Nem cerimônia, nem adeus

Só nos resta tentar sobreviver a essa sinuca de bicos fatais. Juntar forças contra o azar de lutar contra dois monstros, o do vírus e o da ignorância assentada no planalto central do país sob a regência de um mentecapto. O problema é que ele não chegou lá sozinho



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“Máquinas de moer gente”. A precisa metáfora com que Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro (1995), definiu os engenhos de açúcar do Nordeste colonial acopla-se   precisa definição sobre a classe dominante brasileira, explicitada por ele no programa Roda Viva da TV Cultura (1988). Na opinião do eminente antropólogo, ela “é ruim, ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente”. 

O mais eficaz mecanismo para a segurança dos que circulam no andar de cima está no aparato repressor, seja, no passado, na Guarda Real do Império e nos capitães do mato, seja na ordenação policial do presente, com seus batalhões de operações especiais. Essas forças estão sempre de prontidão para resolver problemas sociais por meio da  eliminação de pobres, pretos e periféricos, como demonstram as manchas em nosso processo civilizatório via massacres e chacinas: Carandiru (1992), Vigário Geral (1993), Candelária (1993), Eldorado de Carajás (1996) e, mais recentemente, Jacarezinho (2021). 

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Lembro-me que só vim travar conhecimento com mortes coletivas, em Aracaju, na adolescência e juventude. No desabamento do teto do antigo Mercado das Verduras (1977) com nove, e na explosão num depósito de fogos clandestino (1980), com doze. Na infância, só as individuais. “A indesejada das gentes”, na feliz definição do mestre Manuel Bandeira, só chegava de madrugada. A minha avó materna. Uma prima e um irmão de meu pai. O filho de uma vizinha, depois de uns dias internados no Cirurgia, após bater o jipe na traseira de um caminhão, quando ia ao estádio Sabino Ribeiro no bairro Industrial. O que nos chegou, é que ele havia rompido “o bácimo”.

Depois havia o cheiro vindo de uma espécie de incenso enjoativo. Sempre chegava alguém com um punhado de flores, muitas vezes colhidas nas cercanias. De repente, os murmúrios das conversas paralelas eram suspensos, substituídos pelo clamor da saída. Isso, no entanto, dependia da condição, lembrando de novo o mestre Bandeira, do dono da “alma extinta”. Quem romperia em choro, por exemplo, diante do corpo magrinho de tia Inha, cega desde nascença? A chamávamos de tia porque nos disseram que havia certo parentesco com nosso pai. Colocaram seu corpo mirrado, sem nenhum alarde, no carro preto. Sim, ele sempre foi preto. 

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Já o filho da vizinha foi levado ao Santa Isabel pelos colegas do time em que jogava. Todos uniformizados e se revezando no pegar da alça. O Santos Dumont foi um representante aguerrido do que um dia se chamou de futebol amador. Essa cena vista por meus olhos meninos foi uma exceção. Nas outras, dividiam-se parentes e vizinhos em poucos carros. Mais adiante, passou-se a ter um ou dois ônibus da Bonfim, empresa onde trabalhava um tio como homem de confiança do dono. Algumas crianças punham as caras nas janelas dos ônibus, curtindo aquele passeio inesperado.

Hoje, por conta de um vírus desgraçado, tudo mudou. Quando a gente vê, já é a foto da pessoa numa rede social, encimada por frases curtas com alusões à luz, ao descanso eterno, à passagem, à saudade. Só os extremamente próximos têm direito a uma última visão rápida, distante e fria. Nada de beijo, nada de abraço, nada de último olhar na “janelinha” da tampa.  

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A Cerimônia do Adeus, o pungente título escolhido por Simone de Beauvoir para   registrar os últimos anos de Sartre, o companheiro com quem conviveu perto-longe, soa-nos como uma metáfora oca. A dor de quem fica não sai no virtual. O espanto naturalizou-se em meio à hecatombe dos números. Viramos personagens reais, saídos de páginas como O Mez da grippe, de Valêncio Xavier; A peste, de Albert Camus; O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez.

O círculo cada vez mais próximo. Em quinze dias, retiraram-se de minha retina para o rio da memória: Cléber Santana, um promissor historiador em Aracaju; Átila Vieira, um aguerrido jornalista e ativista, em Maceió; Luiz Antônio, no Rio de Janeiro, que trabalhou por mais de quarenta anos na Academia Brasileira de Letras, mais particularmente na Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça. Ir ao Rio e passar na ABL para conversar com ele tornou-se uma saborosa obrigação. Sabia de tudo e mais pouco sobre o acervo. Havia sempre uma informação que ele compartilhava com a maior generosidade depois de usar uma escada comprida para buscar um volume raro. Quantas histórias ele não teria para contar por meio de suas memórias?

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 Os três estavam com a vida em plena floração, mesmo Luiz Antônio, já afastado  da Casa de Machado de Assis. Cléber Santana fez uma dissertação sobre o samba visto como ação transgressora na Aracaju dos anos 1930. Átila Vieira iluminava-se ao levar a poética de Augusto dos Anjos e Elisa Lucinda aos saraus da vida. A nossa “estrada de pó e esperança”, cantada por mestre Drummond, nunca esteve tão cinza.  

Só nos resta tentar sobreviver a essa sinuca de bicos fatais. Juntar forças contra o azar de lutar contra dois monstros, o do vírus e o da ignorância assentada no planalto central do país sob a regência de um mentecapto. O problema é que ele não chegou lá sozinho. É preciso pensar onde foi que erramos. Para o filósofo Theodor Adorno, “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”. Esta  também deve contribuir para a emancipação humana. Podemos começar nossa autocrítica pela educação brasileira, pois sabemos que não foram poucos os “educadores”, gestores escolares e alunos que deram aval à tragédia anunciada que ora vivemos.   

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