Mortos do Covid-19 falarão por nós
"Todo e qualquer esforço para defender cada vida humana está mais do que justificado. Toda tentativa de diminuir essas mortes é uma forma de crime moral", escreve o jornalista Paulo Moreira Leite ao avaliar eventuais comparações entre a tragédia do novo coronavírus na Itália e no Brasil
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Por Paulo Moreira Leite, para o Jornalistas pela Democracia
"Estimulados pela 'gripezinha' de Bolsonaro, aliados do governo demonstram pouca consideração pelas vidas humanas", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pelas Democracia
Nestes primeiros meses de 2020, quando o Covid-19 se apresenta com os sinais de uma catástrofe colossal, convém reconhecer uma verdade fundamental.
Além de dizimar milhares e até milhões de vidas, as grandes epidemias enfrentadas pela humanidade ao longo de séculos costumam servir de teste sobre os valores e que sustentam -- ou corroem -- cada sociedade.
Em seus primórdios, círculos preconceituosos apresentavam a AIDS como uma revolta da natureza contra um comportamento sexual fora dos padrões, devidamente castigado com a morte. O costume vem de longe.
No século XIV, a peste negra -- que dizimou entre 75 e 150 milhões de europeus, modificando drasticamente aquilo que chamamos de Velho Mundo -- era apresentada pela Igreja, potência política e cultural da época, como punição pela falta de fé de homens e mulheres.
No início do século XX, o necessário combate à varíola no Rio de Janeiro abriu caminho para a expulsão -- com métodos violentíssimos -- da população pobre da região central, a mais valorizada da capital da República.
Conforme se comprovou nas décadas seguintes, nascia ali a doutrina fundadora da República Velha, de que só havia um meio eficaz para o Estado enfrentar uma mobilização popular: "a questão social é um caso de polícia".
No mundo do século XXI, a explosão devastadora do Covid-19 é incompreensível sem um ajuste de contas com o movimento de ideias que colocou de pé a doutrina do Estado Mínimo, destinada a derrubar as variantes do Estado de Bem-Estar social construído no pós-guerra.
"Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos", formulou Margaret Thatcher, a primeira encarnação viva de um pensamento nascido na década de 1930 para combater as ideias de John Maynard Keynes. Nem comunista nem socialista, Keynes estava convencido de que o mundo capitalista funcionaria melhor com distribuição de renda e desemprego baixo, o que deveria levar o Estado a fazer investimentos nessa direção.
Num mundo em que "não existe essa coisa de sociedade", acredita-se piamente na tese de que a dinâmica da economia se baseia no egoísmo dos indivíduos, o que torna difícil enfrentar e vencer catástrofes coletivas -- em particular epidemias, que envolvem as fúrias indomáveis da natureza. Se a razão do progresso é o egoísmo, visão consagrada por Adam Smith, um dos pais ideológicos do capitalismo, por que acreditar em igualdade, solidariedade?
Este universo tem sido revelado cotidianamente pelos mortos do covid-19, cujo símbolo maior se avista no cortejo de caminhões do Exército italiano, transportando milhares de cadáveres até o crematório mais próximo.
No Brasil de 2020, o encontro do coronavírus com o neo-liberalismo produziu uma nova forma de banalização do mal, a expressão clássica de Hanna Arendt para designar o conformismo que permitiu a classe média e alta da Alemanha compactuar com os horrores do nazismo sem sentir peso na consciência.
No Brasil, país onde o próprio ministro da Saúde admite que o sistema de saúde irá "entrar em colapso" nas próximas semanas, Jair Bolsonaro definiu o covid-19 como uma "gripezinha".
Aliados e amigos do presidente tem sido mais explícitos em condenar o confinamento de trabalhadores, até hoje a única forma conhecida para se TENTAR impedir um avanço da pandemia, sugerindo que se trata de um desperdício de pessoas e recursos.
"Doze mil mortes em 7 bilhões de habitantes é muito pouco para criar essa histeria coletiva", disse o publicitário e apresentador Roberto Justus, empregando números globais para tentar contestar a reação inconformada que as mortes pelo covid-19 tem provocado em várias partes do planeta.
Outro adversário do confinamento, o empresário Junior Durski, da cadeira de restaurantes Madero, afirma que a medida terá "consequências econômicas muito maiores do que as pessoas que vão morrer por conta do coronavírus". Durski estima que estas serão entre "5 e 7 mil pessoas".
Concentrando-se em argumentos estatísticos para minimizar a tragédia, ambos ignoram o ponto essencial em debate -- o valor insubstituível de cada vida humana -- e mergulham numa armadilha penosa, inevitável sempre que se procura quantificar uma tragédia.
Alvo principal dos crimes de Hitler, na década de 1930 a população judia da Alemanha era Constituída por 500 000 pessoas, inferior a 1% da população do país. É pouco ou muito?
Qualquer tentativa de comparar a tragédia italiana, a mais grave do planeta pelos dados de hoje, com o desenvolvimento do Covid-19 no Brasil implica num desafio imenso.
Nosso país tem uma população três vezes maior que a italiana, com uma pirâmide social recheada por desigualdades radicais, onde a construção de um Estado de bem-estar social foi interrompida antes que pudesse ser terminado.
Nesta condição, todo e qualquer esforço para defender cada vida humana está mais do que justificado. Toda tentativa de diminuir essas mortes é uma forma de crime moral.
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