturais, mas como operadores de performance, otimizadores de marcadores não problematizados.
Para tanto, seria necessário que a própria noção de conflito desaparecesse do horizonte de constituição da estrutura psíquica, que uma subjetividade própria a um esportista preocupado com performances se generalizasse, e para isso a mobilização de processos de internalização disciplinar de pressupostos morais era fundamental. Por isso, as modalidades neoliberais de intervenção deveriam se dar em dois níveis, a saber, no nível social e no nível psíquico. Essa articulação se explica pelo fato de os conflitos psíquicos poderem ser compreendidos como expressões de contradições no interior dos processos de socialização e individuação. Eles são as marcas das contradições imanentes à vida social.
Assim, em um primeiro nível, o Estado neoliberal agia de forma direta para desregular a vida associativa e sua força de pressão na partilha dos bens e das riquezas. Esse ponto foi explicitado de maneira precisa nas pesquisas de Grégoire Chamayou a respeito dos vínculos entre neoliberalismo e fascismo.[xv] Por exemplo, pode parecer estranho para alguns que um dos pais do neoliberalismo, o economista Frederick Hayek, seja defensor explícito da tese da necessidade da ditadura provisória como condição para a realização da liberdade neoliberal.
Lembremos um significativo trecho de uma entrevista dada ao jornal chileno El Mercurio, em 1981: “Eu diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um período de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante certo tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”.
“Às vezes” aparece aqui como indicação de uma possibilidade de uso sempre iminente, desde que a sociedade não se conforme às injunções econômicas neoliberais de forma passiva. Nesse sentido, notemos como 1981 era o ano em que a ditadura de Augusto Pinochet estava no auge. Hayek estava entusiasmado com a transformação do Chile no laboratório mundial das ideias que ele, Milton Friedman, Gary Becker, Ludwig von Mises e outros pregavam com afinco.
Em um impressionante documentário sobre a experiência neoliberal no Chile, Chicago Boys (2015), vemos a formação do grupo de economistas que implementaram o neoliberalismo em nosso continente pela primeira vez. Em dado momento, quando os entrevistadores perguntam ao futuro ministro da Economia de Pinochet, o Sr. Sergio de Souza, sobre o que ele sentiu quando viu o Palacio La Moneda ser bombardeado por aviões militares até a morte do então presidente Salvador Allende, ele afirma: “uma alegria imensa. Eu sabia que era isso que devia ser feito”. Ou seja, essa é uma imagem explícita da maneira como a liberdade do mercado só poderia ser implementada calando todos os que não acreditam nela, todos os que contestam seus resultados e sua lógica. Para isso, seria necessário um Estado forte e sem limites em sua sanha para silenciar a sociedade da forma a mais violenta. O que nos explica por que o neoliberalismo é, na verdade, o triunfo do Estado, e não sua redução ao mínimo.
O uso da noção de ditadura provisória não será um desvio de rota. Hayek já havia deixado claro seu receio de uma democracia sem restrições, de onde se seguiam suas diatribes contra uma pretensa “democracia totalitária” ou uma “ditadura plebiscitária” (Hayek, 1982, p. 4) que não respeitaria a tradição do império da Lei (Rule of Law). O respeito a tal Rule of Law, no qual encontraríamos a enunciação dos fundamentos liberais da economia e da política, seria o melhor remédio contra a tentação de sucumbir a um processo de barganha através do qual o Estado se transformaria na mera emulação de interesses múltiplos da sociedade, na mera coalização de interesses organizados.
Fato que impediria o Estado de defender a liberdade (que, no caso, não é nada mais que a liberdade econômica de empreender e de possuir propriedade privada) contra os múltiplos interesses das corporações da vida social, submetendo assim a maioria ao interesse de minorias organizadas. Contra essa forma de submissão de meus interesses pelos interesses de outro, seria necessário que todos se submetessem a regras racionais e às forças impessoais do mercado, como se fosse questão de assumir uma experiência de autotranscendência, uma Lei produzida pelos humanos e que os transcende.
No entanto, submeter-se à pretensa racionalidade das leis da economia exige uma despolitização radical da sociedade, uma recusa violenta de seus questionamentos a respeito da autonomia do próprio discurso econômico em relação aos interesses políticos. Ou seja, tal submissão exige assumir a economia como a figura mesma de um poder soberano, provido de uma violência propriamente soberana. Nesse ponto, podemos encontrar a expressão da natureza política autoritária da economia neoliberal, e aqui se desenha o mesmo modelo de gestão social que podemos encontrar em teóricos do nazismo, como Carl Schmitt.[xvii]
A esse respeito, lembremos como é possível encontrar a gênese da noção de despolitização da sociedade, tão necessária à implementação do neoliberalismo, na noção fascista de “Estado total”. Noção que, como compreendera Marcuse já nos anos 1930, nunca havia se contraposto ao liberalismo. Antes, era seu desdobramento necessário em um horizonte de capitalismo monopolista. Compreendendo como o fundamento liberal da redução da liberdade à liberdade do sujeito econômico individual em dispor da propriedade privada com a garantia jurídico-estatal que esta exige permanecia como a base a estrutura social do fascismo, Marcuse alertava para o fato de o “Estado total” fascista ser compatível com a ideia liberal de liberação da atividade econômica e forte intervenção nas esferas políticas da luta de classe.
Daí por que: “Os fundamentos econômicos desse trajeto da teoria liberal à teoria totalitária serão assumidos como pressupostos: repousam essencialmente na mudança da sociedade capitalista do capitalismo mercantil e industrial, edificado sobre a livre concorrência dos empresários individuais autônomos, ao moderno capitalismo monopolista, em que as relações de produção modificadas (sobretudo as grandes “unidades” dos cartéis, dos trustes etc.) exigem um Estado forte, mobilizador do todos os meios do poder” (Marcuse, 1997, p. 61).
Essa articulação entre liberalismo e fascismo fora tematizada por Carl Schmitt, pois vem de Schmitt a noção de que a democracia parlamentar, com seus sistemas de negociações, tendia a criar um “Estado total”.[xviii] Tendo de dar conta das múltiplas demandas vindas de vários setores sociais organizados, a democracia parlamentar acabaria por permitir ao Estado intervir em todos os espaços da vida, regulando todas as dimensões do conflito social, transformando-se em mera emulação dos antagonismos presentes na vida social.
Contra isso não seria necessário menos Estado, mas pensar outra forma de Estado total: um Estado total “qualitativo”, como dirá Schmitt. Nesse caso, um Estado capaz de despolitizar a sociedade, tendo força suficiente para intervir politicamente na luta de classes, eliminar as forças de sedição a fim de permitir a liberação da economia de seus pretensos entraves sociais.[xix] Schmitt não quer um Estado planificador, mas um Estado capaz de garantir uma intervenção autoritária no campo político a fim de liberar a economia em sua atividade autônoma. Essa noção era extremamente presente no debate alemão do final dos anos 1920 e início dos anos 1930 e vem daí a perspectiva política de Hayek.
Esse modelo distingue-se do “capitalismo de Estado” de Friedrich Pollock, na medida em que não se trata de uma regulação direta da atividade econômica visando à substituição do primado da economia pelo da administração, mas de uma regulação direta no campo político a fim de liberar a ação econômica de entraves. No entanto, ele se aproxima do modelo de Pollock na compreensão de que o eixo dos processos de gestão social estará fundado na procura em eliminar as contradições sociais através da gestão do campo econômico. Esse mesmo modelo poderá operar em chave tanto de democracia liberal quanto de regime autoritário.
Se pudermos completar, essa indiferença vem do fato de os dois polos estarem menos longe do que se gostaria de imaginar. Na verdade, tanto em um caso como em outro os fundamentos da racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos maximizadores de interesses individuais, permanecia como a estrutura da vida social e dos modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção violenta contra tendências contrárias.
Desenhando pessoas
Mas isso nunca funcionaria se não houvesse outra dimensão dos processos de intervenção social. Dimensão na qual podemos encontrar um profundo trabalho de design psicológico, ou seja, de internalização de predisposições psicológicas visando à produção de um tipo de relação a si, aos outros e ao mundo guiada através da generalização de princípios empresariais de performance, de investimento, de rentabilidade, de posicionamento, para todos os meandros da vida. Dessa forma, a empresa poderia nascer no coração e na mente dos indivíduos.
Um design psicológico que só poderia ser feito através da repetição generalizada de exortações morais que nos levavam a compreender toda resistência a tal redescrição empresarial da vida como falta moral, como recusa em ser um “adulto na sala”, em assumir a virtude da coragem diante do risco de empreender e abrir novos caminhos por conta própria. Algo que ressoa as análises de Weber a respeito do ideal empresarial como expressão da orientação puritana da conduta como missão. Não por outra razão conta-se constantemente a história de empresários que “desbravam” territórios infectados pela letargia e pelo marasmo, impondo corajosamente o gosto do risco e da inovação, como se estivessem imbuídos de um destino de redenção moral da sociedade.
Esse ideal empresarial de si foi o resultado psíquico necessário da estratégia neoliberal de construir uma “formalização da sociedade com base no modelo da empresa” (Foucault, 2010, p. 222), o que permitiu à lógica mercantil, entre outras coisas, ser usada como tribunal econômico contra o poder público. Pois é fundamental ao neoliberalismo “a extensão e disseminação dos valores do mercado à política social e a todas as instituições” (Brown, 2007, p. 50). Como sabemos, a generalização da forma-empresa no interior do corpo social abriu as portas para os indivíduos se autocompreenderem como “empresários de si mesmos” que definem a racionalidade de suas ações a partir da lógica de investimentos e retorno de “capitais”[xxiii] e que compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de “inteligência emocional”[xxiv] e otimização de suas competências afetivas. Ela permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo” (Dardot; Laval, 2010, p. 440), fundamento normativo para a internalização de um trabalho de vigilância e controle baseado na autoavaliação constante de si a partir de critérios derivados do mundo da administração de empresas. Essa retradução total das dimensões gerais das relações inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de análise econômica baseada no “cálculo racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface entre governo e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais enraizados psiquicamente.
Notemos ainda que essa internalização de um ideal empresarial de si só foi possível porque a própria empresa capitalista havia paulatinamente modificado suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 1920. A brutalidade do modelo taylorista de administração de tempos e movimentos, assim como a impessoalidade do modelo burocrático weberiano, havia paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista” desde a aceitação dos trabalhos pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos psicológicos de uma engenharia motivacional na qual “cooperação”, “comunicação” e “reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimização da produtividade.
Essa “humanização” da empresa capitalista, responsável pela criação de uma zona intermediária entre técnicas de gestão e regimes de intervenção terapêutica, com um vocabulário entre a administração e a psicologia, permitiu uma mobilização afetiva no interior do mundo do trabalho que levou à “fusão progressiva dos repertórios do mercado com as linguagens do eu” (Illouz, 2011, p. 154). As relações de trabalho foram “psicologizadas” para serem mais bem geridas, até chegar ao ponto em que as próprias técnicas clínicas de intervenção terapêutica começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente, a padrões de avaliação e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da administração de empresas.
As técnicas de steps, de foco, de gerenciamento de “capital humano”, de “inteligência emocional”, de otimização de performance que tinham sido criadas na sala de recursos humanos das grandes empresas agora faziam parte dos divãs e consultórios. Nem todos tinham percebido, mas não estávamos apenas falando como empresários de nós mesmos. Estávamos transformando tal forma de organização social em fundamentos para uma nova definição de normalidade psicológica. Nesse sentido, tudo que fosse contraditório em relação a tal ordem só poderia ser a expressão de alguma forma de patologia. Patologizar a crítica era simplesmente mais um passo.
Note-se ainda como esse tópico de generalização da forma-empresa é, ao mesmo tempo, a descrição das formas hegemônicas de violência no interior da vida social. Pois a empresa não é apenas a figura de uma forma de racionalidade econômica. Ela é a expressão de uma forma de violência. A competição empresarial não é um jogo de críquete, mas um processo de relação fundado na ausência de solidariedade (vista como entrave para o funcionamento da capacidade seletiva do progresso), no cinismo da competição que não é competição alguma (pois baseada na flexibilização contínua de normas, nos usos de toda forma de suborno, corrupção e cartel), na exploração colonial dos desfavorecidos, na destruição ambiental e no objetivo monopolista final. Essa violência pede uma justificação política, ela precisa se consolidar em uma vida social na qual toda figura de solidariedade genérica seja destruída, na qual o medo do outro como invasor potencial seja elevado a afeto central, na qual a exploração colonial seja a regra.[xxvi]
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