Não se é presidente impunemente

Um presidente da República não pode se comportar como um anônimo numa conversa de botequim. Ele exerce uma função pública e ocupa um lugar demarcado pelo Direito. O mandatário que não compreende isso, dificilmente poderá ser útil à comunidade democrática, escreve o professor André del Negri

Presidente Jair Bolsonaro coloca máscara durante entrevista coletiva sobre coronavírus no Palácio do Planalto
Presidente Jair Bolsonaro coloca máscara durante entrevista coletiva sobre coronavírus no Palácio do Planalto (Foto: REUTERS/Adriano Machado)


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O escritor José J. Veiga em “A Hora dos Ruminantes”, livro de 1966, mostrou ao mundo o fantasioso como representação da estranheza da realidade. Em sua narração, uma cidadezinha fictícia tem a sua rotina abalada com a chegada de um misterioso grupo de forasteiros que começam a estabelecer mudanças, também e sobretudo, a gerar confusões e mal-entendidos, e, pouco a pouco, a pequena povoação fica marcada pela hostilidade de um grupo sobre o outro.

A certa altura do livro há um relato de um recatado narrador a respeito de pessoas que falam demais e deveriam falar de menos. Quanto ao aludido trecho, convém anotar: “a fala de cada um devia ser dada em metros quando ele nasce. Assim quem falasse à toa ia desperdiçando metragem, um belo dia abria a boca e só saía vento”. Passo ao presidente Bolsonaro. E aí cabe uma pergunta: o presidente fala, muito? Vamos ver. Nesses mais de 450 dias de governo foi possível observar um chefe de Estado sem nenhum preparo para lidar com a fatalidade da população ante a pandemia de coronavírus. Não bastasse isso, em meados de março, fez piada, mesmo havendo tantas vidas em jogo. Chegou a classificar a pandemia como uma “gripezinha” e suposições de “histeria” e “muita fantasia” da “grande mídia”. Foi abraçar sua freguesia fanática, provocando aglomeração em meio aos esforços dos órgãos de saúde no combate à Covid-19. Criticou o fechamento de escolas. Ao minimizar o coronavírus, disse que brasileiro mergulha em esgoto e não acontece nada (aqui). Comportando-se assim, lembra até as condições práticas da “necropolítica”, conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe, a respeito de como governos contemporâneos decidem quem vive e quem morre.E olhem que nesses mais de 14 meses de governo foi possível ver mais estultices, cenário em que a imprensa foi [é] atacada dia sim, outro também. Algumas acometidas foram feitas aos risos, sempre na frente de bajuladores, que gargalham com cada estupidez presidencial. De se rememorar uma entrevista a poucos dias do Natal de 2019, às portas do Palácio da Alvorada. Indagado por um jornalista se tinha o comprovante do empréstimo de R$ 40 mil que diz ter feito a Queiroz, o presidente vociferou: “Oh rapaz, pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai, tá certo?” (sic!). A vandalização aumentou ao responder a outra pergunta, esta sobre a investigação que alcançou um de seus filhos, Flávio, instante da “entrevista” que disparou mais insultos: “Você tem uma cara de homossexual terrível, nem por isso eu te acuso de ser homossexual. Se bem que não é crime ser homossexual” (ver a íntegra do vídeo aqui). Quando nada pior parecia possível, a barbárie reverberou ao ofender a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, com um ataque de conotação sexual (chula!), acerca do jargão jornalístico “dar o furo” (aqui). O ataque asqueroso do chefe de Estado à repórter provocou uma demanda quanto a exigência de decoro que está inscrita em lei de número 1.079, de 1950, art. 9º, notadamente o item 7 (aqui).

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É um paradoxo que o homem que ocupa o posto mais importante do país – com contas a prestar ao povo – apresente dificuldades para resolver questões de democracia, posto que há sempre um elemento de arbitrariedade latente em seus atos. Toda vez que algum jornalista, cujo trabalho é fiscalizar e fazer perguntas, toca em tema de relevância para tratar ou lhe pede explicações, o presidente responde com bananas de braço ou ataca com expressões chulas o jornalista que apenas narra o problema. Típico de Bolsonaro fazer o gênero “bocudo”, como se diz na linguagem comum. Quer dizer: não mede as palavras para atrair o respaldo dos vários nichos em que se apoia a sua popularidade

Vamos recuperar outros episódios. Ano passado, já presidente, Bolsonaro falou que poderia “contar a verdade” sobre como o pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, desapareceu no período da ditadura (aqui). Nessa formulação sádica, atacou também o pai de Michelle Bachelet, morto sob a ditadura de Pinochet. Mais: defendeu golpe no Chile e disse que Bachelet – alta comissária da ONU para direitos humanos – defende “direitos de vagabundos” (sic!) (aqui). 

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Abra-se um parêntese: a análise das marcas discursivas serve como um diagnóstico para inferir os valores básicos de um governo e seus projetos políticos. Veja-se que o objetivo deste texto é vocalizar reflexões acadêmicas, estimular a consciência crítica (desacordos teóricos e institucionais), tudo a partir de questionamentos acerca de alguns pontos da gestão pública apresentada pelos inquilinos do Palácio do Planalto.

E aí, retornamos ao início: o presidente Bolsonaro fala, muito? Tudo indica que sim. Algumas falas são incongruentes, porque, digamos, puro delírio. Exemplo disso é o episódio de que os médicos cubanos eram agentes subversivos infiltrados no país (aqui), algo que combina com a negação do aquecimento global e com a ideia da Terra plana. Noutras, ao incentivar e participar de ato de manifestantes com cartazes pedindo a volta do AI-5 e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (aqui e aqui), despreza completamente o que está previsto no inciso II do artigo 85 da Constituição. É pouco? A resposta, obviamente, é “não”. O mandatário prova a sua inadequação ao cargo.É “só força de expressão”, dirá a turma do deixa-disso, pois é “algo natural das democracias”. É? Não se trata de fato normal das democracias coisíssima nenhuma, nem sequer simples declarações polêmicas do mandatário. Bolsonaro não tem apreço pela democracia e vem testando limites. Como foi eleito, se acha no direito de alardear tolices. Para lembrar: democracias podem “morrer”, sim, nas mãos de líderes eleitos, que viram ao avesso as regras vigentes. 

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Antes de mais nada, comecemos pelo óbvio: que Bolsonaro era fraco para ser presidente nós já sabíamos desde antes da eleição. Nada disso era segredo. Mas, como o “povo” ignorou os riscos, o voto tem consequências. E agora? Bem, um solavanco como esse poderá servir de aprendizado. 

Ocorre que fora da bolha dos militantes (e similares), a repercussão é que Bolsonaro é um chefe de Estado com insuficiente formação em educação humanitária. Sim, é difícil vê-lo sair em defesa de medidas favoráveis às reservas nacionais, indígenas, igualdade de gênero, de raça. E, fiquem certos, que, para o presidente, preocupar-se politicamente com as classes desassistidas é coisa de “esquerdista”. Conduzindo-se dessa maneira, decerto o mandatário segue os ensinamentos de Carl Schmitt, que escreveu “O conceito do político”, livro de 1932, que defendia que a política só existe de maneira verdadeira quando se cria a figura de um inimigo. Assim nasce um desastre.Nota rápida: o que talvez seja mais frustrante é que, se a política é personalizada em amigo vs. inimigo, e a lei passa a ser aplicada na maranha da subjetividade, o Direito – como instância de regular nossos desacordos – corre o risco de ser canibalizado, de perder a sua autonomia, como já alertou Lenio Streck. 

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O Brasil não pode ter uma cadeira presidencial transformada em palanque para insultar pessoas, muito menos para pisotear a Constituição. Cabe a um chefe de Estado garantir estabilidade nas relações sociais e não colocar a sua pantomina pessoal no lugar da lei vigente. Se a degradação acontece, o papel da Academia é bater de volta. O ponto é exatamente esse.

A democracia relaciona-se bem com os dissensos. Até aí, bem. Ocorre que a democracia requer responsabilidade, o que pressupõe que um presidente não pode tudo. Não se é presidente impunimente. E, como resta óbvio, há que se observar toda a principiologia e estrutura normativa constitucional, assim como o decoro que a lei exige do exercício da Presidência. Se a legislação define parâmetros, violados os requisitos legais, há, sim, que se falar em punição.

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Para encerrar: um presidente da República não pode se comportar como um anônimo numa conversa de botequim. Ele exerce uma função pública e ocupa um lugar demarcado pelo Direito. O mandatário que não compreende isso, dificilmente poderá ser útil à comunidade democrática. Não há dúvida de que é necessário que se registrem todas as falas imprudentes, gesticulações contra opositores, ofensas e diálogos de ódio que ocorrem atualmente, em frente ao Palácio da Alvorada, porque contarão a história de um país para as futuras gerações de brasileiros.

André Del Negri tem pós-doutorado em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), sob a supervisão do Prof. Lenio Streck. É doutor pela PUC Minas – com Bolsa CAPES – e mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Foi professor visitante na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. Atualmente é professor efetivo na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). É autor, entre outros livros, de “Discricionariedade e autoritarismo” (2019), “Direito Constitucional e Teoria da Constituição” (5ª ed., 2019), “O avesso do Estado” (2018) e “Segredo de Estado no Brasil” (2016).

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Referências

ANDREOPOULOS, George; CLAUDE, Richard P. Educação em Direitos Humanos para o século XXI. São Paulo: Edusp, 2015.

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LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
STRECK, Lenio. Hermenêutica e jurisdição: diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. São Paulo: Difel, 1988. 

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