Narrativa econômica e idealismo
Nossa expectativa em relação à economia é construída pela mente humana, mas também por uma realidade independente dela
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(Publicado no site A Terra é Redonda)
Robert Shiller, laureado com o Prêmio Nobel de Ciência Econômica em 2013, é pesquisador e divulgador da economia comportamental. Em janeiro de 2017, logo após a vitória da narrativa populista de direita na eleição para presidente dos Estados Unidos, publicou um texto com muita repercussão entre interessados em sua linha de pesquisa.
Intitulado Economia narrativa, parte do princípio de o cérebro humano ser altamente sintonizado com narrativas, sejam factuais ou não, para justificar ações em andamento, mesmo ações econômicas básicas como gastar e investir. As estórias motivam e conectam atividades a valores e sentimentos de necessidades. Elas “viralizam” e espalham-se em redes sociais pelo mundo. Têm impacto econômico.
Robert Shiller entende a Economia Narrativa como o estudo da disseminação dinâmica das narrativas populares, particularmente, aquelas de interesse e emoção humana. Mostra como elas mudam ao longo do tempo e propiciam entender as flutuações econômicas.
Uma recessão, por exemplo, é um momento quando muitas pessoas decidiram gastar menos. Percebendo essa atitude, empreendedores adiam a abertura de um novo negócio ou a ampliação de um negócio existente com a contratação de trabalhadores. Muitos ficam impressionados e expressam apoio à narrativa de austeridade fiscal.
Em processo de retroalimentação, tomam essas decisões em reação à própria recessão. No entanto, para entender por qual razão uma recessão começou, essa teoria de feedback ou multiplicador econômico é inconsistente.
A teoria sobre epidemias de doenças fornece uma estrutura realista para a compreensão da dinâmica das doenças infecciosas. Seu modelo mais simples divide a população em três compartimentos: suscetíveis, infecciosos e recuperados.
Suscetíveis são pessoas ainda sem pegar a doença e, por isso, vulneráveis. Infectados têm a doença e a espalham ativamente. Recuperados tiveram a doença e superaram, ficaram imunes e não são mais capazes de pegar a doença novamente ou espalhá-la. Nesse modelo SIR, a soma deles atinge o total da população.
A ideia-chave dessa teoria matemática de epidemias de doenças era, em uma população completamente misturada, a taxa de aumento de agentes infecciosos em uma epidemia de doença ser igual a uma taxa de contágio constante vezes o produto do número de suscetíveis. Se o número de infectados tivesse uma taxa de recuperação constante, cada vez quando um suscetível encontrasse um infeccioso, haveria uma chance de infecção.
O número de tais encontros por unidade de tempo depende do número de pares suscetíveis-infecciosos na população. A recuperação da doença é assumida com uma forma de decaimento exponencial, em vez de um cronograma fixo para a doença.
Robert Shiller usa o mesmo modelo SIR para descrever a transmissão boca a boca de uma ideia. No caso, a taxa de contágio é a fração do tempo de encontro entre um infeccioso, uma pessoa interessada e receptiva a uma estória (ou “teoria conspiratória”), efetivamente convence o suscetível o suficiente da narrativa para espalhá-la ainda mais.
Muitos encontros talvez sejam necessários antes de uma determinada pessoa ser infectada. A taxa de remoção pode ser descrita como a taxa de esquecimento, de simples decaimento de memórias, mas também há esquecimento por conta de ostracismo.
Essa remoção também ocorre enquanto o repertório de outras estórias mais atuais evolui para longe daquela passada. Surgem indícios de declínio, para a memória coletiva, por aquela narrativa parecer menos conectada ou menos adequada.
Diante da atualidade, fica superada por novas teorias ou preconceitos. Por exemplo, na política brasileira, após todo o armamentismo, o golpismo e a destruição do patrimônio público, o bolsonarismo “já era”. A estupidez teve seu auge e entrará em declínio fatal.
Em economia, o modelo multiplicador keynesiano com suas “múltiplas rodadas de gastos” é uma espécie de modelo epidêmico com a taxa de contágio dada pela propensão marginal a consumir (PMC) e a taxa de remoção zero. É um modelo de feedback teoricamente atraente.
Qualquer estímulo à atividade econômica, aumentaria a renda de alguém. Esse indivíduo então gastaria essa renda, de acordo com sua propensão marginal a consumir, gerando renda para outro a também gastar pela propensão marginal a consumir, e assim por diante. Ao fim e ao cabo, a renda nacional aumentaria, gradativamente, até contaminar o resultado da renda nacional.
Na prática, segundo Robert Shiller, a forma puramente keynesiana de contágio é limitada. Algumas estimativas do multiplicador são muito baixas. Logo, esse tipo de contágio não é tão importante quanto parecia à primeira vista.
A “hipótese da renda permanente” sugere o contágio keynesiano ser muito baixo se as pessoas não acreditarem na narrativa. Se o surto de renda não for permanente, a propensão marginal a consumir será muito baixa e o multiplicador pouco diferente de um.
Em uma bolha de ativos, o contágio se propaga pela atenção do público aos aumentos rápidos de preços. Aumentam a taxa de contágio de narrativas populares justificadoras desses aumentos, elevando a demanda pelos ativos e ainda mais os preços.
O impacto da “epidemia” especulativa no retorno do ativo dependeria de sua velocidade em relação à taxa de desconto para trazer o retorno esperado ao valor presente. Se a velocidade for muito baixa, haverá muito pouco impacto nos retornos de curto prazo. Então, as mudanças nos preços dos ativos encontrariam pouca correlação serial de curto prazo ao longo do tempo. A profecia autorrealizável não provocaria aumento de gastos.
Quando li essa narrativa de Robert Shiller, lembrei-me das lições do Padre Henrique de Lima Vaz, criador da AP (Ação Popular) e meu professor de Hegel. Segui seu curso sobre a Enciclopédia das Ciências Filosóficas, na FAFICH-UFMG, como “aluno especial” há quase ½ século.
A Economia Narrativa resvala na filosofia idealista. A ontologia é o estudo filosófico da natureza da realidade, das entidades existentes e das relações entre elas, buscando entender as categorias fundamentais de ser e as leis de movimento da existência.
O idealismo ontológico postula a realidade fundamental ser de natureza mental ou espiritual. A mente, a consciência ou o espírito são as entidades primárias. O mundo material seria derivado ou dependente dessa realidade mental. O idealismo dá primazia à ideia, ao pensamento ou à mente em relação à matéria. As ideias e os conceitos são fundamentais na compreensão e na interpretação da realidade. A mente desempenha um papel ativo na construção e na percepção do mundo.
Segundo o idealismo epistemológico, o conhecimento é construído e dependente da atividade mental. Ele não é uma representação direta e objetiva da realidade, mas uma construção interpretativa, baseada nas estruturas e nos processos mentais. O idealismo rejeita a ideia de a matéria ser a realidade fundamental ou o mundo físico ser independente da mente. Para ele, a matéria é uma construção da mente ou uma manifestação da consciência.
Daí enfatiza a importância da subjetividade e da experiência individual na compreensão da realidade. A interpretação e a percepção são influenciadas pelos estados mentais, pelas crenças, pelos valores e pelas experiências individuais. O idealismo valoriza a liberdade e a autonomia do indivíduo. Enfatiza a capacidade da mente humana de criar, de transformar e de moldar a realidade de acordo com seus propósitos e ideais.
Quanto à natureza da realidade, na época do curso (1974), eu era adepto do “materialismo histórico”. Achava a base fundamental para entender a sociedade e a história eram a análise das condições materiais de existência, como as relações de produção, as classes sociais e as forças produtivas. Enfatizava a importância das forças econômicas e das relações de poder na formação das estruturas sociais e históricas.
Entendia a consciência e a ideia como produtos da atividade material e social. A forma como as pessoas pensam, compreendem e interpretam o mundo seria influenciada pelas condições materiais nas quais vivem.
Com o amadurecimento intelectual, passei a questionar a visão da história apenas como resultado das lutas de classes e das mudanças nas condições de produção. Não cheguei ao extremo de plena rejeição do materialismo, mas agora reflito sobre as narrativas.
No mesmo semestre, estudei a filosofia de Immanuel Kant. Supera algumas limitações do empirismo e do racionalismo com uma abordagem chamada de “idealismo transcendental”. Nosso conhecimento é construído pela mente humana, mas também reconhece a existência de uma realidade independente dela.
Seu “idealismo transcendental” difere do “idealismo absoluto” de Hegel. Enquanto para este tudo é uma manifestação da mente, Kant evita a visão puramente subjetiva da realidade.
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