Narciso e Eco: a vida sempre imita a cultura
A porcentagem de votos dirigidos ao já moribundo atual presidente Bolsonaro assustou, mais uma vez, a população brasileira
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A porcentagem de votos dirigidos ao já moribundo atual presidente Bolsonaro assustou, mais uma vez, a população brasileira. O torpor do primeiro turno diante da constatação de quantas pessoas optaram por um projeto de governo de extermínio se reinaugurou após o segundo turno, com a vitória de Lula. A imprensa marrom se apressou em continuar sua lenga-lenga de que há uma polarização ultrajante nunca antes vista no Brasil, que os dois “lados” são extremistas, que todos são fundamentalistas in nomine patris et filii et spiritus sancti...
Como eu escrevi em outra coluna aqui no 247, é humilhante, atestado de estupidez, para quem o diz, não para nós, atribuir-se a alcunha de “extremista” ou “polarizado” a quem levanta a voz e o corpo contra a barbárie em seu estado mais bruto, que era o projeto de Bolsonaro, cada vez menos disfarçado. Eu disse, e retomo muito brevemente aqui, que um judeu que luta contra Hitler e seu projeto de campos de concentração pode ser chamado de muitos predicados, mas nunca de “extremista”, “polarizado”, “fundamentalista” ou quejando. Sinceramente, isso atenta contra a nossa inteligência mais básica.
Então, sobre os 49% da população brasileira que avalizou, aparentemente, o projeto genocida também no segundo turno. Do que se trata?
Sem querer abraçar o clichê, mas já abraçando, não podemos ver o copo como "meio vazio", e sim como "meio cheio". Fomos mais de 50% da população. A aparente fissura no tecido social brasileiro não passa disso: uma APARENTE fissura. Afirmo com convicção e até certeza por uma razão simples: a fissura ficou na camada social, não atingiu a camada antropológica, ou CULTURAL. Se tivesse atingido esse nível, estaríamos em maus lençóis, mesmo com a vitória do nosso lado.
Vencemos. E foi uma vitória concreta, muito pujante. Vocês devem imaginar o que significa lutar contra alguém que simplesmente detém em seu poder a máquina estatal, o aparelho burocrático, o sistema de propaganda. Hitler chegou a encampar 99% da adesão das pessoas, o que se tornou o subtítulo de uma peça brechtiana.
A nossa luta era quase impossível. No dia da eleição, houve uma tentativa de golpe armado efetivo, a ação da PRF. Tenho comigo todos os prints dos jornais de extrema direita que, dois dias antes, das eleições, vinham "noticiando" a "necessidade" de as operações deflagradas da PRF continuarem. O Alexandre de Moraes já tinha detectado esse golpe em curso, com conhecimento dessas operações, e já havia emitido uma ordem para que cessassem antes da eleição.
Os jornais de extrema direita vinham tentando pavimentar, pelo menos dois dias antes, o golpe dado pela PRF no dia da eleição. Davam notícias como “apreensão de drogas por parte da PRF”, de “dinheiro para compra de votos para o PT” etc. Tenho os prints de todas essas “notícias” precedendo o golpe do dia da eleição. Prova cabal de que essa imprensa (Jovem Pan, Oeste, O liberal, Veja, 360 etc.) SABIA do golpe em curso (o que parece comprovar a origem do golpe, o centro de onde ele partiu) e começou a tentar sedimentar o terreno para a futura narrativa um dia antes das eleições.
Todo o cerco vinha sendo armado. Mas o golpe falhou. Deu errado. O golpe foi tentado, mas o voo da pantera (?!) foi travado no meio da tentativa de rompante. A nova “facada” falhou. O "atentado" não deu certo pela segunda vez. O raio não caiu duas vezes no mesmo lugar.
O que me parece é que ficará agora um peso ainda maior sobre Zambellis, Tarcísios, Robertos Jeffersons, Bolsonaros, PRFs, todas essas tentativas de intimidação com armas de fogo. E, obviamente, bolsonaristas, que perdem, assim, no fracasso do voo da pantera (?!) [felizmente panteras não voam] qualquer pretexto para "justificar" a sua "visão de mundo" pelo inferno bolsonarista. É pelas crianças? É pelas famílias? É pela economia? É pela "segurança"? É pelas Universidades? É pelo SUS? É pela ciência?
É o inferno pelo inferno mesmo. Simples assim. Como psicanalista, vejo com nitidez os recalcamentos que bolsonaristas explicitam ao tentarem impor ao mundo o mesmo sofrimento psíquico que eles optaram por carregar dentro de si. A amargura, o ressentimento, tudo o que está enrustido, sufocado, censurado, oprimido, que eles carregam dificultosamente, eles projetam sobre o mundo e desejam, com suas pulsões de morte, que se torne também um sofrimento psíquico em nível estatal, massivo, empoderado. Essa gente é a prova de que o Inconsciente existe e que, quando não é vasculhado adequadamente, pode se tornar o pior carrasco de uma pessoa – e de toda uma coletividade.
Mas vencemos tudo isso. Muitas outras articulações malfadadas. Vencemos os níveis materiais e imateriais da guerra tenebrosa. O visível e o invisível. O consciente e o Inconsciente. Foi uma luta épica, lírica e dramática.
Meses de um governo que detinha a chave dos cofres públicos, derramando ações populistas, sangrando o erário na campanha eleitoral mais cara da história de qualquer país do mundo.
E não podemos esquecer as preliminares dessa guerra do ódio. Havia um terreno sendo aplainado (ou escarpado) desde pelo menos 2013, com as manifestações da classe média brasileira nas ruas, a elite do atraso enfurecida por ver que os pobretões – que ousadia! – estavam tendo bom tratamento, as “indignações” gourmet da oligarquia branca classista e preconceituosa brasileira insuflada por MBLs da vida. Toda a verde-amarelia nasceu daí, não podemos esquecer. Depois, veio o golpe prioritariamente misógino de 2016, que derrubou a Dilma. Depois a prisão de Lula em 2018, cercada pela aura da “Lava jato” e seus Sérgios Moros e Deltans Dallagnols. O recado do assassinato de Marielle, também em 2018. A ascensão de Bolsonaro também em 2018. Eu estava dando aula de cultura brasileira na Universidade de Copenhague em 2018. Vocês podem imaginar? Um filme de terror completo. E eu precisava falar da nossa cultura para um público universitário que via o Brasil com aqueles óculos do trevoso 2018. Eu acho que depois disso eu sobrevivo mesmo se uma bomba nuclear cair no meu cocuruto.
Continuando o circo dos horrores, lembremos que, até 2020, Lula estava na cadeia. A mídia hegemônica propagando o antipetismo como uma sinecura. Acreditava-se que a esquerda estava morta e enterrada no Brasil. Que o trabalho empreendido e falhado pelas oligarquias escravocratas havia finalmente encontrado seu zênite. Que, como diz Chico Buarque em seu “Fado tropical”, FINALMENTE “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”
Bolsonaro e o bolsolavismo estavam com todos os poderes na mão. A elite salivando ódio e preconceito estava empoderada. E manipularam esses podres poderes como navalhas sem a menor compaixão com o povo brasileiro, aproveitando uma pandemia para fazer “a boiada passar”, como disse Salles tão diabólica e didaticamente, e exterminar a Floresta Amazônica e aproveitar para acelerar a morte de milhões de brasileiros sem vacina de covid.
Se olhássemos para todo esse contexto tenebroso, de 2013 até 2020, e tivéssemos de avaliar a nossa situação em face desse Leviatã contra nós, só concluiríamos o seguinte: é impossível derrotá-lo; trata-se de um Leviatã “imorrível, incomível e imbrochável”.
Mas eis que o Leviatã, como um mágico de Oz, era um pequenino pigmeu da Ilha de Lilipute. Eis que Jonathan Swift estava mais certo do que Thomas Hobbes, e o que Gulliver encontrou por trás das repetidas granadas de fumaça foi um nanico assaz morrível, comível – e altamente brochável.
Lula enfatizou que foi uma vitória da Democracia. Ele está certo. Eu acrescento que foi uma vitória também da CULTURA.
Estávamos depauperados de cultura. Nem Ministério da Cultura possuíamos mais. O estafermo colocado à frente da ignominiosa rebaixada “Secretaria de Cultura” recriou um ambiente de Goebbels e explicitou os perigos de um Estado que queira tomar para si os rumos e as diretrizes da “cultura” de seu povo, quando sabemos que cultura só é cultura exatamente se for a voz do povo para se proteger dos excessos do Estado impessoal e impassível. “Cultura é tudo o que luta contra a barbárie”, como, numa das boas definições, sintetizou Boaventura de Sousa Santos. Estávamos separados por um muro de concreto das condições de existência da nossa cultura. E se assim continuássemos, a guerra estaria perdida. Cultura é tudo. Só somos humanos porque temos cultura.
Esses 49% de “bolsonaristas” não representam, na sua completude, o bolsonarista-raiz. Este é o ponto. É contra a raiz que precisaremos lutar. É uma guerra cultural, como bem diz meu colega da UERJ João Cezar de Castro Rocha. Uma guerra pela eternidade, como diz o Benjamin Teitelbaum. Uma vertigem de reacionários entre Platão e Aristóteles na terra do sol, como digo eu.
O bolsolavismo é o perigo. Com a nova feição que ele tomou após a morte do Olavo de Carvalho. Todas as medidas judiciais contra o clã Bolsonaro (incluídos seus asseclas imorais) precisarão ser continuadas. É preciso desvendar TUDO o que há dentro da possível maior bomba de corrupção e outros crimes da história do Brasil e, provavelmente, do mundo. TUDO. O trabalho da Justiça é esse de agora em diante.
Mas o trabalho dos intelectuais, dos educadores, dos pensadores, é insistir na questão cultural da vertente bolsonarista que eles próprios consideram a sua parte nobre, à qual eles chamam de “ala ideológica”. O bolsolavismo. O ovo da serpente que Olavo de Carvalho e os seus seguidores plantaram. Não se pode dar um minuto de trégua a esse núcleo duro. Não se pode nem sonhar em permitir que essa semente permaneça viva, porque ela mostrou o poder destrutivo que pode chegar a ter. Por um triz, o Brasil não se tornou o epicentro da destruição mundial. Digo “mundial” porque sabemos que o extermínio da Floresta Amazônica significaria, só para falar um de seus aspectos, a supressão de 20% da água potável do Planeta Terra.
Sabem o mito grego de Narciso e Eco? É isso. O núcleo ideológico, galvanizado em Olavo de Carvalho, precisará ser combatido. Esse será o trabalho da educação daqui para a frente. Olavo de Carvalho e a ala ideológica são parte vital do trabalho da intelectualidade brasileira a partir de agora. Estancar o ovo da serpente no nascedouro, torná-lo natimorto. É uma guerra cultural concreta, efetiva.
Isso, no mito a que aludi, equivale a Narciso. Narciso vem da mesma raiz grega que deu “narcótico”. Narciso e o narcisimo entorpecem, tiram a capacidade racional de agir. Hipnotizam. Ao redor desse núcleo duro, narcísico, pseudointelectual, há as ninfas Ecos, que simplesmente ecoam o narcisismo do núcleo sem saber o que estão ecoando. Narciso e Eco unidos perfizeram os infames 49% de eleitores de Bolsonaro em 2022.
Mas o povo nas ruas na Avenida Paulista e em todo o Brasil, ao redor de Lula, foi uma prova da pujança da cultura brasileira. Lula foi cercado e protegido por um cordão sanitário à prova de Bolsonaro e bolsonaristas que, obviamente, contou com a adesão de quase uma centena de líderes mundiais, inclusive de extrema direita, como os da Hungria, Polônia, Itália, Israel. Quem, como Paulo Guedes, dizia que a esquerda era menor do que Lula se deparou com a constatação de que somos todos Lulas, Marielles e Paulos Gustavos. A esquerda – e leia-se como esquerda qualquer visão de mundo que queira incluir o outro, e não exterminá-lo – saiu dos porões do medo onde vinha se acabrunhando desde 2013 e renasceu sob o Sol da cultura. Nossa cultura é em essência de esquerda, nesse sentido de esquerda que expus há pouco.
O “conservadorismo” que tanto se atribui à população brasileira não é mais do que uma das asas desse pássaro cultural que voa no Brasil. É a asa direita, digamos assim, que precisa da asa esquerda para manter seu voo. O “conservadorismo” não é mais do que um dos lados a ser assimilado, deglutido, carnavalizado, na nossa antropofagia tropicalista. Ele não “vencerá”, porque é apenas parte, e a parte nunca vence o todo. Uma asa não poderia lutar contra o pássaro. Nem extirpar a outra asa. O pássaro é nossa cultura. E, por isso, é o que podemos definir de esquerda, inclusiva, aglutinadora de paradoxos.
Sobre o cordão sanitário ao redor de Lula, naturalmente que também foi forjado pelos apóstatas, ex-“bolsonaristas”, aqueles que abandonaram, como sempre abandonam, o barco furado, os “vira-casaca”. Falo de ninguém menos que Silas Malafaia, papagaio de pirata do “casal (CASAL???) presidencial” Michelle-Jair no velório da Rainha Elizabeth; Ciro Nogueira, presidente do PP (um dos partidos mais beneficiados com o “escândalo do mensalão do PT”, junto com o PL, o partido de Bolsonaro); Hamilton Mourão. Até o indescritível Sérgio Moro cometeu a apostasia de admitir a vitória de Lula, depois de expor as vísceras imundas da reunião ministerial de Bolsonaro em que havia provas, segundo o próprio Moro, da interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, e aparecer como papagaio de pirata ou cosplay de Padre Kelmon nos debates em que Bolsonaro patinava na neve com os pés descalços. Até Damares e Carla Zambelli admitiram a vitória de Lula.
Coitado do Bolsonaro, abandonado por seus admiráveis protetores!... Narciso sem suas ninfas Ecos... Só restou a Narciso afogar-se em sua própria imagem narcotizante refletida nas águas.
Mas o maior cordão sanitário ao redor de Lula, o cordão sanitário que realmente o blindou contra qualquer nova tentativa de golpe, como a patética tomada das estradas pelos “caminhoneiros”, foi erguido pela CULTURA.
As pessoas nas ruas demonstraram o que realmente é o Brasil, e que a nossa cultura, embora não parecesse, está mais viva do que nunca. Que não somos vacas de presépio de pastores ou de farsas que tentam inventar subculturas que claudicam entre anzóis de gospel, aboízes de sertanejo, alicantinas de família tradicional, endrôminas de Deuses acima de tudo, raposices de patriotismo...
Mostramos que nem mesmo o futebol, com alguns dos ídolos abraçando Bolsonaro e seu projeto de extermínio, é mais forte do que a Alma brasileira. Que essa tal Alma brasileira é acima de tudo paradoxal, cheia de antíteses que só sobrevivem exatamente na manutenção – e INCLUSÃO – das diferenças, das diversidades, da pluralidade, do multiculturalismo na veia. Como uma ave. Como Oxumaré descrito por João Bosco como “Cobra de ferro, Oxumaré /Homem e mulher na cama / Jeje / Tuas asas de pomba / Presas nas costas / Com mel e dendê / Aguentam por um fio”.
E aguentam mesmo. No dia 30 de outubro de 2022 provamos isso para sempre.
Quando, em 2018, Bolsonaro disse que “as minorias precisariam se curvar às maiorias”, ele não sabia, para nossa sorte, que a nossa CULTURA assimila minorias, ainda que às vezes por trilhas opressoras (haja vista a escravidão), e que, no fim das contas, quem vence é a força carnavalizante, subversora, como a estudada por Bakhtin, em que os opostos convivem e se enriquecem.
Sem contar que minorias unidas se tornam maiorias... Nossa CULTURA é ao mesmo tempo opressora e subversora. Preta e branca. Rica e pobre. Luxo e lixo. Hétero e bicha. Sagrada e profana. Missa e Carnaval. Bem-vindes à cultura brasileira.
Mais uma vez, quem venceu foi a CULTURA.
E quando a cultura vence, é o Cerco de Leningrado. Asfixia-se o mal pela raiz. Depois do Adeus acima de tudo a Bolsonaro, será a hora de recolocarmos a Cultura acima de todos.
Vencemos e venceremos. Cultura que aglutina é princípio básico de sobrevivência e adaptação darwinista: quem come de tudo não passa fome.
Vamos investir pesado sobre o núcleo de Narciso do bolsolavismo. E as Ecos não terão mais morbidez para ecoar. Os intelectuais precisam trabalhar sobre Narciso. A Justiça precisa trabalhar sobre as Ecos.
E que, assim como na arte e no mito, e sobretudo na CULTURA, Narciso se narcotize por si mesmo e se afogue em sua própria imagem imaginada e falsa.
E que, com nossas Chiquinhas Gonzagas, abram alas, que a gente quer passar!
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