Montaigne: para um sentido da história
A maior parte da insanidade já foi cumprida pelos movimentos liberais-midiáticos que seduziram parte da nossa classe média para uma aventura golpista. Para o bem e para o mal, os que chegariam ao poder com Temer, sairiam de dentro do próprio Governo impugnado. É o momento da História em que a ironia supera a tragédia. Só uma nova eleição, nesta hipótese, colocará novamente a nossa democracia nos trilhos
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Não posso falar das qualidades morais e políticas da deputada Raquel Muniz (PSD MG), nem do seu marido, prefeito de Montes Claros, Ruy Muniz. Como estamos assistindo vários procedimento de "exceção", no campo penal, seria desleal precipitar um juízo sobre estas duas figuras, que no seu provincianismo explícito, na hora do voto "contra a corrupção" proferido pela deputada, viriam a se tornar -ainda que de maneira efêmera- duas figuras nacionais. Interessa mais o símbolo político que eles constituem -tenha ou não o Prefeito cometido os delitos que lhe imputam- do que propriamente o episódio personalizado. Mas o episódio é emblemático, para entendermos o que está correndo hoje no nosso amado país.
O que especialmente não se tratou nos debates da Câmara sobre o impedimento da Presidenta, foi da existência ou não de "crime de responsabilidade". As longas dedicatórias de voto, feitas pelos deputados que assumiram derrubar a Presidenta Dilma, partiam sobretudo de uma vocação moralizadora que os parlamentares exibiam ao país: o seu amor à família e as suas cidades de origem. Foi um longo desfile de primitivismo político, irresponsabilidade histórica e exibição de decadência do atual sistema político. Ao invés do julgamento da aceitação (ou não), de que há (ou não), crime de reponsabilidade a ser julgado pelo Senado, os deputados votavam "para regenerar o Brasil da corrupção", para "salvar as suas famílias" e retomar o "crescimento e o emprego." Tratava-se da pretensa eleição indireta de um Presidente da República, para substituir uma Presidenta eleita diretamente. Um atalho. Não um processo regular de "impeachment".
Ao longo dos últimos dezoito meses, a ampla maioria da mídia tradicional do país, de maneira dolosa, desta vez de forma sistemática e planejada -não de maneira espontânea e desorganizada como até então- vem incutindo na cabeça do distinto público, quatro mentiras básicas, sobre a conjuntura política do país, aproveitando, de uma parte, a adesão do PT aos critérios de governabilidade tradicionais da política nacional e, de outra, as reais ou fictícias ilegalidades, cometidas por próceres ou aliados do Partido, no contexto das disputas eleitorais. Eis as quatro mentiras básicas: o PT corrompeu a democracia brasileira; a maioria dos políticos, especialmente do PT e do seu campo aliado, são corruptos e venais; removendo o PT começaremos a resolver os problemas nacionais; qualquer um, menos Dilma, é melhor para sairmos da enrascada da crise; o PT aparelhou o Estado.
Desnecessário dizer a mentalidade de sabujice política e de temor reverencial, que esta campanha causou num amplo espectro de deputados -por medo de serem justa ou injustamente "julgados" pelo oligopólio midiático ou por mero oportunismo político- promovendo a ideologia salvacionista e farisaica, que resultou na aceitação do processo de impedimento da presidenta Dilma. Para que isso pudesse acontecer, foi necessário que a parte mais decomposta do PMDB -falo aqui em termos políticos- transitasse rapidamente para "traição" e formasse, com a direita conservadora (Heráclito, Agripino, Bolsonaro), um grande bloco em defesa da moral e dos bons costumes, na Política, para tentar eleger Temer, de forma indireta, à Presidência da República, a depender da posição que será assumida pelo Senado Federal.
Sobre as quatro mentiras: a corrupção no país não foi iniciada nem aumentada pelo PT e acompanha a formação do Estado Nacional, como ocorreu e ocorre em qualquer país; parte -apenas parte, repito- de todos os partidos e também do PT, se integraram neste processo e o destaque, no último período, veio de parte do PMDB, do DEM e do PP, unidos agora para eleger Temer; remover o PT do Governo, neste momento, pelo atalho institucional do "impeachment" forjado, agrava os problemas nacionais, porque Temer -se confirmado pelo Senado- terá muito menos legitimidade para governar do que a Presidenta Dilma; o PT não só não "aparelhou" o Estado, como está sofrendo pesadamente os efeitos deste "não aparelhamento", pois os órgãos de controle e investigação, que sempre foram lenientes nos Governos FHC, estão investigando e "controlando" livremente e o fazem, com atenção especial ao PT.
Popper, dizia que a história não tem sentido, mas nada nos impede de dar a ela um sentido. Bobbio, acreditou que as boas "regras do jogo" podem orientar melhor este sentido. Marx, profetizava que as "determinações econômicas" deveriam ser entendidas para que os sujeitos pudessem orientá-la, da melhor forma possível. Parece que a grande mídia, que vem pautando, tanto um sentido para crise política (a culpa é do PT, de Lula, da esquerda), que vem legitimando regras do jogo de "exceção" (com o endeusamento explícito da jurisdição de exceção do Juiz Moro) e que vem utilizando as determinações econômicas da crise financeira global (piorando-a com a sua propagação interna pessimista), entendeu, na plenitude, o seu papel dirigente: liquidar a política como espaço do contraditório democrático racional, para oferecer aos políticos submissos ou temerosos, o papel de sujeitos da irracionalidade autoritária.
O resultado está simbolizado pelo episódio da deputada Raquel e do seu marido, que justa ou injustamente foram escolhidos pelo acaso para a revelação emblemática: a partir de agora vocês não serão mais incensados, todos os nossos esforços -está pensando a coalização liberal-midiática- serão destinados a cortejar, orientar e modelar, Temer e seu grupo, que talvez tenham o maior número de contas a acertar perante a nossa Justiça Penal. Se assumir, Temer terá legitimidade zero, que só será conseguida pelo artificialismo da criação de um país ilusório gerado pelo Jornal Nacional, mas nas ruas, nas universidades, nas fábricas, na juventude, no campo, junto inclusive a setores empresariais que dependem do mercado interno e dos investimentos públicos -que será ainda mais asfixiado do que está- é que se estará gestando o novo Brasil.
Cabe aos setores mais corajosos e racionais da esquerda democrática do país, começarem a "concertar" um novo bloco social e político -com um programa ousado de mudanças, no sistema político, no funcionamento do Estado, no reforço legal e legítimo do combate à corrupção, na democratização das decisões para compor políticas públicas, numa nova regulação democrática da mídia, na soberania alimentar- para nos contrapormos com luz e clareza aos momentos duros que vem por aí. Se bloquearmos o "impeachment", a coalizão liberal-midiática vai continuar impedindo Dilma de governar e se Temer assumir teremos o Governo da mídia, combinado com a pior parte do que cevamos no nosso próprio Governo. Se esta última hipótese ocorrer, precisamos criar uma ampla maioria social e política, centrada numa única exigência comum: eleições gerais, ainda este ano, para legitimar o poder político no Brasil e fazer a Constituição de 88 retomar seu império sobre a vida pública.
Lembro-me de uma sentença de Montaigne, um admirador do cotidiano, um realista sóbrio, a quem sempre procuro me reportar em momentos de dúvida: "uma parte da nossa vida consiste em insanidade e a outra em sabedoria". Creio que, neste período que vivemos, a maior parte da insanidade já foi cumprida pelos movimentos liberais-midiáticos, que seduziram uma boa parte da nossa classe média para uma aventura golpista. A sabedoria -em maior ou menor grau- está em todos os lados e em todas as classes, Não é resultado da sabedoria, porém, -se foi verdadeiro o ânimo de luta contra a corrupção que embalou certos movimentos- deixar o Governo nas mãos dos grupos políticos mais plenamente identificados com ela. Para o bem e para o mal, os que chegariam ao poder com Temer, sairiam de dentro do próprio Governo impugnado. É o momento da História em que a ironia supera a tragédia. Só uma nova eleição, nesta hipótese, colocará novamente a nossa democracia nos trilhos.
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