Motim da PM é nova ameaça à democracia
"Além de proibidas expressamente pelo Supremo desde 2017, as greves da Polícia Militar ignoram o princípio democrático de que um poder armado não pode levantar-se contra quem expressa a soberania popular", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia
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Ainda que os tiros no peito de Cid Gomes possam chamar a atenção, os motins da Polícia Militar se tornaram mais frequentes do que se costuma reconhecer.
Nas duas últimas décadas, já ocorreram protestos violentos em 16 estados brasileiros -- e seria ingenuidade imaginar que se trataram de simples manifestações por aumento de salário, comparáveis a paralisação de qualquer outra categoria assalariada.
Não custa recordar que desde 1988 a Constituição já proibia, no artigo 142, a sindicalização e a greve de militares, veto que inclui a PM. Desde 2017, porém, uma decisão do Supremo, por maioria de 6 a 3, dirimiu as últimas dúvidas que poderiam existir sobre o assunto. O STF afirmou que " o exercício do direito de greve, sob qualquer forma ou modalidade, é vedado aos policiais civis e a todos os servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública".
Foi assim que, com 19 anos atraso, o Supremo generalizou para o país inteiro uma visão aprovada nos debates da Constituinte. Ali se afirmou o princípio elementar de que numa democracia um poder armado não pode se opor ao poder civil, porque isso implica em colocar em questão a legitimidade de quem expressa a vontade das urnas. Por essa razão, essas greves são definidas juridicamente como motins, pois aqui a força armada atua fora da legalidade, sem aceitar sua subordinação ao poder legítimo do Estado.
Neste universo, a defesa do soldo por métodos ilegais é apenas uma face da moeda. A outra face é a tolerância com crimes cometidos contra a população civil, tragédia que enluta milhares de famílias brasilerias, em particular pretas e pobres.
Arregimentada como força auxiliar da ditadura, uma parcela considerável da PM voltou à ordem da Constituição de 1988 sem acertar contas com os costumes e desvios de um tempo em que o esforço de manutenção da ordem se fazia sem o consentimento social e incluia todo tipo de violência, inclusive a trotura e o assassinato de dissidentes e opositores.
No Brasil de hoje, chacinas e massacres tornaram-se uma dolorosa rotina de família do Brasil inteiro, alvo permanente de denúncias internacionais. As milícias que infestam vários Estados, a começar pelo o Rio de Janeiro, onde controlam fatias preciosas dos serviços públicos oferecidas a população pobre, representando um grau extremo de degradação.
Em "A ordem pública numa era de violência," estudo sobre a atuação de policias de várias partes do mundo que se mostram incapazes de garantir o cumprimento da lei e da ordem por meios pacíficos, o historiador britânico Eris Hobsbawn (1919-2012) denuncia corporações que perderam toda "justificativa moral" para legitimar o uso da força, impondo-se na mão bruta sobre o cidadão comum, muitas vezes em troca de benefícios indevidos.
A impunidade é uma tradição geral, na qual os registrros oficiais da PM de São Paulo chamam atenção pela brutalidade explícita. Em seis anos, de 2011 a 2017, as mortes violentas corridas durante suas ações tiveram um crescimento superior a 60%, chegando a 940. Em apenas 22, 8% dos casos verificou-se um caso de conflito real entre policiais e cidadãos acusados de cometer crimes. Nas demais 77,2%, apontava-se, de uma forma ou outra, para execuções.
Esse desempenho terrível ajuda a entender o empenho redobrado de Bolsonaro na defesa do excludente de ilicitude, uma licença para matar destinada a liberar de vez a violência de policiais e soldados em operações temerárias em defesa da ordem pública.
Ao anunciar o envio de soldados do Exército para o Ceará, Bolsonaro fez um apelo patético nessa direção -- sinal definitivo de que o país deve estar preparado para novas exibições de violência.
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