Mulato, me tornei escritor e comunista
De um ponto de vista formal, me filiei ao Partido Comunista do Brasil em fevereiro de 2018. Mas de um ponto de vista informal, eu estou ao lado desses bravos há pelo menos 48 anos, desde o tempo de Ação Popular, antes da integração de AP
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O título acima é uma adaptação do que Lima Barreto escreveu um dia: "Nasci sem dinheiro, mulato e livre". E se assim o adapto, acredito que não sou arbitrário ao transformar a frase de um dos heróis da literatura. Primeiro, porque Lima Barreto, nas lutas da escrita e da vida, foi comunista até mesmo antes da existência do Partido no Brasil. Sem muita pesquisa, podemos ver o que publicou em 1º. de março de 1919 no artigo Sobre o Maximalismo, como chamavam o Bolchevismo na época:
"Se a convulsão não trouxer ao mundo o reino da felicidade, pelo menos substituirá a camada podre, ruim, má, exploradora, sem ideal, sem gosto, perversa, sem inteligência, inimiga do saber, desleal, vesga que nos governa, por uma outra, até agora recalcada, que virá com outras ideias, com outra visão da vida, com outros sentimentos para com os homens, expulsando os agiotas que estão aí, com os seus bancos, casas de penhores e umas trapalhadas financeiras, para engazopar o povo. A vida do homem e o progresso da humanidade pedem mais do que dinheiro, caixas-fortes atestadas de moedas, casarões imbecis com lambrequins vulgares. Pedem sonho, pedem arte, pedem cultura, pedem caridade, piedade, pedem amor, pedem felicidade; e esta, a não ser que se seja um burguês burro e intoxicado de ganância, ninguém pode ter, quando se vê cercado da fome, da dor, da moléstia, da miséria de quase toda uma grande população".
Em segundo lugar, a adaptação da frase de Lima Barreto como título destas linhas bem fala do natural, o ter nascido mulato, e do que foi adquirido pela maior luta na consciência, o ter me tornado escritor e comunista. Não sei bem qual a ordem, o que veio primeiro. E aqui se cruzam duas forças essenciais, os temas sobre os quais escrevo e os passos fora da escrita, enquanto ando por aí com cara de idiota, que não tenho outra. Me conforta o provérbio "quem vê cara não vê coração".
De um ponto de vista formal, me filiei ao Partido Comunista do Brasil em fevereiro de 2018. Mas de um ponto de vista informal, eu estou ao lado desses bravos há pelo menos 48 anos, desde o tempo de Ação Popular, antes da integração de AP. De lá até hoje, acompanhei, acompanho os anos passarem sobre os cabelos desses camaradas e deles posso dizer: eles não envelhecem, eles são uns eternos rebelados até contra os limites da biologia. E não pensem por favor que isso é delírio romântico.
Para ser mais claro e preciso, no romance "A mais longa duração da juventude", narrei o que vi e observo na militância:
"Vejo as águias encanecerem, acompanho os fios brancos de suas cabeças se tornarem frágeis, quebradiços, e me falo e percebo que algumas não piscaram no alto. No píncaro do tempo, não decaíram, como se fossem uma revolta contra a biologia, contra a organização da vida que se desorganiza e se desintegra quando chega ao fim. Parodiando Goethe no poema Um e Tudo, eles foram atravessados pela alma do mundo, e com ela lutaram sem descanso, como se vivos pudessem ter a eternidade. Tomaram outras formas, é certo, mas mantiveram a permanência do ser da juventude. Como? Não sou um filósofo, e assim não posso escrever 'uma análise concreta de uma história concreta', para usar frase dos anos de 1970, que parecem vir de longe. São anos de outro século, de outras vidas, de outros costumes, de outro país".
De um ponto de vista estrito, que vem da infância de subúrbio do Recife, lembro de um comunista anônimo, perto do Mercado Público de Água Fria, na Rua Japaranduba, onde havia um comunista organizado, dirigente de célula, um homem que por si só, para quem não o conheceu, parece hoje mais um personagem de fábula. Um homem de história fantástica: seu Luiz, o barbeiro. O senhor Luiz Beltrão falava inglês, estudava filosofia, tanto na universidade quanto fora dela, em 1960. Depois se fez professor de escola pública. Um barbeiro professor de filosofia não seria mais próprio de uma história de Andersen? Na barbearia de seu Luiz os moleques, os maloqueiros como eram tidos os jovens sem eira nem beira, sabemos hoje, os desocupados podiam entrar e ler à vontade os jornais e as reportagens da revista O Cruzeiro.
Depois, por reflexão e memória, pude ver os heróis anônimos do Recife, heróis da história, mas sem páginas nos livros didáticos, como Zelita, a moça solteira, Zelita, solteirona, que era discriminada por sofrer de epilepsia. Diziam que se os meninos tocassem na sua baba passariam também a sofrer descargas nervosas. No entanto, Zelita se erguia e ensinava aos meninos contas de dividir, imensas, com divisores de quatro ou cinco algarismos, sorrindo, que era sua maneira de estar com os meninos. Zelita erguida a nos ensinar conta de dividir, pensávamos. Engano. Zelita nos ensinava coração. No chão da terra sem calçada, em aulas magníficas sem pagamento e sem cátedra. Lembro muito de Dona Nicinha, a gorda, mãe de Spinelli, que era uma cozinheira magistral, que teve os seus dons elogiados por Gilberto Freyre. Dona Nicinha abria as portas da sua casa de pobre, de paredes de taipa, todos os domingos para receber altos convidados, a saber, as pessoas amigas da sua altura e condição social. Quando não, de pior status. Todos ali compareciam em estado de prelibação, à espera da Sétima Maravilha do Recife: o rocambole salgado, macio, a joia da gastronomia máxima de todos os domingos.
Pessoas assim, de tal altura, me ensinaram nos anos maduros em que me tornei escritor: os comunistas fazem a pátria onde os ninguéns se tornam alguém.
Mais adiante, pude narrar no romance "A mais longa duração da juventude", quando contei o dia da morte de um militante amigo e companheiro de geração:
"Na hora, o que me assalta em mistura de alegria, dor e angústia em mais um movimento absurdo, inexplicável, de dor e alegria em um só sentimento, é a urgência da bandeira do Partido Comunista do Brasil. Para os ateus, ou como falaria Luiz do Carmo, 'para os materialistas históricos, dialéticos, sob as luzes de Marx, Engels e Lênin', onde falta Deus há uma continuação da vida na luta histórica da militância. Quem é de fora não entende. É mais que a perpetuação de um só personagem, como o Fantasma do gibi, das histórias em quadrinhos. Na historinha, as gerações se sucedem e vestem o mesmo uniforme, de tal modo que serão sempre o mesmo Fantasma. Mas não como os militantes comunistas. Eles são mortos, falecem, caem, mas os que ficam vão para o lugar do que se foi ou partiu. E o que se foi continua em nova vida pelo fio histórico da atividade partidária".
Então pude ver nos comunistas maduros, idosos, este fenômeno raro:
"Penso na mais longa duração da juventude, resistente nos cabelos brancos, no coração a pulsar regenerado, no peito renascido para o amor. Como um broto que rebenta na árvore envelhecida, penso".
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