Na Praça Tiradentes, a estátua do herói; na República, nossos sonhos de igualdade!

As efemérides servem sempre para que nós, além de revisitarmos o passado, repensemos nosso presente, pondo em relevo um balanço crítico sobre a atualidade



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Por Luiz Carlos Villalta

Na quarta-feira, foi 21 de abril, Feriado Nacional em homenagem a Tiradentes, personagem histórico consagrado como herói máximo em nossa memória coletiva, concebido como o mártir da luta pela nossa emancipação política. Tiradentes faz jus à posição que lhe damos no panteão da pátria. Ele era um profundo crítico da espoliação colonial, fazendo denúncia da pobreza por ela gerada na colônia. Segundo ele, Minas Gerais, uma capitania rica, tinha sua riqueza chupada por meio do monopólio comercial metropolitano, dos impostos cobrados e das ações dos governadores e seus apaniguados. Segundo o alferes, tais homens vinham de Portugal, enriqueciam-se e roubavam a fazenda e a honra dos moradores, não lhes trazendo senão a miséria. Eram como esponjas, que chupavam as riquezas e as levavam para fora — e, ao dizer tudo isso, Tiradentes reproduzia um sermão feito, em 1640, pelo Padre Antônio Vieira, o maior letrado luso-brasileiro de todos os tempos, mesclando-o com ideias colhidas numa obra do abade Raynal e de Denis Diderot, pensadores franceses das Luzes. Usava também a Coleção das Leis Constitutivas dos Estados Unidos da América. Contra tudo isso, também meio que plagiando Vieira, Tiradentes dizia que era “preciso Restaurar essa terra”; e, diferentemente do grande padre, acrescentava que isso era preciso: “porque fazem de nós negros”, isto é, escravos.

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As efemérides servem sempre para que nós, além de revisitarmos o passado, repensemos nosso presente, pondo em relevo um balanço crítico sobre a atualidade. Com o 21 de Abril, data do martírio de Tiradentes e do fim da trama da Inconfidência Mineira, isso também sucede. 

Quanto ao passado, cabe esclarecer que Tiradentes e os Inconfidentes conspiraram por vários motivos. Alguns deles eram de natureza particular, tendo, neste caso, algo em comum: os Inconfidentes, em boa parte, tinham sido afastados de postos de mando pela rainha D. Maria I, postos que lhes possibilitavam ganhos legais e ilegais. Ainda que a noção de corrupção não fosse a mesma que a existente em nossos dias, pode-se dizer que, além de estarem envolvidos no contrabando de ouro e diamantes, os Inconfidentes participavam de esquemas de uso privado da coisa pública, esquemas, em maior ou menor grau, de corrupção.

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Movidos pelo anseio de manter seus ganhos e propriedades, almejando garantir a própria conservação da sociedade, ambicionando impedir que a riqueza aqui produzida fosse levada para fora e inspirados na Restauração portuguesa de 1640 (a reconquista da Independência por Portugal, depois de sessenta anos de domínio espanhol) e na Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, os Inconfidentes planejavam a conquista da Independência. Não se tratava, advirta-se, de Independência do Brasil, mas de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Com a Independência, iria ser instituída uma República (alguns Inconfidentes, porém, sonhavam com a monarquia). A Revolução Americana ensinara-lhes que o arrocho tributário desencadeava rebeliões — e eles esperavam que o governador de Minas decretasse a famosa derrama para a iniciar. A derrama era-lhes essencial para que conseguissem obter o apoio dos povos. Como assim? A derrama era decretada quando os quintos do ouro, imposto cobrado dos mineradores, não atingissem o montante de 100 arrobas anuais. Nessa situação, o que faltava para completar 100 arrobas deveria ser pago por toda a população, não só pelos mineradores. Esse pagamento era feito com base no número de escravos de cada súdito. Os Inconfidentes esperavam a decretação da derrama para incitar os povos à rebelião e, com isso, instaurar uma nova ordem política. O governador de Minas, porém, suspendeu a derrama e, com isso atrapalhou os planos dos Inconfidentes.

Como todos sabem, a Inconfidência foi delatada por Joaquim Silvério dos Reis, poderoso e endividado contratador de impostos (pessoa que conseguia da coroa, mediante pagamento, o direito de cobrar certos impostos). Ele fez isso para obter o perdão de suas dívidas, no que teve sucesso. Em 1789, depois da delação, antes da Revolução Francesa, os Inconfidentes foram presos. Passaram anos no cárcere, até que, no dia 18 de abril de 1792, a sentença, que fazia tempos tinha chegado pronta de Lisboa, foi lida pelos juízes, foi lida. E em seguida, leu-se a comutação das penas (exceto a de Tiradentes), que tinha chegado à mesma época que a sentença. Tiradentes foi supliciado no Rio de Janeiro no dia 21 de abril, numa encenação teatral que tinha por objetivo não só puni-lo com a morte, mas também macular sua honra, tornando-o e a seus descendentes infames. Em todo o processo, Tiradentes portou-se de modo honrado, não traindo seus colegas e assumindo uma culpa que não era só dele (e, saliente-se, ele jamais foi o líder da Conspiração).

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Execrado pela coroa no período colonial e, até mesmo, por parte da população, a figura de Tiradentes, desde a Revolução Constitucional do Porto, de 24 de agosto de 1820, teve sua imagem progressivamente alterada. Ele veio a tornar-se um herói, o que se deu antes mesmo da Proclamação da República, em 1889. 

Desse processo de conquista da memória coletiva por parte de Tiradentes, pode-se citar algo sucedido em pleno Segundo Reinado. Em 19 de dezembro de 1869, o jornal Jequitinhonha, da cidade do Serro, Minas Gerais, publicava a segunda parte de um texto intitulado “Páginas da história do Brasil. Escritas no ano de 2000”. No texto, descrevia uma viagem imaginária do Imperador D. Pedro II ao futuro, mais precisamente ao ano 2000, graças à intermediação de um médium. Quanto espanto teve Sua Majestade, como se vê no diálogo abaixo, ao se deparar com um Brasil Republicano e Tiradentes alçado à categoria de herói maior!

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Comecemos pelo trecho do texto referente à República:

“— Digne-se Vossa Majestade desculpar as descortesias e incivilidades deste século. Hoje, no Brasil, não se conhecem as genuflexões, os beija-mãos, os tratamentos, as velhas usanças dos tempos da passada monarquia; não há mais senhorias, excelências, altezas, ou majestades: todos tratam-se por tu. A república nivelou as classes, aboliu a aristocracia, os privilégios, as isenções, a nobreza, a fidalguia, barões, condes, viscondes, marqueses, duques, todos os títulos e honras de outros tempos são antigualhas, palavras que não mais se conhecem. Liberdade, igualdade e fraternidade, é a base da constituição moderna. 

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— Barbarizaram-se os brasileiros! Interrompeu D. Pedro 

— O que distingue um cidadão, continuou o médium, o que o eleva acima de seus iguais, são as qualidades das pessoas, a virtude, a ilustração, o patriotismo, a dedicação, a filantropia, os serviços prestados ao país ou à humanidade. A opinião publica o vai procurar na sua obscuridade e exalta, e faz conhecido, respeitado de seus concidadãos; mas não se lhe muda o nome para barão, conde ou marquês. O governo não pode conferir honras ou condecorações. 

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— Que selvagens!... [...]”

A República brasileira, tal como sonhada nesse diálogo imaginário, rimava, de um lado, com a igualdade e, de outro, com o mérito das pessoas. E essa ideia de mérito, ressalte-se, não é sinônimo de meritocracia como nós a entendemos hoje, no século XXI.  Ela não se reduz à dimensão diminuta de capacidades individuais manifestas. Ela envolvia amor à pátria, serviços prestados ao país e à humanidade e, além disso, uma ideia de filantropia, que pode significar amor ao próximo.

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O diálogo entre o imperador D. Pedro II e o médium, em pleno ano 2000, continua, trazendo-se menção a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Nesse mundo da imaginação, no Rio de Janeiro, numa Praça chamada “da Regeneração” (ao que tudo indica, a atual Praça Tiradentes, onde, desde 1862, há uma estátua do imperador D. Pedro I), o médium diz à Sua Majestade:

“—  Aquela é a Praça da Regeneração, e a estátua que Vossa Majestade avista é a de Tiradentes.

— De Tiradentes!...exclamou o imperador, com indignação. Do inconfidente de Minas! Do rebelde que foi enforcado, esquartejado, por tentar fortalecer a república no Brasil!...

—  Foi por essa mesma razão, Senhor, que os brasileiros erigiram-lhe aquela estátua. Entenderam ser chegada a ocasião da posteridade reparar as injustiças do passado, levantando um padrão de glória ao primeiro mártir da liberdade...

—  Deviam restaurar-lhe o padrão da infâmia, disse o imperador. 

—  Ainda não é tudo, Senhor. A aversão dos brasileiros pelas instituições monárquicas e por tudo o que lhes pudesse fazer lembrar os tempos da monarquia chegou ao extremo de mandar o governo federal demolir no Rio de Janeiro a estátua equestre de Pedro I.

—  Demoliram a estátua equestre de meu divino pai!...bradou o imperador

—  E transportaram para aqui o bronze e com ele levantaram aquela estátua ao Tiradentes.”

Saindo desse mundo onírico de 1869, aterrando em 2021, podemos perceber que, é verdade, a República, um dos projetos de Tiradentes, encontra-se instalada. O alferes, ademais, conquistou um lugar especial em nossa memória coletiva, nela ocupando o lugar de maior herói. Todavia, na Praça que tem seu nome, no Rio de Janeiro, a estátua continua a ser a de D. Pedro I. Mais significativo do que isso, a República está longe de ser aquela dos seus sonhos. Também não é a dos nossos sonhos da atualidade, nem a dos sonhos do articulista do jornal Jequitinhonha, em 1869. Nascida de um golpe militar, dado em 15 de novembro de 1889, tornada possível devido ao apodrecimento do regime monárquico, nossa República não rima com a igualdade imaginada em 1869. A igualdade, prevista em lei, na prática, é letra morta para muitos dos brasileiros, especialmente as populações negras e indígenas e os pobres dos grandes centros urbanos. Isso é evidente no funcionamento do aparato repressivo e, até mesmo, da justiça e do ministério público. Até mesmo pessoas de notoriedade, como o ex-presidente Lula, por exemplo, são vítimas de um aparato que desrespeita os direitos constitucionais e que produz um estrago monumental em sua imagem, tornando-a infame. Percebe-se que há, entre muitos de nós, ademais, uma presunção “aristocrática”, de “superioridade”.

Nestes tempos de governo Bolsonaro, a República é sinônimo da mais absurda mediocridade, dos negacionismos mais nefastos, de obscurantismo e de morte: nela, não há lugar nem para a meritocracia nem para aquela ideia de mérito que conjuga dotes individuais manifestos e qualidades políticas e sociais que denotam amor à pátria e sentimento de solidariedade social. Desde o governo Temer, a República permite a pilhagem das riquezas nacionais, na contramão do imaginado por Tiradentes: nossa riqueza é chupada para fora! A República, sob o governo atual, além disso, promove, a destruição dos direitos dos trabalhadores. Atua no sentido contrário do concebido pelos Inconfidentes como a máxima da ordem política: a garantia da conservação social. Em outros termos, pratica um verdadeiro genocídio.

Por tudo isso é preciso que nós restituamos os sonhos de Tiradentes e, também, lutemos para alargá-los, de tal sorte a incorporar, de fato, o princípio da igualdade em nossa realidade. E, para completar, na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, que tal concretizarmos a profecia do jornal Jequitinhonha, de 1866? Substituamos, ali, a estátua de D. Pedro I, pela do nosso herói maior: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes!

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