Não é tiro no pé. É o "brazil"

"Qualquer pessoa medianamente informada está se perguntando como essas 'elites' podem ser tão cegas a ponto de apostarem nesse enorme retrocesso social e político? Como pode o sacrifício da própria democracia ser uma 'saída' para a crise política? Como pode o retorno da nossa grotesca desigualdade histórica ser uma 'ponte para o futuro'? Como pode a associação subalterna ao capital internacional e à única superpotência do planeta ser uma afirmação dos interesses do Brasil?", diz o colunista Marcelo Zero; no entanto, ele pontua que a questão é mais complexa e diz que o golpe pró-Temer passou, ao menos até agora, porque aos governos Lula e Dilma faltou o essencial: transformar a emancipação econômica e social dos mais pobres em emancipação política

Brasília - DF, 30/06/2016. Presidente em Exercício Michel Temer durante encontro com representantes da Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil - CACB. Foto: Beto Barata/PR
Brasília - DF, 30/06/2016. Presidente em Exercício Michel Temer durante encontro com representantes da Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil - CACB. Foto: Beto Barata/PR (Foto: Marcelo Zero)


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O ótimo artigo da jornalista Eleonora de Lucena, no qual se afirma que as nossas elites estariam dando um tiro no pé ao apoiar o golpe que conduzirá o país a um grande atraso social, político e econômico, causou grande impacto.

Com efeito, qualquer pessoa medianamente informada está se perguntando como essas “elites” podem ser tão cegas a ponto de apostarem nesse enorme retrocesso social e político? Como pode o sacrifício da própria democracia ser uma “saída” para a crise política? Como pode o retorno da nossa grotesca desigualdade histórica ser uma “ponte para o futuro”? Como pode a associação subalterna ao capital internacional e à única superpotência do planeta ser uma afirmação dos interesses do Brasil?

Mas a questão não é tão simples assim.

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Em primeiro lugar, o capitalismo é um sistema “cego”, intrinsecamente desequilibrado, que gera inexoravelmente desigualdades e contradições. O mercado, essa reificação que justifica tudo, nada mais é que um bando anômico de lemingues vorazes e míopes, sempre disposto a cometer suicídio coletivo. A lógica da acumulação é cega, não tem plano, não tem nacionalidade, não tem equilíbrio, não tem estratégia de longo prazo. É por isso que o capitalismo é um sistema de crises periódicas, frequentemente profundas e destrutivas. É por isso que esse sistema gera, de forma reiterada, bolhas especulativas descontroladas.

Assim, faz parte da natureza do capitalismo atirar sistematicamente contra os próprios pés.

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Contudo, nos países mais desenvolvidos, especialmente os da Europa Ocidental, conseguiu-se estabelecer, ao menos durante algum tempo, um controle político desse sistema, que lhe conferiu algum equilíbrio, civilidade e capacidade de planejamento. Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, os países dominados pela socialdemocracia conseguiram distribuir renda, construir um Estado do Bem-Estar, afirmar seus interesses nacionais, planejar seu futuro e evitar crises profundas e duradouras. Os lemingues foram domesticados e controlados com políticas keynesianas, sindicatos robustos de trabalhadores, e um sistema político que conseguia representar, ainda que com assimetrias, os interesses da maior parte da sociedade.

Essa “Era de Ouro”, como a denomina Hobsbawn, começou a ser destruída a partir da década de 1980 com as políticas neoliberais, que quebraram a espinha dorsal dos sindicatos, reduziram os controles democráticos sobre os mercados, deram autonomia aos bancos centrais, desregulamentaram o capital financeiro em nível mundial, diminuíram as funções do Estado, aumentaram a influência do poder econômico sobre o poder político e impuseram sua hegemonia no cenário internacional.  Os resultados maiores foram o grande aumento das desigualdades e a “financeirização” e desregulamentação da acumulação do capital. Soltaram os lemingues. “Atiraram nos pés”.

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A regressão econômica, social e política foi avassaladora. Piketty e outros mostram que o capital deste século, novamente desregulamentado, voltou a ter os grotescos níveis de desigualdade de renda e patrimônio que tinha ao final do século XIX. A presente crise, a pior desde 1929, é consequência direta dessas políticas neoliberais desregulamentadoras e concentradoras.  Ironicamente, o país que mais se desenvolveu nas últimas décadas e que melhor resiste à crise é a China, que tem o que a The Economist chama apropriadamente de “capital confinado”.

Atualmente, a hegemonia econômica e ideológica dessa acumulação desregulamentada é, com nuances, praticamente mundial. O “tiro no pé” é internacional, embora doa mais nos mais fracos, como a Grécia.  No Brasil, porém, há um sério agravante. Ao contrário do que aconteceu em vários países desenvolvidos, principalmente europeus, aqui nunca tivemos de fato uma “burguesia nacional”, uma elite progressista, capaz de liderar um processo robusto e continuado de afirmação dos interesses do país no cenário mundial, incorporar as massas ao mercado de consumo, promover a cidadania social e acolher os interesses de todos os segmentos sociais na representação política.

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Nosso capitalismo nunca teve uma Era de Ouro. Nosso capitalismo sempre foi de chumbo: dependente, excludente, marginalizador, autoritário e, sobretudo, extremamente violento. Nunca produziu uma utopia, uma “revolução burguesa”. Sempre foi distópico.  Nunca gerou um Brasil com b maiúsculo e s. Ficou apenas no “brazil”.

Tivemos, é claro, espasmos de verdadeiro progresso. Getúlio, odiado pelas elites, foi quem implantou a indústria de base e criou a Petrobras. Juscelino, também muito combatido, foi quem implantou a indústria automobilística. Jango caiu porque, entre outras coisas, tentou fazer uma reforma agrária.

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Ironia das ironias, foi nos governos do Partido dos Trabalhadores que o país chegou mais perto de ter algo parecido a uma “revolução burguesa”, a um capitalismo mais inclusivo, democrático, capaz de eliminar a pobreza, distribuir renda de modo sistemático e produzir um ciclo de desenvolvimento relativamente autônomo.  Durante um breve período, parecia que o país teria um ciclo de longo prazo de verdadeiro desenvolvimento para todos os seus cidadãos, parecia que a nossa Índia migraria para nossa Bélgica, parecia que o “brazil” viraria Brasil.

Bastou, entretanto, que a crise mundial se agravasse, que o ciclo das commodities acabasse, o crescimento minguasse e as taxas de lucro se reduzissem para que o “brazil”, que havia somente tolerado (mal) o PT e o Brasil, mostrasse de novo suas velhas garras e passasse a exigir o retrocesso.

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O golpe veio para destruir tudo. Não veio apenas para acabar com a democracia política. Veio para acabar com nossa incipiente democracia social. Veio para acabar com a saúde pública, a educação pública, a previdência pública e os programas sociais. Veio para acabar com os direitos trabalhistas e previdenciários. Veio para tirar os pobres e os negros das universidades. Veio para tirar as crianças pobres da escola e devolvê-las às ruas. Veio para tirar os pobres do orçamento. Veio para acabar com a soberania e o patrimônio público. Veio para entregar tudo o for possível: pré-sal, terras, empresas públicas, reservas indígenas e tudo o que der lucro. O golpe veio para vender o Brasil e restaurar o “brazil”.

É tiro no pé? Do ponto de vista dos que apostaram na construção, no longo prazo, de um verdadeiro Brasil lógico que é. Mas não do ponto de vista e dos interesses do “brazil”.

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O capital nunca foi sábio, mas sempre foi astuto.

O capital financeiro, os rentistas, os sonegadores da FIESP associados ao capital internacional, os exportadores de soja, os grupos políticos fisiológicos etc. sabem que o golpe pode lhes dar muito lucro. Privatizações, venda do patrimônio público, taxas de juros estratosféricas, abertura indiscriminada da economia, subida do desemprego, diminuição dos rendimentos do trabalho e redução dos direitos sociais podem ser muito lucrativas. A desigualdade, ainda que irracional e insustentável no longo prazo, pode restituir as taxas de lucro ao “brazil”. Golpe pode dar dinheiro. Em 64 deu tanto que deu até para pagar a propina aos torturadores.

Nesse sentido, o golpe e seu retrocesso monumental têm a astúcia rasa dos “cunhas”, o cinismo moralista dos sonegadores da FIESP, a desfaçatez míope dos que sempre venderam o país, a subserviência obtusa dos que querem inserir-se nas “cadeias mundiais de valor” como supridores de matéria-prima e mão de obra barata. O “brazil” do golpe quer um Brasil bem baratinho para vendê-los aos seus sócios internacionais. 

A resistência ao golpe não virá nunca dessa corja imunda de saqueadores, entreguistas, exploradores, sonegadores e cínicos. A democracia não será salva pela assembleia-geral de bandidos reunida no Congresso e tampouco pelas classes médias cooptadas ideologicamente pelo discurso hipócrita e neoudenista das classes dominantes e sua mídia falseadora.

Essa associação de ratos vorazes, de lemingues celerados, de punguistas da Nação, provinciana, inculta, preconceituosa, insensível às necessidades do povo e cuja única utopia é Miami não se importa em destruir o país e sua democracia, desde que possa pilhar impunemente as suas ruínas. Eles não dão somente tiros no pé, eles dão tiro no coração do Brasil para poder vender o seu cadáver. Eles sempre viveram do escracho ao país.

A resistência só poderá vir de baixo, dos trabalhadores, dos pequenos agricultores e comerciantes, dos negros, dos índios, das mulheres, daqueles que experimentaram o gostinho de serem cidadãos depois de 500 anos de opressão, daqueles que saíram do Mapa da Fome e de todos aqueles que vão sentir na carne as consequências da falta de democracia, de direitos, de empregos, de salários, de comida, de oportunidades e de respeito.

Mas o fato é que a luta de classes não está suficientemente escancarada nas ruas. Se estivesse, o golpe não passaria. A resistência ainda é débil e fragmentada. A mídia golpista falsifica pesquisas e manipula dados para convencer que a coisa está melhorando e os investidores pararam de apostar contra o governo, como faziam freneticamente até Dilma ser afastada. Os bandidos do Congresso agora desistiram das “pautas-bomba” e decidiram contribuir para a governabilidade. Por enquanto, o “brazil” parece estar ganhando do Brasil.

Lula disse que os pobres são solução, não problema. O problema é que os pobres foram apenas solução econômica, foram apenas consumidores. Os pobres serão realmente solução, solução definitiva, quando forem incorporados de fato ao sistema de representação política e conseguirem arejar os miasmas fisiológicos e conservadores do nosso Estado privatizado. Faltou o essencial: transformar a emancipação econômica e social em emancipação política.

Se isto acontecer, o Brasil salvará o Brasil.

 

 

 

 

 

 

 

 

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