Mudança de governo, Lava Jato e intervenção federal: alguns aspectos geopolíticos
Colunista Marcelo Zero fala sobre um estudo publicado em uma revista da Harvard, em 2005, que menciona que, apenas entre 1898 e 1994, os EUA conseguiram êxito em mudar governos da região 41 vezes; "Em geral, as intervenções dos EUA nos assuntos internos dos países da região se dão de forma indireta", diz; "Em relação à guerra judicial (lawfare) contra o ex-presidente Lula e ao próprio golpe de 2016, crescem as evidências de que houve e há ingerências norte-americanas nos acontecimentos, especialmente mediante a denominada operação Lava Jato, propiciada por uma cooperação bilateral judicial entre Brasil e EUA", afirma ainda
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Nos últimos anos, o Brasil vem passando por transformações drásticas e súbitas. A deposição da presidenta Dilma Rousseff, a profunda crise do sistema de representação propiciada, entre outros fatores, pela operação Lava Jato, a célere implantação de uma agenda economicamente conservadora e socialmente regressiva e, mais recentemente, a aberta militarização da segurança pública, que trouxe de volta as forças armadas ao cenário nacional, configuram quadro político radicalmente distinto daquele que havia predominado até 2014.
Do nosso ponto de vista, essa nova realidade política representa clara ruptura com o status quo político-institucional que havia se criado com a Constituição de 1988.
No Brasil pós-ditadura, as disputas em geral envolveram forças de esquerda e centro-esquerda contra forças de centro-direita e direita que competiam pelo voto do centro político e dos indecisos. Havia uma característica marcante nessas disputas: todas as forças davam apoio explícito à consolidação da democracia no Brasil.
Configurou-se, assim, uma espécie de pacto implícito pelo qual todas as forças políticas relevantes reconheciam a democracia como valor universal e imprescindível para fazer avançar o desenvolvimento do país. Mesmo com as limitações estruturais óbvias da democracia brasileira, que alijava a maior parte da população de direitos sociais e políticos básicos, havia essa disposição praticamente consensual para aprofundá-la e consolidá-la, sentimento natural num país que havia acabado de sair de décadas de ditadura.
A chegada do PT ao poder, nas eleições de 2002, representou teste significativo para as instituições democráticas consolidadas após a Constituição de 1988. Apesar das experiências trágicas do segundo governo de Getúlio Vargas e do governo João Goulart, muitos acreditaram que a democracia brasileira havia amadurecido o suficiente para lidar com um governo, que, na prática, era bastante moderado e conciliador, dedicado à promoção da inclusão social e à erradicação da pobreza e das desigualdades, sem afetar, porém, os interesses das classes dominantes.
Por um breve momento histórico parecíamos emular, mutatis mutandis, as experiências exitosas da socialdemocracia europeia clássica. Houve maciça ascensão social, erradicação da pobreza extrema, aumento da participação dos salários no PIB, diminuição da informalidade laboral e ampliação do acesso à educação. Ao mesmo tempo, eliminou-se a vulnerabilidade externa da economia e iniciou-se um ciclo de crescimento baseado na dinamização do mercado interno. Assim, a nossa democracia aparentava ter amadurecido e ser capaz de lidar e de negociar com os conflitos distributivos inerentes às economias capitalistas.
Contudo, esse quadro mudou drasticamente quando a crise começou a afetar os interesses de nossas oligarquias e dos seus setores políticos aliados. Num átimo, a ilusão com o amadurecimento da democracia brasileira desfez-se com o impeachment sem crime de responsabilidade. Rompeu-se com a alternância democrática entre as forças políticas e com o pacto político-institucional plasmado na Constituição de 1988.
Tal ruptura permitiu que fosse implantada ampla agenda econômica e social conservadora, a qual dificilmente teria sido aprovada pelas urnas, tal como ficou demonstrado no pleito de 2014, que elegeu a agenda oposta de continuidade do processo de distribuição de renda e de combate à pobreza e à exclusão. Ressaltam-se, nessa agenda conservadora implantada à margem da soberania popular, largas medidas de privatização e desnacionalização de “tudo o que for possível” e mudanças significativas, tanto no âmbito da política externa quanto na área da política de defesa.
Paralelamente, a chamada operação Lava Jato, que teve papel central na geração do clima político propício ao golpe parlamentar de 2016, contribuiu para erodir a legitimidade do sistema de representação e instituir crescente Estado de exceção, necessário à imposição de uma agenda bastante impopular.
Tal quadro de ruptura institucional e democrática, agressões aos direitos humanos e à soberania popular e crise do sistema de representação foi agravado, recentemente, pela intervenção militar no Rio de Janeiro, que traz de volta à cena nacional as forças armadas, numa tentativa de buscar legitimidade para um governo com alta rejeição e de resolver o complexo problema da segurança pública pela via autoritária.
Essas profundas, céleres e drásticas mudanças foram ocasionadas, fundamentalmente, por fatores econômicos, sociais e políticos internos. Apesar disso, não podemos descartar, a priori, que existam não também interesses internacionais empenhados na desestabilização da democracia do Brasil e na afirmação da agenda econômica conservadora propiciada pelo golpe de 2016. Tampouco se deve descartar liminarmente a hipótese de que haja interesses geopolíticos de outras nações que influenciem operações como a da Lava Jato e a decisão de usar as forças armadas brasileiras no combate à criminalidade.
Sempre que se tenta fazer essa discussão, muitos tentam desqualificá-la, a priori, como mera “teoria da conspiração”. Isso não é adequado. Afinal, a história da América Latina e do Brasil mostra que as ingerências externas em assuntos internos foram, e ainda são, abundantes em nossa região.
Em estudo publicado na Harvard Review of Latin America[1], em 2005, menciona-se que, apenas entre 1898 e 1994, os EUA conseguiram êxito em mudar governos da região 41 vezes, o que dá uma média de uma mudança de governo a cada 28 meses. Ressalte-se que, nesse estudo publicado na Universidade de Harvard, não se analisa as possíveis intervenções recentes, como as ocorridas em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016).
Há, pois, um longo histórico de intervenções, no qual se inclui o golpe militar brasileiro de 1964, que recomenda análises mais abrangentes e aprofundadas sobre o golpe parlamentar de 2016 e, mais especificamente, sobre a Lava Jato e seu modus operandi, bem como sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro. Evidentemente, não é intenção deste artigo fazer análise abrangente dessas possíveis implicações. Queremos aqui apenas listar algumas evidências que apontam para a existência de influências externas na conformação desses fenômenos.
Ingerência Externa na Lava Jato e na consequente Perseguição Judicial (lawfare) contra o ex-presidente Lula
Em geral, as intervenções dos EUA nos assuntos internos dos países da região se dão de forma indireta. Assim, das 41 intervenções exitosas mencionadas no estudo publicado em Harvard, somente 17 foram diretas, mediante uso aberto da força.
No caso das intervenções indiretas, o mecanismo mais usual da ingerência é o da “cooperação”, em diversas áreas. Com efeito, os mecanismos de cooperação, aparentemente inocentes, se prestam, muitas vezes, a atividades de cooptação ideológica e política e de influência indevida em assuntos internos de outros países.
Em relação à guerra judicial (lawfare) contra o ex-presidente Lula e ao próprio golpe de 2016, crescem as evidências de que houve e há ingerências norte-americanas nos acontecimentos, especialmente mediante a denominada operação Lava Jato, propiciada por uma cooperação bilateral judicial entre Brasil e EUA. De fato, já há a forte suspeita, consubstanciada em fatos, de que a Operação Lava Jato foi politicamente instrumentalizada, de forma a produzir efeitos objetivamente nocivos no Brasil.
No campo econômico, tal operação contribuiu para destruir a cadeia de petróleo e gás, ensejou a venda, a preços aviltados, das reservas do pré-sal, solapou a nossa competitiva construção civil pesada e comprometeu projetos estratégicos na área da defesa, com o relativo à construção de submarinos. Conforme estudo da consultoria GO Associados, a Lava Jato teria ocasionado uma diminuição do PIB da ordem de 2,5%, em 2015, contribuindo para desempregar centenas de milhares de brasileiras e brasileiros.
No campo político, a operação Lava Jato teve papel significativo no golpe parlamentar de 2016, que depôs a presidenta Dilma Rousseff, sem a devida comprovação do cometimento de qualquer crime de responsabilidade, como exige a Constituição. Ademais, tal operação vem tendo destaque na denominada guerra judicial contra o ex-presidente Lula, a qual visa o objetivo político de impedir a sua candidatura para as eleições de 2018.
Pois bem, essa operação foi gerada no âmbito de uma estreita cooperação judicial bilateral entre EUA e Brasil. O aprofundamento dessa cooperação judiciária e de segurança entre Brasil e EUA começou a se dar na década de 1990, mais especificamente ao longo do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Datam dessa época a abertura de escritórios da DEA e do FBI no Brasil, órgãos que passaram a cooperar ativamente com a Polícia Federal brasileira e outros órgãos, com investimentos vultosos em capacitação e treinamento de nossos policiais. Tais investimentos criaram uma inevitável relação de dependência e possibilitaram a progressiva incorporação da agenda da “guerra às drogas” e outros temas de interesse maior dos EUA aos objetivos da segurança púbica do Brasil. Também data dessa época o aprofundamento da cooperação entre as procuradorias de ambos os países, não apenas visando o combate ao narcotráfico, mas outros delitos internacionais, como corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Com o objetivo de fundamentar juridicamente essa cooperação, foi firmado, em 1997, o “Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América”.
Esse acordo ditou regras estritas para a cooperação. Entre elas, destaca-se a do Artigo II do acordo, a qual prevê que cada Parte designará uma Autoridade Central para enviar e receber solicitações em observância ao presente Acordo e que, para a República Federativa do Brasil, a Autoridade Central será o Ministério da Justiça. Também se deve salientar a do Artigo III, o qual o prevê que a assistência poderá ser negada, caso o atendimento à solicitação prejudicar a segurança ou interesses essenciais semelhantes do Estado Requerido.
No entanto, essas regras previstas no acordo vêm sendo sistematicamente violadas, nas atividades de cooperação. Isso foi dito publicamente por altas autoridades norte-americanas envolvidas nessas atividades. Tais “confissões” mostram não apenas que as regras do acordo vêm sendo desrespeitadas, mas também que as autoridades norte-americanas conduziram a construção da Lava Jato e o processo relativo ao apartamento triplex.
Com efeito, em manifestações públicas proferidas em 19 de julho de 2017, o Sr. Kenneth Blanco, então Vice-Procurador Geral Adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ), e o Sr. Trevor Mc Fadden, então Subsecretário Geral de Justiça Adjunto Interino daquele país, explanaram sobre cooperação baseada em “confiança”[2] e, por vezes, fora dos “procedimentos oficiais”, realizada entre as autoridades norte-americanas e os Procuradores da República da Lava Jato.
Afirmou o procurador Blanco que “tal confiança, como alguns aqui dizem “confiança”, permite que promotores e agentes tenham comunicação direta quanto às provas. Dado o relacionamento íntimo entre o Departamento de Justiça e os promotores brasileiros, não dependemos apenas de procedimentos oficiais como tratados de assistência jurídica mútua, que geralmente levam tempo e recursos consideráveis para serem escritos, traduzidos, transmitidos oficialmente e respondidos”. (grifos nossos)
Ora, tal cooperação informal, feita com base em “relacionamento íntimo”, se dá a revelia do texto do acordo, pois ele prevê, como vimos, que tudo teria de ser aprovado e conduzido pelo Ministério da Justiça. Mas não há qualquer registro oficial mostrando que o MJ tenha sequer tomado conhecimento dessas atividades informais. Assim, alguns juízes e procuradores, principalmente os da Lava Jato, não prestam contas a ninguém. Ignoram a norma do acordo com os EUA. Atuam conforme suas idiossincrasias pessoais e ideológicas, numa espécie de cooperação pessoal, que não tem sustentáculo jurídico.
Aqui é necessário fazer uma observação importante. A ordem jurídica interna do Brasil funciona com base em princípios diferentes da ordem jurídica interna norte-americana. Em nosso direito positivo, o agente público não é apenas proibido de fazer o que a lei veda. Ele é proibido de fazer tudo aquilo que a lei não preveja de forma explícita. Ele só pode atuar no marco estreito da letra da lei. Ora, essa cooperação informal, fora das vias oficiais, viola o texto do acordo firmado com os EUA, o qual, na ordem jurídica interna do Brasil, tem força de lei. Trata-se, portanto, de uma cooperação ilegal.
Ademais de violar abertamente o texto do acordo de cooperação, tais atividades informais agridem também princípios constitucionais. A Constituição Federal brasileira estipula que é prerrogativa constitucional exclusiva do Presidente da República celebrar tratados internacionais e conduzir as relações externas do país. Trata-se de princípio comezinho das relações internacionais, que exige que a voz do país no exterior seja uma só. Não se admite que um país tenha vários órgãos independentes que determinem políticas externas distintas. Por tal razão, qualquer atividade de cooperação teria de ser ao menos comunicada ao Itamaraty e por ele supervisionada. Obviamente, isso não acontece. Desse modo, nossos procuradores e juízes estabeleceram, em desafio claro à Constituição, política externa específica e independente para com os EUA.
As autoridades nacionais e o Congresso Nacional do Brasil sequer tomaram conhecimento, por vias oficiais, dos processos abertos nos EUA contra empresas brasileiras, o que causa muita estranheza. Alguns argumentam que os processos nos EUA contra empresas brasileiras (EMBRAER, Petrobras, etc.) decorrem do fato de que essas firmas abriram seu capital nas bolsas daquele país, submetendo-se, automaticamente, à legislação de mercado de capitais operada pela Securities and Exchange Commission.
Mas isso é apenas uma meia verdade. As multas geradas pelos norte-americanos às empresas brasileiras somam até agora a cerca de R$ 7 bilhões. As maiores da história. Trata-se de multas por delitos cometidos no Brasil por pessoas e empresas brasileiras. Como agravante, o Tesouro é o principal acionista da empresa mais demandada, a Petrobras.
Portanto, estamos lidando com recursos que estão ou poderiam estar na administração pública brasileira, mas que estão sendo transferidos para o exterior. A título de quê? Quais os critérios para fazer essa distribuição de valores (asset sharing), que nunca foi prática no Brasil? Como se chegou a esses valores? O Ministério da Justiça, “autoridade central” do Brasil, aprovou? O Ministério do Planejamento brasileiro previu esse gasto esdrúxulo no orçamento? O Itamaraty concordou? Todas essas perguntas pertinentes continuam sem resposta.
Mais ainda. Cabe privativamente ao Senado Federal, pela Constituição do Brasil (artigo 52, inciso V), autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios. Ora, é óbvio que essas operações financeiras são de interesse da União, pois tangem a recursos do Tesouro ou potencialmente do Tesouro. Entretanto, o Senado brasileiro só tomou conhecimento do tema pela imprensa.
Note-se que, em janeiro deste ano (2018), a Petrobras apresentou proposta para que os investidores norte-americanos desistam da ação legal contra a empresa, a qual prevê pagamento de US$ 2,95 bilhões (quase R$ 10 bilhões). Tal oferta é 6,5 vezes superior ao total de recursos recuperados até agora pela Lava Jato (R$ 1, 4 bilhão).
Embora a Constituição brasileira assegure ao Ministério Público autonomia, essa autonomia não lhe dá a prerrogativa de usurpar competências constitucionais privativas do Senado Federal e do Presidente da República. Também não lhe dá o direito de desrespeitar regras de acordos internacionais e a legislação interna do Brasil.
Mas não se trata apenas aqui de cooperação informal, sem nenhum amparo legal. Trata-se também de uma cooperação que foi construída essencialmente por interesses norte-americanos. De fato, numa relação informal, feita sem a supervisão de autoridades centrais, acabam predominando inevitavelmente os interesses da Parte mais preparada, experiente, e que dispõe de maiores recursos.
Na mesma palestra aqui referida, o procurador Blanco afirma que a Divisão Criminal é composta por cerca de 700 advogados espalhados por 17 setores e escritórios, principalmente em Washington D.C., e muitos em escritórios no exterior, inclusive no Brasil. Assim, o procurador confessa que há escritórios de procuradores norte-americanos, que atuam livremente em nosso país.
A influência dos EUA nas procuradorias brasileiras é objeto de várias mensagens diplomáticas norte-americanas, vazadas pelo Wikileaks, as quais mencionam o “Projeto Pontes”[3]. Trata-se de uma Conferência Regional de cooperação, realizada em outubro de 2009, com a presença de membros seletos da PF, Judiciário, Ministério Público, e autoridades norte-americanas, no Rio de Janeiro.
O informe diz que os agentes norte-americanos influenciariam brasileiros a criar uma força-tarefa para trabalhar em um caso factual, que receberia assessoria externa em “tempo real”.
Segundo um dos comunicados, após o sucesso da Conferência sobre “crimes financeiros ilícitos” promovido pelo “Projeto Pontes” (financiado com recursos dos EUA), cursos de formação em São Paulo e Curitiba foram solicitados por juízes, promotores e policiais brasileiros interessados em aprofundar o conhecimento sobre como, por exemplo, arrancar, de maneira prática, confissões de acusados de lavagem de dinheiro e outros crimes.
O sucesso do seminário, segundo a visão dos norte-americanos, foi medido pelo pleito dos profissionais brasileiros por novos treinamentos.
“Os participantes elogiaram a ajuda em treinamento e solicitaram mais treinamento para coleta de provas, interrogatório e entrevista, habilidades em situação de tribunal e o modelo de força-tarefa. (…) vários comentaram que desejavam aprender mais sobre o modelo proativo de força-tarefa; desenvolver melhor cooperação entre procuradores e polícia e ganhar experiência direta no trabalho sobre casos financeiros complexos de longo prazo.”
Para os agentes do EUA envolvidos no projeto, “(…) há necessidade continuada de assegurar treinamento a juízes federais e estaduais no Brasil, e autoridades policiais para enfrentar o financiamento ilícito de conduta criminosa. (…) Idealmente, o treinamento deve ser de longo prazo e coincidir com a formação de forças-tarefa de treinamento. Dois grandes centros urbanos com suporte judicial comprovado para casos de financiamento ilícito, especialmente São Paulo, Campo Grande ou Curitiba, devem ser selecionados como locação para esse tipo de treinamento.” (grifamos)
As anotações vazadas pelo Wikileaks indicam, ainda, que os agentes americanos pretendiam não só ensinar como se daria a formação de uma força-tarefa para um caso específico, mas incentivar que esse caso fosse transformado em “investigação real”, com “acesso” aos treinadores norte-americanos.
Assim sendo, torna-se claro que a força–tarefa da Lava Jato foi formada com participação e influência proativa de autoridades norte-americanas. Observe-se que tal influência reflete-se, inclusive, nos métodos utilizados.
É que a Lava Jato tem na Seção de Fraudes do Departamento de Justiça dos EUA a sua contraparte. Andrew Weissmann, chefe dessa seção, entre 2014 e 2017, é um procurador conhecido, nos EUA, por utilizar métodos pouco ortodoxos. Ele ganhou fama por comandar a força-tarefa que investigou a empresa de energia ENRON, no início deste século.
Pois bem, acusações e prisões de familiares, prisão como método de tortura, táticas agressivas e de risco, uso de vazamentos seletivos são, conforme denúncias surgidas nos EUA, procedimentos utilizados regularmente por Weissmann na força-tarefa da ENRON, que se reproduziram claramente na Lava-Jato.
Com efeito, os métodos de trabalho usados por Weissmann e replicados na Lava-Jato, foram considerados, nos EUA, como “agressivos”, de “alto risco” e exagerados. As cortes superiores norte-americanas acabaram revertendo vários casos da força–tarefa da ENRON, em razão das táticas utilizadas, que violavam direitos humanos. O mais rumoroso deles foi o da firma Arthur Andersen LLP, que teve todas as acusações retiradas pela Suprema Corte, em 2005. Ainda há juízes em Washington. Antes da Lava Jato, os procuradores brasileiros não se utilizavam desses métodos que violam direitos constitucionais.
A influência norte-americana é também política. O procurador Blanco fez referência específica, em seu pronunciamento, à sentença condenatória proferida contra Lula e ressaltou também neste caso a parceria norte-americana com os membros do MPF.
No vídeo, o procurador afirma que: “na verdade, na semana passada, os promotores no Brasil conseguiram a condenação do ex-presidente Lula da Silva, que foi acusado de receber subornos da empresa de engenharia OAS em troca de sua ajuda na obtenção de contratos com a petrolífera estatal Petrobras. São casos como esse que colocaram o Brasil na vanguarda dos países que estão trabalhando para combater a corrupção, tanto no país como fora.”[4]
Dessa maneira, um procurador norte-americano se refere explicitamente ao ex-presidente Lula como uma espécie de grande troféu da cooperação bilateral. Para ele, a condenação de Lula coloca o Brasil na “vanguarda da luta contra a corrupção”. Nota-se, assim, por parte da procuradoria norte-americana, intenção de interferir na vida política do Brasil, o que representa nítido desvirtuamento da cooperação bilateral.
É preciso levar em consideração, nesta análise, que os EUA costumam se utilizar dessas atividades de cooperação para fazer prevalecer seus interesses econômicos e políticos. O enfraquecimento de empresas brasileiras, como a Petrobras, a Odebrecht, a Embraer, etc. favorece objetivamente interesses norte-americanos e de seus aliados, quer pela eliminação de concorrentes, quer pela perspectiva de compra facilitada de ativos estratégicos, como petróleo e gás, gasodutos, terras, água, empresas de energia, empresas de alta tecnologia etc.
Concomitantemente, as atividades de cooperação na área do combate aos ilícitos, ou supostos ilícitos, podem servir de oportunidade para a criação de alvos políticos de interesse dos EUA. Dada à óbvia assimetria nas relações bilaterais Brasil/EUA, tais objetivos geopolíticos não seriam difíceis de serem alcançados, sob o manto aparentemente neutro e “mutuamente benéfico” das atividades de cooperação.
No entanto, o contrário, isto é, o uso das atividades de cooperação na propugnação de interesses brasileiros nos EUA, seria algo virtualmente impossível, pois a única superpotência do planeta não aceita, sob nenhuma hipótese, que autoridades estrangeiras possam se intrometer em seus assuntos ou prejudicar seus interesses, públicos ou privados.
Note-se, a esse respeito, que a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), lei norte-americana que busca coibir que companhias (americanas ou estrangeiras) façam pagamentos a funcionários de governos em troca de vantagens a seus negócios, tem nítido caráter extraterritorial.
De fato, para o Departamento de Justiça norte-americano (DOJ), os atos de corrupção investigados podem ter ocorrido em qualquer país, desde que a empresa mantenha vínculos, ainda que mínimos, com os EUA. Assim, enquadram-se nessa lei empresas que tenham ações em bolsas americanas, investimentos ou mesmo contas bancárias nos EUA.
Na visão do governo norte-americano, a lei em comento teria lhe propiciado uma espécie de jurisdição internacional para investigar casos de corrupção em todo o mundo. Como dificilmente uma empresa internacionalizada não tem interesses nos EUA, isso submete todas as empresas de alguma relevância ao crivo jurídico e político da lei norte-americana.
Dessa maneira, o combate aparentemente neutro à corrupção em nível internacional pode ser facilmente desvirtuado para beneficiar apenas interesses geopolíticos específicos.
Interesses Geopolíticos na Intervenção Militar no Rio de Janeiro
As mesmas suspeitas que cercam a cooperação bilateral Brasil/EUA na área judicial e, consequentemente, a Operação Lava Jato e o próprio impeachment sem crime de responsabilidade, se espraiam também à recente decisão do governo ilegítimo de proceder a uma intervenção militar no Rio de Janeiro.
Tal intervenção no Rio de Janeiro é, sem dúvida, bastante polêmica. Com efeito, ela suscita uma série de questionamentos, que vão desde as motivações da iniciativa até as possíveis consequências sociais e políticas das ações propostas.
Os questionamentos se acirraram consideravelmente, após a terrível execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL. A vereadora, combatente em prol dos direitos humanos, que se dedicava a defender as populações faveladas da cidade, vítimas históricas da violência policial, criticava abertamente a intervenção e estava empenhada no monitoramento e controle das operações.
Seu assassinato, em aberto desafio à ordem constitucional e às instituições democráticas, suscita dúvidas profundas sobre a capacidade da intervenção militar de melhorar, ainda que brevemente, a situação da segurança pública naquele estado. As dúvidas se intensificam, no que se refere à compatibilidade de tal intervenção com a imprescindível proteção aos direitos humanos fundamentais das populações mais afetadas pela violência e a exclusão social.
Entretanto, o objetivo deste artigo não é, repetimos, o de analisar, de forma pormenorizada, todos esses aspectos relevantes da intervenção militar no Rio de Janeiro. Na realidade, este modesto trabalho tem escopo reduzido. Tratamos apenas de inquirir sobre os possíveis aspectos geopolíticos que motivam esse uso ostensivo das forças armadas brasileiras na segurança pública e no combate à criminalidade ordinária.
Muito embora a motivação imediata da intervenção militar no Rio de Janeiro tenha sido claramente a de buscar popularidade e legitimidade para um governo com níveis altíssimos de rejeição na opinião pública, voltamos a enfatizar que não se pode descartar, a priori, que existam motivações de ordem mais ampla, inseridas em conhecidas pressões geopolíticas hemisféricas e em mudanças que vêm ocorrendo nas políticas externa e de defesa do Brasil.
As pressões dos EUA para o envolvimento das forças armadas latino-americanas no combate ao narcotráfico e sua transformação em forças subalternas da segurança hemisférica
Desde a década de 1980, com intensificação na década de 1990, os governos dos EUA passaram a pressionar os governos da América Latina, no sentido de que as forças armadas da região passassem a atuar em segurança pública, mais especificamente no combate ao narcotráfico, tema muito sensível nas eleições daquele país.
Essa pressão obedecia a dois propósitos: em primeiro lugar, auxiliar as forças norte-americanas a reduzir o afluxo de entorpecentes aos EUA e, com isso, aumentar os preço das drogas vendidas naquele mercado, diminuindo, dessa forma, o consumo local. Mas havia também outro objetivo, oculto, pelo qual se procurava enfraquecer as capacidades das forças armadas latino-americanas de cumprir sua missão precípua de defender o território e a soberania de seus países Com isso, os EUA procuravam (e ainda procuram) fazer com que as forças armadas da região se convertam em forças subalternas das forças militares norte-americanas.
Foi exatamente por isso que os EUA pressionaram o Brasil, na década de 1990, a desenvolver uma ampla política de desarmamento, que foi prontamente aceita e implementada pelo governo neoliberal de FHC. De fato, naquela época o Brasil firmou todos os acordos de desarmamentos possíveis, inclusive o “Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares” (TNP).
O ex-chanceler Celso Amorim, em entrevista recente à Revista Fórum[5], observa que: “esse pensamento de que Forças Armadas devem combater narcotráfico é lamentável. Eu convivo com essa questão há muitos anos. Eu fui ministro das Relações Exteriores na época do governo Itamar. Na ocasião, veio o secretário de defesa dos EUA, William Perry, e como na época não havia ministro da defesa, eu o recebi, embora ele tivesse contato com vários comandos. Todos estavam muito preocupados com essa ideia de transformar as Forças Armadas brasileiras em instrumento de combate à criminalidade. Essa era a agenda norte-americana. Eles [EUA] diziam algo como ‘olha, segurança externa e defesa cuidamos nós’. Isso foi o que eles impuseram no México, e deu muito errado pro México. (grifos nossos).
De fato, a experiência do México, nesse aspecto, tem sido desastrosa. Desde 2005, quando o ex-presidente Fox envolveu as forças armadas mexicanas no combate ao narcotráfico e ao contrabando, que o Exército e a população vivem violência crescente. Conforme estimativas conservadoras, mais de 100 mil pessoas foram assassinadas nessa guerra incentivada pelos EUA, a maioria civis inocentes.
Com efeito, o desgaste é evidente. O uso da força militar foi acompanhado de aumento de abusos e assassinatos. Organizações internacionais de direitos humanos denunciam a tortura como uma prática comum. O terrível resultado de episódios como Tlatlaya ou Ayotzinapa (nos quais estudantes secundaristas de foram chacinados) aprofundou essa desconfiança.
Criou-se um beco sem saída. A crise da violência no México se aprofundou e não existe mais autoridade civil capaz de enfrentar o problema mediante prevenção ou da punição. É por isso que as forças armadas são usadas. Porém, esse uso constitui erro crasso, porque os militares não são policiais treinados para essa tarefa complexa e específica. Ademais, tal política os expõe (os militares) a uma interação permanente com o crime organizado, que conduz à corrupção e ao desvirtuamento de sua missão.
No México, o colapso das forças policiais, corroídas até a medula pelo narcotráfico, forçou os militares a ocupar espaços cada vez maiores de segurança. "Nossos soldados não podem fazer mais. Proporcionalmente ao nosso território e população, somos o menor exército do mundo”, afirmou o general Salvador Cienfuegos, titular da Secretaría de la Defensa Nacional .
Por parte do tecido civil não há mais corresponsabilidade, apenas a inação, o que gera insatisfação notável entre os militares. Há soldados que protegem escolas em Acapulco, ou que fazem o trabalho da polícia municipal, algo que não deveria ser função militar A essa sobrecarga desvirtuada de trabalho, a ausência de um quadro legal de ação é adicionada. Apesar de o exército ter se mobilizado há mais de uma década, nenhum governo quer regular esse uso que se tornou, na prática, de longo prazo, sem data para acabar.
Em outras palavras, o uso das forças armadas no México em segurança pública, assim como na Colômbia, é um completo fracasso: aumentou a violência e a insegurança, incrementou os atentados aos direitos humanos, aumentou a corrupção entre os militares, provocou grande desgaste e insatisfação na tropa e, sobretudo, os desviou de sua função de defesa da pátria e da soberania.
Enfim, as forças armadas mexicanas, por pressão do governo dos EUA, são hoje usadas politicamente como mera força auxiliar dos órgãos de segurança norte-americanos.
O ex-chanceler Celso Amorim teme por esse uso político aqui no Brasil. Afirma ele, na citada entrevista, “a utilização política é grave e (os militares) não estão satisfeitos. Acho que isso está sendo imposto. E o aspecto que seria mais trágico para o Brasil, entre outros, é uma espécie de guerra das Forças Armadas com o narcotráfico. Seria uma desvirtuação da missão das Forças Armadas e um enfraquecimento da missão que é defender o Brasil, o pré-sal, as fronteiras, programas de tecnologia avançada… O que se espera das Forças Armadas é a defesa da nação. Mas claro que há sempre aqueles que têm saudades daquelas Forças Armadas nas ruas.” (grifos nossos).
De novo, não se trata de mera lucubração sem nenhum fundamento ou de “teoria da conspiração”. A ameaça é concreta. Não temos dúvida de que a combinação da Lava Jato, que está destruindo o braço empresarial da Estratégia Nacional de Defesa (assentado em empresas privadas, como a Odebrecht, a Embraer, etc.) com a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que reduzirá drasticamente o investimento estatal nessa área, poderá fazer o Brasil retroceder à década de 1990, quando a tônica dada pelo neoliberalismo acrítico era a do desarmamento do país.
Ademais desses fatores econômicos, é preciso lembrar que o Exército dos EUA participou, a convite do governo brasileiro, de um exercício militar conjunto que foi realizado, em novembro de 2017, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia. Tal fato revela um fator político preocupante para a soberania nacional, no campo da defesa e da indústria de defesa.
Tratou-se de uma decisão inédita na história militar recente do Brasil, que causa estranheza. O nosso país, até o presente governo ilegítimo, vinha investindo na gestão soberana da Amazônia, em parcerias com países da América do Sul, estabelecidas em mecanismos de cooperação regionais, particularmente os da Unasul e os da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Assim, esse convite a uma superpotência estrangeira, que não faz parte da Bacia Hidrográfica da Amazônia, representa um “ponto fora da curva”, na tradição de afirmação da soberania nacional em região estratégica para o país.
Na realidade, esses exercícios vêm na esteira de uma série de iniciativas bilaterais que, a nosso ver, fazem parte de uma estratégia do governo ilegítimo de reaproximação subalterna aos EUA, tanto no campo da política externa, quanto no campo da política de defesa.
Nesse diapasão, o Ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA assinaram o “Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento”, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês. Com tal decisão, o governo do golpe investirá na cooperação com os EUA, como forma de “desenvolver” nossa indústria de defesa. Na prática, isso significa renunciar a ter real autonomia no campo do desenvolvimento industrial e tecnológico da defesa nacional.
Ao que tudo indica, setores das Forças Armadas, hoje hegemônicos, renunciaram ao desenvolvimento tecnológico relativamente autônomo e, agora, apostam numa relação de dependência com os EUA para o seu reaparelhamento.
A assinatura do referido Convênio, bem como outras iniciativas recentes, parecem inserir-se dentro do quadro de uma nova estratégia de inserção do Brasil, na órbita dos interesses dos EUA. Tal nova estratégia tende a minar as diretrizes, estabelecidas há vários anos, de o Brasil articular uma estratégia de defesa própria e conjunta do subcontinente sul-americano, mediante, entre outros mecanismos, do Conselho de Defesa da Unasul.
Saliente-se que a principal vulnerabilidade que temos hoje, no campo da soberania nacional, tange justamente à inexistência de uma Base Industrial e Tecnológica de Defesa (BITD) capaz de aparelhar adequadamente as Forças Armadas.
A BITD é fator fundamental do que o ex-ministro da Defesa, Embaixador Celso Amorim, chamava de “Grande Estratégia”, que realça a articulação das políticas externa e de defesa. Remete igualmente a outro projeto estratégico do Estado: seu modelo de desenvolvimento. A BITD pode e deve ser um pilar central de um novo projeto de desenvolvimento focado na indústria de alta tecnologia e na inovação, sob indução e atento acompanhamento do Estado.
Não obstante, as ações do governo atual do Brasil vão, como vimos, na direção oposta e representam investimentos numa relação assimétrica e de dependência, em relação aos EUA, que dificilmente produzirão os efeitos benéficos esperados.
Dentro desse novo quadro de assumida dependência, a intervenção federal no Rio, com o uso ostensivo das forças armadas numa função que as desviam de sua missão principal (a defesa da soberania nacional), faz todo sentido para os interesses do governo ilegítimo e dos EUA.
Conclusões Provisórias
Comprovar efetivamente que há ingerências geopolíticas, ainda que indiretas, nos recentes e graves acontecimentos ocorridos no Brasil é tarefa inglória. Sempre se pode argumentar que os fatos foram consequência exclusiva de fatores internos e que quaisquer especulações sobre influências externas indevidas não passam de ridículas teorias da conspiração.
Muitas vezes, a comprovação dessas ingerências acaba se dando muito a posteriori, como ocorreu com o golpe militar de 1964, no Brasil. Assim, se comprovou, muitos anos depois, o que todo o mundo sabia.
Não obstante, as evidências coletadas até agora são, como vimos, robustas o suficiente para levantar suspeitas racionais sobre os temas aqui elencados. Resta saber se haverá disposição política para investigar os casos. Provavelmente, não.
[1] https://revista.drclas.harvard.edu/book/united-states-interventions
[2] Vídeo1-pronunciamento, com legendas, de Kenneth Blanco, então Vice Procurador Geral Adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ)- https://youtu.be/tbPLM5onjLk, aos 8m8s.
[3] http://operamundi.uol.com.br/dialogosdosul/wikileaks-eua-criou-curso-para-treinar-moro-e-juristas/15072017/
[4] Vídeo1-pronunciamento, com legendas, de Kenneth Blanco, então Vice Procurador Geral Adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ)- https://youtu.be/tbPLM5onjLk, aos 9m47s.
[5] https://www.revistaforum.com.br/celso-amorim-tenho-medo-que-as-forcas-armadas-voltem-atuar-como-partido-politico/
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