Nego do Borel, o homem preto desumanizado e o estábulo como entretenimento
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Mesmo sendo completamente avesso à BBB’S, “Fazendas” e outros tipos de reality que oferecem o pior do ser humano numa bandeja de prata, me senti instado a assistir ao episódio onde o cantor Nego do Borel teria abusado sexualmente de uma de suas colegas de confinamento. A modelo Dayane Mello. Ao adentrar a tão bagunçado recinto através de vídeos que começaram a viralizar nas redes, o primeiro ponto que me chamou a atenção foi o fato de que a voz do bom senso entre os “fazendeiros” pertencia a MC Gui. Aquele que foi a Disney e aproveitou para tirar um sarro de uma criança que havia raspado os cabelos da cabeça, em função de um tratamento contra o câncer.
Depois de tão, porque não dizer, grato paradoxo, conclui que a atração da Record deveria se chamar “O Estábulo”. Mas essa é uma questão para o marketing da emissora resolver. Com relação ao fato que motiva este artigo, o jurídico da emissora já se pronunciou e deu ao público a resposta que ele tanto esperava. A expulsão de Nego do Borel. Já sabemos que quando uma mulher diz não, é não. E também sabemos, como bem lembrou a apresentadora do programa, Adriane Galisteu, que “quando uma mulher alcoolizada diz ‘sim’, também é não”. Um fato que apenas MC Gui, pasmemo-nos todos, pareceu perceber quando alertou a Nego do Borel quanto a sua presença viril e excitada na cama da modelo.
Para além de uma acusação de estupro que, por si só, é muito grave, eu gostaria de pontuar a respeito da representatividade preta nesses realities da vida. Na última edição do BBB tivemos a carne preta sendo oferecida a preço módico e com a sua qualidade bastante contestável. A vilania dissimulada de Karol Conká, a rabugice metódica de Lumena Aleluia, a “porralouquice” roteirizada de Lucas Penteado e a deceptiva empatia de Projota, foram a aposta da produção para reforçar o estereótipo do preto problemático, que pode ser legitimamente desumanizado em função de seu comportamento. Sem falar no humor questionável de Nego Di, que o levou a condição de um dos mais odiados do programa.
Escolhas minuciosamente feitas para entreter “justificando” o racismo sofrido por todos os pretos, baseado na conduta pública de uns pretos que se venderam a tal estigma. “A Fazenda” decidiu repetir o script com Nego do Borel, embora haja entre os confinados Tati Quebra-Barraco, que, em breve, ganhará destaque na atração justificando a alcunha sugestiva que usa como sobrenome artístico. Tudo planejado e elaborado para queimar ainda mais a imagem da negritude. No caso de Nego do Borel e a estranha acusação de estupro que pesa sobre ele, a imagem do homem preto é mais uma vez associada a lascívia, a promiscuidade sexual, a violência física e a suspeição e falta de credibilidade que historicamente pairam sobre os negros.
Nego do Borel saiu da casa se dizendo “muito feliz” e posando sorridente ao lado da mãe. No dia seguinte, gravou um vídeo se dizendo depressivo e ameaçando atentar contra a própria vida por não estar sabendo lidar com a situação. Depressão é coisa séria e não deve ser banalizada. Desejos suicidas muito menos. Sendo assim, julgar a veracidade da fala de Nego do Borel seria leviano. Leviandade esta que não se aplica ao julgarmos as intenções de realities shows como este em questão, onde os participantes, em grande parte figuras polêmicas, estão ali para dar audiência. Custe o que custar e doa a quem doer. E se for para jogar mais um preto às feras, melhor ainda.
Em que pese o histórico do acusado, onde outras mulheres já relataram casos de abuso e violência cometidos por ele, o que fortalece os argumentos usados para pedir a sua cabeça, é preciso analisar algumas coisas com muito cuidado neste caso. A primeira, é que quase nada do que acontece nesses programas pode ser levado a sério. Embora a grande audiência pense o contrário. Segundo, a vítima não expressou nenhum tipo de reação contrária ao seu suposto estuprador e ainda declarou que ele não cometeu nenhum abuso contra ela. Terceiro, na presença de outras pessoas, num local cercado por câmeras e sendo transmitido em rede nacional, seria estúpido demais o sujeito cometer tamanho desatino. Quarto, e, talvez, o fator mais importante, é que todo preto é suspeito mesmo que se prove o contrário.
Há no inconsciente coletivo de boa parte dessa sociedade racista e construída sobre alicerces escravocratas e colonialistas, um prazer quase orgástico em ver um preto sofrer. É uma forma de se vingar por não poder mais nos escravizar, como muitos ainda hoje têm vontade. E não digam que há exagero no que eu escrevo. Basta lembrar que, até pouco tempo, não éramos considerados humanos e fazíamos parte da propriedade e do mobiliário da casa grande. E a eleição de Bolsonaro, um racista tradicional e conservador, é outro fator que comprova a saudade que a elite burguesa sente dos temos da escravidão legalizada. E se ainda levarmos em conta que apenas pretos costumam ser presos por “engano”, e mesmo que tenham a inocência provada continuam a ser tratados como criminosos, esse caso envolvendo o Nego do Borel merece maior atenção, cuidado e responsabilidade.
Voltando ao estábulo como entretenimento, o que podemos esperar além de situações patéticas e constrangedoras, quando colocam um monte de gente diferente dentro da mesma casa, obrigando-as a “viver” nos limites do bom senso que já lhes falta e ainda oferecem alguns milhões para quem vencer a batalha de tão indesejável convivência? Sem falar nas festinhas com bebida liberada, que ativam o modo “fuck you” nos entediados habitantes do lugar. É como Eduardo um dia disse à Mônica: “Festa estranha com gente esquisita. Eu não tô legal! Não aguento mais birita” E deu-se alguma inevitável desgraça em nome da audiência. Cansei! Deixa eu ver o que está passando em outro canal...
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