Na catedral da Sé, para defender nossa dignidade

"Na missa na Praça da Sé, ao meio dia de hoje, haverá a mobilização de moradores da Vila Madalena e de Pinheiros, inconformados com a morte do carroceiro Ricardo Nascimento,  executado pela PM num fim de tarde, numa rua movimentada e conhecida", escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247. "Além de respeitar a dor por um personagem respeitado, a tragédia coloca perguntas sérias, que devem ser respondidas, para que a novas tragédias não se repitam"

"Na missa na Praça da Sé, ao meio dia de hoje, haverá a mobilização de moradores da Vila Madalena e de Pinheiros, inconformados com a morte do carroceiro Ricardo Nascimento,  executado pela PM num fim de tarde, numa rua movimentada e conhecida", escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247. "Além de respeitar a dor por um personagem respeitado, a tragédia coloca perguntas sérias, que devem ser respondidas, para que a novas tragédias não se repitam"
"Na missa na Praça da Sé, ao meio dia de hoje, haverá a mobilização de moradores da Vila Madalena e de Pinheiros, inconformados com a morte do carroceiro Ricardo Nascimento,  executado pela PM num fim de tarde, numa rua movimentada e conhecida", escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247. "Além de respeitar a dor por um personagem respeitado, a tragédia coloca perguntas sérias, que devem ser respondidas, para que a novas tragédias não se repitam" (Foto: Paulo Moreira Leite)


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  Ao meio dia de hoje, quando mulheres e homens vindos de todas as partes de São Paulo se encontrarem na Catedral da Sé, para uma missa em homenagem ao carroceiro Ricardo Nascimento, executado com dois tiros por um soldado da Polícia Militar, a maior cidade brasileira estará diante de uma lição política elementar sobre as sociedades modernas.

 Convocada por panfletos e pequenos cartazes distribuídas distribuídos de mão e em mão pela Zona Oeste da cidade, parte do esforço de cidadãos anônimos e militantes de direitos humanos que são o sal da terra de toda sociedade democrática, a cerimonia irá denunciar uma tragédia especialmente chocante, mesmo numa época na qual  atos de barbárie cometidos por instituições que deveriam zelar pelos direitos e pela dignidade humana se tornaram uma banalidade da vida cotidiana.

 Ricardo foi morto, aos 39 anos,  no fim da tarde de quarta-feira passada na rua Mourato Coelho, uma das mais movimentadas daquela região de São Paulo onde a Vila Madalena dos restaurantes, barzinhos e casas noturnas se encontra com Pinheiros, região tradicional de escolas, residências e comércio de classe média. Era um horário de movimento no local, em particular no dia 12 do mês, quando uma população com algum dinheiro no bolso fazia as  compras  do dia num Pão de Açúcar que funciona há décadas no lugar. Ali também  se encontra um disk-pizza, uma ótica, um restaurante de cozinha baiana, uma padaria e o Jaber, tradicional endereço de comida árabe.

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 Aos 48 anos, diplomada em Direito,  dona de um pequeno comércio de tecidos que há muitos anos lhe permite pagar as contas do fim do mês,  Simone Silva Rocha caminhava pela Mourato como faz várias vezes por semana, há vários anos.  Passou por um poste onde há meses se avista um cartaz com uma frase poética ( "Navegue na direção dos seus medos") e terminou a conversa pelo celular com uma cliente.

 Simone encontrava-se em frente ao disk-pizza quando avistou Ricardo Nascimento --  carroceiro que muitos moradores do bairro conheciam pelo primeiro  nome, respeitavam pelo comportamento reservado e  pela postura digna de quem nunca pedia esmolas e fazia questão de sustentar-se pelo próprio trabalho de coleta nas ruas, inclusive para comprar a próprias refeições  -- no centro de uma cena que iria impedir seu sono pelas três noites seguintes. Ela contou ao 247, num depoimento que, um dia depois, iria repetir num depoimento a Delegacia de Homicídio:

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 -- Eu vi um PM empunhando um revolver, com as duas mãos, em direção ao peito do Ricardo. Os dois braços estavam esticados e ele gritava: "Você está me desacatando. Eu vou atirar. Eu vou atirar."

  -- Você sabia por que isso estava acontecendo?, perguntei, numa entrevista na segunda-feira a tarde. 

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   -- Não. O PM também gritava: "Abaixa esse pau. Abaixa esse pau.

    -- Que pau era esse? Um porrete?

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    -- Não. Era um pedaço de madeira, semelhante a um friso de porta, que não poderia machucar ninguém.

     -- O que aconteceu depois?

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     -- Resolvi atravessar a rua. Tive aquela sensação: "vai sobrar para mim", disse Simone, que teve a gentileza de refazer passo a passo o percurso daqueles momentos, para me mostrar o que havia visto naqueles momentos. 

       Do outro lado da rua, a comerciante encontrou uma parede humana em frente ao supermercado. O celular tocou de novo: era a mesma cliente, que precisava continuar a conversa. No meio de toda aquela tensão, quando  falava de encomendas,  Simone ouviu duas explosões.

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        -- Eu nunca tinha ouvido um tiro. Era um barulho forte. Mas rojão de faz junina faz mais barulho. Não vi justamente a hora do tiro, pois estava conversando. Quando olhei para o outro lado da rua, vi o  Ricardo caído no chão. Perguntei ao homem do estacionamento, que estava do lado e via tudo comigo.  "Ele machucou o Ricardo?" "Não. Ele matou." (Também conversei com o funcionário do estacionamento. Ele me disse que, pelo cálculo, foi um tiro de .40, uma pistola mais devastadora que o revolver calibre 38, pois arromba a região do corpo que é atingida).   

        -- O que aconteceu depois?, pergunto a Simone.

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        -- Foi tudo muito rápido. Em menos de quinze minutos, ou vinte, no máximo, a rua estava tomada por soldados da PM. Eles cercaram tudo com aquelas fitas pretas e amarelas. Ouvi barulhos de sirene e hélices de helicóptero sobrevoando a área. Quem estava na calçada gritava: "Assassinos, Assassinos". Logo desceram as portas do supermercado e nós ficamos fechados do lado de dentro. Eu vi quando colocaram o corpinho do Ricardo -- lembrei como ele era magro, franzino -- dentro de uma perua,  por uma porta que abria por trás. A maioria das pessoas estava indignada e não se conformava com o que tinha visto.

       -- Todo mundo estava assim?

       -- Todo mundo. Mas lembro de um senhor que teve coragem de dizer: "Mataram? Pois fizeram muito bem." Ninguém se conformou quando ouviu isso. Tinha gente que queria  ir para cima dele e teve de ser acalmado. Eu fiquei com pena de uma senhora que parecia desorientada dentro do supermercado. Fui tentar acalmar. Mas ela começou a falar a mesma coisa e eu saí de perto. Não dá para aceitar isso.

       -- Por que?

       -- As pessoas estão loucas. Viram uma pessoa ser morta e não vamos fazer nada?

       -- Como você viveu os dias seguintes?

       -- Sou de Santa Catarina, vivi muitos anos perto do mar, aprendi a velejar. Aquilo me deixou mareada, me virou o estômago. Eu passava mal, como se estivesse o tempo inteiro enjoada. Até que, no sábado passado,  me chamaram para uma reunião, de pessoas  que estavam inconformadas. Achei que precisava fazer alguma coisa. Se nós não fomos capazes de reagir antes -- não conseguimos  impedir a morte do Ricardo -- pelo menos precisávamos fazer alguma coisa. Não tem nada a ver com política. Não gosto quando misturam as coisas. Tem a ver com Justiça. Ricardo era um ser humano, como todos nós. Não merecia isso.
 

 2

       Minha vida de jornalista  ensinou que a reação cidadã dos moradores de Pinheiros e Vila Madalena é um gesto necessário em função de uma tragédia vergonhosa e também diante do momento que o país atravessa.

       Naquela longa fase da história da humanidade anterior ao nascimento dos direitos humanos como um valor universal, o suplício de pessoas condenadas ocorria em praça pública. Cronistas do século XVIII contam que a multidão aplaudia tortura numa espécie de transe, e até pedia mais. Profissionais da morte e do sofrimento, os carrascos chegavam a ser personagens populares nas grandes cidades.

     A missa de hoje, na Sé, e toda a mobilização em torno da morte de um carroceiro -- cidadão que habita um dos últimos degraus na escala de uma sociedade desigual e excludente, muitas vezes confundido os produtos recicláveis que carrega e negocia -- merece apoio e aplauso. Diante da execução anunciada aos gritos em praça pública,  representa um passo em nossa escala evolutiva.   

     Tentando explicar essa imensa evolução no direito e na sensibilidade humana, a historiadora Lynn Hunt lembra, num livrinho particularmente instrutivo, (“A Invenção dos Direitos Humanos”) que a noção de que todos são iguais e assim devem ser tratados, é uma noção recente da civilização, embora seja uma ideia tão repetida que parece ter vigorado já na idade das cavernas.

       Para Hunt, homens e mulheres precisaram superar vários degraus de cultura primitiva, baseada na desigualdade e na tirania mais bruta do Estado sobre os indivíduos, para compreender que era necessário desenvolver uma relação de empatia de cada pessoa com toda a humanidade, única forma de garantir que não se faça com o próximo  daquilo que não se deseja para si mesmo.

      Hunt localiza o nascimento dessa ideia nos debates que deram origem à Constituição dos Estados Unidos, de 1776, confirmada pela Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, de 1789. Foram decisões que representaram um imenso progresso, lembra, ainda que tenham ocorridos recuos graves, mais tarde, pois além da luta política, também havia uma disputa cultural. Hunt está convencida de que, criando epopeias românticas que envolviam heróis e heroínas de terras distantes, em sociedades da Ásia ou da África, que cultivavam costumes vistos como exóticos em Londres ou Paris, os novelistas daquele tempo, que escreviam folhetins publicados em sequência pelos jornais, cumpriram um papel positivo no esforço para criar uma cultura de uma sociedade onde a igualdade é um valor fundamental. A ideia aqui é que a democracia e os direitos humanos começam pela aceitação do outro, do diferente.   

    No Brasil, essa educação humana atravessou uma época terrível -- da tortura institucionalizada pelo regime militar de 64 -- que se tenta passar a limpo a partir da Constituição de 1998. Esta é a luta civilizatória do país de hoje, como se aprende no esforço para denunciar a  tragédia de Ricardo Nascimento, um momento decisivo.

 

3

 Ana Cristina G. F. Domineghetti, formada em administração hospitalar e  Direito, é filha e neta de Pinheiros, onde passou a vida inteira -- só mudou algumas vezes de endereço, sem sair da região, em função de mudanças na própria vida.

  Ana Cristina é  uma pessoa convencida de que "não existem seres humanos invisíveis".

 Ela costumava encontrar Ricardo todos os dias nos deslocamentos  frequentes pelas ruas do bairro. O  carroceiro dormia e se deslocava por ruas que se localizam no meio do caminho entre a casa dela e a residência dos pais, que Ana Cristina percorre todos os dias sem falta. Ela fala da  morte do carroceiro com dor visível ( "a gente perdeu um membro da família"). Gosta de lembrar que lhe dava "bom dia" e  Ricardo sempre dava uma resposta curta: "falava 'de boa'. Era muito bonitinho," diz, rindo. Ela descreve a personalidade reservada de Ricardo e fala do orgulho que ele exibia. "Sempre que eu queria lhe dar alguma coisa, ele dizia para eu dar para 'alguém que precisa.'" Conta que o carroceiro tinha uma vida organizada: "às cinco da manhã estava de pé, tinha horário e só parava para almoçar, quando tirava uma sonequinha".  Ana Cristina chamava o carrinho onde Ricardo costuma dormir, em cima de caixas e caixas de papelão, como "belichinho" e conta que ele tinha um pequeno fogão, onde cozinhava macarrão instantâneo, "bem temperado".

 Ela fica visivelmente feliz quando lembra que, entre os pertences do carroceiro, foram encontrados R$ 1600, "tudo conseguido com seu trabalho e que foram entregues a sua mãe". Ana Cristina gosta de lembrar que o carroceiro tinha um "papel importante na vida do bairro, pois fazia um trabalho importante para a vida da gente, onde ninguém pode viver sem coleta". Conta que certa vez teve "muito trabalho" para convencer o carroceiro a aceitar 20 reais que sua mãe queria lhe entregar para que levasse um fogão fora de uso para o ferro velho. "Ele dizia que não precisava, pois já iria receber alguma coisa do comerciante".

     Ana Cristina diz que todo mundo que for fazer perguntas sobre Ricardo nas lojas da região -- Pão de Açucar, Dia, Casa do Pastel -- irá ter boas referências. (Fiz minha parte na Pizza Prime, ponto de referência da tragédia. As notícias dos primeiros dias, sob medida para criminalizar o carroceiro, diziam que ele havia ido local para pedir um pedaço de pizza sem pagar e que, incomodado por sua presença, a gerencia havia chamado a PM para livrar-se de um personagem importuno. "Ninguém deu telefonema algum," me disse a responsável pelo serviço no início da noite de ontem. "Nós conhecíamos o Ricardo e ele nunca nos pediu nada. Na verdade, ele nos ajudava, carregando papelão e outras embalagens que ficavam na calçada." Após a tragédia, um dos carrinhos de Ricardo, aquele que Ana Cristina chama de "belichinho", ficou estacionado ao lado da Pizza Prime. O carroceiro gostava de enfeitá-lo com buquês de flores que encontrava pelo caminho. Após a morte do proprietário, o "belichinho" ficou particularmente enfeitado. Também se pode ler um cartaz com mensagens de protesto contra a PM. Pergunto a funcionária do Pizza Prime se ela sabe a razão de tantas flores. "É uma homenagem. Ele merece").    

    Na entrevista ao  247, ontem, Ana Cristina lamentava que, embora tenha conversado tantas vezes com Ricardo, a quem conhecia há mais de três anos,  nunca tivesse lhe ocorrido fazer aquelas perguntas que todos têm vontade de  colocar para uma pessoa que mora na rua. Nunca questionou, por exemplo, por que vivia ali.

   "Você nunca imagina que vai perder uma pessoa", explica, com sinceridade. 

   Habituada a não desviar o olhar de outros seres humanos, por mais diferentes que possam parecer, Ana Cristina recorda a morte de outro carroceiro, que costumava dormir embaixo da marquise de um banco, na Pedroso de Moraes. Mas foi outro caso, pois não foi assassinato."Ele era mais velho e teve um enfarte. Morreu sem ser atenedido." A morte de Ricardo lhe deixou "um vazio". Ela diz que aprendeu a ter tanto amor a vida, em todas as suas formas, que "só mato uma barata se ela entrar na minha cozinha. Aí, não posso fazer nada. Mas se ela estiver na rua, no quintal, vou deixar em paz. Matar para que?"

    Ela conversou com o 247 quando voltava da Galeria do Rock, no centro da cidade, onde fora buscar um lote de camisetas com imagens de Ricardo que devem ser usadas na missa em homenagem.  Diz que a única diferença importante entre sua residência e o "belichinho" de Ricardo é que a casa dele "não tem portão." E se você ficar muito intrigado com essa observação, Ana Cristina é capaz de dizer que gosta mesmo da definição de um menino que, depois de fitar longamente para a moradia de um carroceiro, concluiu que era a maior residência de todas, porque não tinha portas nem janelas. "Ele me disse: 'A casa dele é o mundo. É a rua'".

 

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A tragédia de Ricardo Nascimento guarda lições vida, mas é preciso responder perguntas sobre sua morte.

As lojas da Mourato  que ficam nas proximidades da tragédia tem câmaras de vídeo e não se sabe o que elas guardaram nem se as imagens foram preservadas. Um morador que filmou a cena da execução através da câmara do celular afirmou  que ela foi arrancada de sua por um soldado da PML mão para que o vídeo fosse apagado -- a violência teria sido tamanha que foi preciso fazer um curativo com 14 pontos.   

O próprio Ricardo  mostrava um comportamento alterado nos momentos anteriores a execução. Chegou-se a dizer que estivesse embriagado, hipótese que os conhecidos refutam. "Eu nunca o vi embriagado. Nunca. Se bebia, era para espantar o frio," diz Ana Cristina. Outra hipótese é que tivesse recebendo ameaça policial, como se veiculou nos últimos dias.

  Desde a ditadura militar que a Catedral da Sé tornou-se um endereço para aqueles buscam a proteção contra a covardia de agentes do Estado, responsáveis por crimes que chocaram o país, emocionaram tantas pessoas mas nunca foram inteiramente esclarecidos. Foi assim em 1973, quando estudantes da Universidade de São Paulo foram protestar contra a morte de Alexandre Vanucchi Leme, sequestrado e morto pelo aparato de segurança. A cena se repetiu em 1975, na morte do jornalista Vladimir Herzog. A cena se repete em 2017, quando a morte de um carroceiro provoca dor e comoção no país. Não se deve esquecer, porém, que se trata de um crime inaceitável, que deve ser apurado e seus responsáveis punidos -- para que não voltem a se repetir.       

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