Neocolonialismo, Supremacia Branca e o Desafio da China



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A raça européia recebeu do céu, ou adquiriu pelos seus próprios esforços, uma tal superioridade inquestionável sobre todas as outras raças que compõem a grande família humana, que o homem colocado no nosso país, pelos seus vícios e ignorância, no último degrau da escada social,  ainda  é o primeiro entre os selvagens - Alexis de Tocqueville (1805-1859)

O influente ‘think tank’ dos EUA The Atlantic Council publicou no inicio deste ano um importante artigo sobre a China (1) com o título: ‘The Longer Telegram’. Este título é uma referência direta ao documento de mesmo nome  escrito em 1946 pelo diplomata norte-americano George Kennan, um dos pricipais arquitetos da política externa dos EUA depois da Segunda Guerra Mundial. Em seu texto, George Kennan argumentava que os EUA deveriam abandonar completamente sua recente aliança com a URSS e tomar uma posição agressiva em relação à ex-aliada, sendo por isso considerado um dos documentos fundadores da Guerra Fria. O atual ‘Longer Telegram’ do Atlantic Council coloca deste modo a China como a ‘inimiga’  no contexto de uma nova Guerra Fria. 

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O Atlantic Council é uma organização que reúne grandes empresas multinacionais, por um lado, e a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN – por outro. Personalidades como Henry Kissinger estão no seu Conselho de Administração e entre os seus Diretores Honorários estão os ex-Secretários de Estado dos EUA Condoleezza Rice e o General Colin Powell.(2) Podemos considerar que as opiniões expressas pelo Atlantic Council correspondem ao consenso da elite imperialista mundial e que, para esta elite, a China representa, de fato, uma ‘ameaça’. Que o Atlantic Council faça referência a George Kennan neste seu documento sobre a China não deixa de ser revelador. Em 1948 George Kennan definiu assim a posição e os interesses dos EUA:

“Temos cerca de 50% da riqueza do mundo, mas apenas 6,3% da sua população.... Nesta situação, não podemos deixar de ser objeto de inveja e ressentimento. A nossa verdadeira tarefa no próximo período é conceber um padrão de relações que nos permita manter esta posição de disparidade...Não precisamos de nos iludir que hoje podemos dar-nos ao luxo de altruísmo e de ação mundial...Devemos deixar de falar de objetivos vagos e irreais como os direitos humanos, o aumento do nível de vida, e a democratização. O dia não está longe quando vamos ter de lidar em termos diretos de poder. Quanto menos formos então prejudicados por slogans idealistas,  melhor”.(3)

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Para ‘manter essa posição de disparidade’ – como escreveu Kennan - os EUA e seus aliados ocidentais assumiram uma agressiva política neocolonial para impedir o desenvolvimento econômico e social  de outras nações, mantendo-as como subservientes fornecedoras de matéria-prima e mão de obra barata. O imperdoável ‘crime’ da China aos olhos do ocidente foi o de ter escapado ao seu ‘destino manifesto’ de ser apenas mais uma colônia. 

A infame Guerra do Ópio no século XIX abriu a China à exploração do Ocidente. Um  dos mais reconhecidos  representantes do pensamento liberal ocidental no Século XIX , John Stuart Mill, foi um defensor desta guerra. Outro representante importante do liberalismo, Alexis de Tocqueville, assim se referiu à China:

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“No entanto, dificilmente poderei me consolar se não ver finalmente, antes de morrer, a China abrir-se e o olho da Europa penetrar nela com as suas armas.” (4)

Segundo Noam Chomsky, com a Guerra do Ópio a 

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“Grã-Bretanha estabeleceu a mais extensa empresa de narcotráfico do mundo; nunca houve nada remotamente semelhante. Não só conseguiram entrar na China pela primeira vez, como também os lucros do ópio apoiaram o Raj, os custos da Marinha Britânica, e forneceram capital muito significativo que alimentou a revolução industrial na Inglaterra”.(5)

A partir desta  vitória na Guerra do Ópio, a China passou a ser considerada como uma colônia – e não apenas do Ocidente. O imperialismo japonês, a partir de 1931, iniciou excursões no território chinês com o objetivo de se apropriar das imensas riquezas naturais deste país e, em 1937,  partiu para a guerra aberta com uma extrema violência contra a China. A população civil  foi alvo de uma crueldade sem limites do exército  japonês. Estupros em massa e assassinatos eram prática comuns, como no tristemente conhecido caso da  cidade de Nanking. Para a China, a Segunda Guerra Mundial começou em 1937 e calcula-se que a China tenha perdido entre 10 e 20 milhões de pessoas nesta guerra. Para os aliados, a derrota e incorporação do Japão dentro da órbita do capitalismo ocidental siginificava que a China continuaria a ser uma colônia provedora de matéria prima, condenada ao subdesenvolvimento. Ao fim da guerra, não houve reparações à China pagas pelo Japão como a Alemanha teve que pagar aos aliados. Tampouco houve, para a China, um ‘plano Marshall’ que ajudasse na sua recuperação econômica após a destruição causada pela guerra. O que houve na China foi a Revolução Chinesa. 

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É um lugar comum chamar de ‘milagre’ a recuperação econômica da Alemanha após a guerra, o ‘milagre alemão’. Mas nada se compara à recuperaçâo da China. Partindo de uma base industrial muito inferior à da Alemanha do pós-guerra, tendo sofrido uma destruição muito maior e sem nenhum apoio equivalente ao que a Alemanha recebeu dos EUA e ainda enfrentando uma guerra civil que se estendeu até 1949 com a vitória da revolução, num espaço de 72 anos – de 1949 a 2021 – a China conseguiu não só escapar ao seu ‘destino manifesto’ de colônia, mas transformou-se no que já é, na prática, a maior potência mundial. Graças à China, uma revolução silenciosa e de um alcance inimaginável já ocorreu: o centro gravitacional econômico do planeta deslocou-se de volta  para a Ásia depois de mais de 500 anos de dominação do eixo atlântico. Mais ainda, a China desafia também um dos pressupostos básicos da civilização ocidental: a supremacia branca. 

A citação de Tocqueville no início deste texto revela a naturalidade com que um renomado representante da civilização européia reflete sobre a sua própria ‘inerente’ superioridade, a base da supremacia branca. Foi esta ‘superioridade’ que justificou, por uma lado,  a escravidão, e por outro, a exploração colonial sem as quais o capitalismo não teria se desenvolvido. A supremacia branca é intrínsecamente ligada ao capitalismo.

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Friedrich Hayek, o famoso e respeitado pensador que tanto contribuiu para o estabelecimento da vertente do capitalismo dominante no ocidente atualmente – o neoliberalismo – admite abertamente a estreita ligação de seu pensamento com o racismo e a supremacia branca. Em 1946, planejando o que se tornaria a reunião de fundação na Suíça da Sociedade do Mont Pélerin – o primeiro ‘think tank’ neoliberal, modelo de todos os outros que vieram a seguir, como o próprio Atlantic Council e a  também extremamente influente Atlas Network – Hayek enviou uma carta circular a todos aqueles que ele pretendia convidar para o encontro na Suíça. Delineando nesta carta o seu pensamento em relação aos objetivos do encontro proposto, Hayek escreveu:

“Embora a filosofia da liberdade que teria de formar a base comum para tal esforço conjunto não seja facilmente definida em algumas frases, considerei a sugestão amplamente aceitável de que os ideais subjacentes às obras de Lord Acton e Alexis de Tocqueville poderiam servir como o fundamento acordado a partir do qual tal esforço comum poderia começar”.(6)

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As citações anteriores de Tocqueville mostram a sua identificação com a supremacia branca. Quanto a Lord Acton ( 1834 – 1902 )  – o outro autor citado por Hayek como podendo servir de ‘ fundamento acordado’ – foi um dos mais influentes políticos da Inglaterra de seu tempo. Sobre Lord Acton basta dizer que durante a Guerra Civil dos EUA ele apoiou os escravocratas do Sul, lamentando profundamente a sua derrota. Tocqueville e Lord Acton – escravidão e supremacia branca – a base ‘amplamente aceitável’ do neoliberalismo de Friedrich Hayek. 

Nos EUA pós-guerra civil, chineses foram importados para trabalhar como mão de obra semi-escrava na construção das ferrovias e em outros trabalhos antes realizados por escravos negros – sendo igualmente desprezados e oprimidos pelos supremacistas brancos norte-americanos. Que um povo e um país visto como ‘inferior’ pela supremacia branca tenha se tornado seu mais espetacular oponente não é algo fácil de digerir ou aceitar pela elite imperial profundamente identificada com a pretensa ‘superioridade’ – racial, cultural e econômica – do ocidente.

Ainda pior: a China não apenas saiu da condição de colônia como está ajudando outras nações em sua luta contra o neocolonialismo imperial, como na América Latina. Em um artigo sobre este tema (7), Yanis Iqbal informa :

“A China tem feito incursões na América Latina, desafiando implicitamente a hegemonia unipolar do Império Americano e a sua Doutrina Monroe. No final dos anos 90, o comércio total (importações mais exportações) entre a China e a América Latina era de aproximadamente US$5-8B por ano. O comércio bilateral cresceu dramaticamente a partir da virada do século, atingindo mais de US$255B em 2014. Entre 1999 e 2014, as importações chinesas da América Latina aumentaram mais de quarenta vezes, e as exportações para a região mais de vinte e cinco vezes”.

E sobre o apoio fundamental da China aos governos progressistas na América Latina, Iqbal acrescenta:

“Os governos de esquerda na América Latina viram a expansão das relações com a China como uma forma de alargar o espaço político: torna-os menos vulneráveis às condicionalidades do Consenso de Washington e permite-lhes prosseguir com políticas sociais alternativas livres de pressões externas. Para dar um exemplo, no Equador, quando a Assembleia Nacional aprovou uma lei em 2010 que exigia a renegociação de contratos com empresas transnacionais na indústria petrolífera, as empresas chinesas mostraram-se mais dispostas do que as ocidentais a aceitar as novas condições de comércio.”

“Na Bolívia, uma empresa conjunta entre a Jungie Mining da China e a cooperativa mineira Alto Canutillos descobriu durante as consultas que a comunidade local em Tacobamba se opunha à abertura de uma fábrica de processamento de estanho perto da mina e a empresa concordou em tranferir a localização da fábrica para  um local a 25 milhas de distância, evitando um potencial conflito. Este tipo de atitude cooperativa e de respeito às bases sociais das organizações socialistas e contribui para a sua consolidação política.”

“Na Venezuela, o governo Chavista utilizou empréstimos chineses para financiar os seus programas sociais, o que não teria sido possível se tivessem necessidade de angariar fundos nos mercados internacionais de capitais. Numa situação em que a beligerância imperialista do governo dos EUA e a desaprovação dos mercados financeiros em relação às políticas socialistas da Venezuela levaram a uma nota muito baixa no sistema de crédito internacional, o empréstimo da China foi uma forma  para o governo financiar o seu programa econômico.”

O neocolonialismo imperial também tem uma  proposta para a América Latina, que o próprio Atlantic Council revela através de sua iniciativa mais ‘globalmente reconhecida’, como informa esta organização, o ‘Global Citizen Award’,um prêmio  anualmente outorgado ‘a indivíduos que tenham feito contribuições excepcionais  para o reforço das relações transatlânticas’.(8)

 Em 2018 Maurício Macri, então Presidente da Argentina, foi um dos escolhidos para receber este tão prestigiado prêmio.(9) Em seu site, o Atlantic Council informou que

 “ concedeu ao Presidente argentino Mauricio Macri o prêmio pelos seus incansáveis esforços para renovar o papel da Argentina como protagonista global. O prêmio foi também entregue ao Presidente Macri pelo seu empenho em colocar a Argentina num caminho sustentável, e ao fazê-lo, cumprindo a promessa de um futuro próspero para o povo argentino.”

Ainda segundo o Atlantic Council:

“ Quando Mauricio Macri tomou posse em 2015, herdou um legado de má gestão e enormes déficits orçamentais, com a Argentina enfrentando profundos problemas estruturais. Em quase três anos como presidente, ele trouxe a Argentina de volta como um líder regional e mundial chave, restabelecendo a credibilidade através de um novo gabinete de estatísticas transparente e de uma reabertura aos mercados financeiros internacionais.”

A realidade da gestão Macri na Argentina, no entanto, é bem diferente desta visão apresentada pelo Atlantic Council.  A dívida externa da Argentina ao fim do Governo de Christina Kirchner era de 25.7 % do PIB, ou em torno de US$ 170 bilhões. (10)  Ao fim do governo Macri a dívida era de 63.7% do PIB, em torno de US$ 285 bilhões. O próprio Atlantic Council reconhece que a situação na Argentina tinha piorado, ao afirmar, no mesmo texto sobre o prêmio concedido a Macri que:

“ A 26 de Setembro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) concordou em aumentar o seu apoio à Argentina para 57,1 bilhões de dólares, o maior empréstimo da história do Fundo, a ser desembolsado ao longo de três anos.”

Por que a Argentina precisaria do ‘maior empréstimo na história do Fundo’ se tudo estava indo tão bem? Um tal empréstimo não tinha sido necessário durante o governo de Christina Kirchner.

Na realidade, a pobreza na Argentina aumentou exponencialmente durante o Governo Macri – e exatamente por isso ele foi ‘premiado’ com o Global Citizen Award do Atlantic Council. Macri devolveu a Argentina à condição de colônia, colocando-a novamente dentro da esfera imperial e sob controle do FMI, destruindo as conquistas progressistas do governo anterior de Christina Kirchner.

 O caso da Argentina não é o único. Na Bolívia e no Brasil, países em que ocorreram golpes de estado com o apoio explícito do Império e de seus think tanks Atlantic Council e Atlas Network, o objetivo maior também foi deter – e se possível reverter - os avanços sociais e econômicos alcançados.

 Os anos de governo de Evo Morales na Bolívia trouxeram progressos inegáveis ao país, basta dizer que o PIB da Bolívia em 2005 era de 9.574 bilhões de dólares e em 2013 foi de 40.000 bilhões de dólares. A pobreza extrema que era de 38% da população em 2006 tinha caído para 16% em 2018. (11).

O regime da golpista Jeanine Áñez procurou reverter todas as conquistas anteriores e só não conseguiu porque, graças à resistência do povo boliviano, seu governo durou pouco e sua derrota nas urnas para o novo Presidente Luis Arce – do MAS - foi devastadora, mais uma prova de que as políticas implementadas pelo regime golpista serviam apenas aos interesses da elite e do Império e não à  maioria do povo da Bolívia.

 Mas no Brasil do golpista Jair Bolsonaro a situação não podia ser pior: o Brasil  era a sexta economia do mundo durante o governo da Presidente Dilma Rousseff. Hoje o Brasil já caiu para a décima segunda economia do mundo... É um país muito, muito mais pobre do que era antes... Exatamente o que convém ao projeto imperial neocolonial como articulado pelo Atlantic Council.

E não é apenas uma coincidência que tanto os seguidores de  Janine Ãñez quanto os de Jair Bolsonaro tenham realizado vários ataques racistas às populações indígenas e aos negros, manifestando assim publicamente a sua ‘solidariedade’ com a ideologia da  supremacia branca da metrópole imperial.

Em 2019 o presidente do Chile, Sebastian Piñera, também recebeu o ‘Global Citizen Award’ do Atlantic Council – e não por acaso vem enfrentando sucessivos protestos nas ruas  contra o seu governo: os chilenos não querem continuar sendo colônia. As premiações pelo Atlantic Council de Macri e Piñera revelam que os governos mais subservientes ao capital internacional – e portanto ao imperialismo – são os mais  prestigiados e apoiados pelos think tanks neoliberais e seu projeto neocolonial.

Cuba, outra nação que, através de sua revolução, escapou ao destino colonial, vem sendo punida por sanções e bloqueios há décadas. Deter o desenvolvimento de Cuba tem sido uma prioridade do Império. Mas também em Cuba a China tem se mostrado um importante parceiro e investidor. E o apoio chinês ao desenvolvimento das vacinas cubanas contra o COVID-19 tem colocado o lucrativo setor farmacêutico do ocidente em pânico, pois as vacinas da China e de Cuba serão oferecidas a um custo muito menor aos países do Caribe, América Latina, África  e Ásia.

A ironia maior é que o Partido Comunista da China, através de seus massivos investimentos em infra-estrutura, sobretudo dentro da iniciativa Cinturão e Rota – Road and Belt -  está conseguindo realizar na Ásia aquilo que a burguesia esclarecida dos EUA tentou fazer em seu próprio país nos anos 30 do século passado com o ‘New Deal’. O Governo Roosevelt conseguiu implementar a política econômica do ‘New Deal’ apenas até um certo ponto, pois a resistência dos setores mais autoritários e reacionários do capitalismo americano opuseram uma enorme resistência, chegando  a planejar  um golpe de estado para destituir o Presidente. Mesmo assim, o ‘New Deal’ formou a base do desenvolvimento da economia dos EUA durante o seu maior período de expansão e crescimento no século XX.

Mas são as forças mais retrógrados do capitalismo, as que combateram ferozmente o ‘New Deal’ nos EUA – organizadas  como a ordem neoliberal -   que  hoje dominam o ocidente e procuram impor o neocolonialismo ao resto do mundo. 

O Império e a supremacia branca estão em guerra contra o desenvolvimento, contra a emancipação dos povos, contra a diversidade cultural, social e econômica. Mas como a China, a Rússia, a Bolívia, a Argentina, o Equador, Cuba e Venezuela tem mostrado, outros caminhos são possíveis. E os diversos povos do mundo, em suas muitas cores, gêneros e modos de ser, se unem cada vez mais na construção de um futuro mais humano e solidário.

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