Modernidade contra o Brasil
É um certo anacronismo exigirmos de Januário da Cunha Barbosa um entendimento da modernidade que não era o seu
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Um trecho do livro recém-lançado “O soldado antropofágico: escravidão e não-pensamento no Brasil”
É um certo anacronismo exigirmos de Januário da Cunha Barbosa um entendimento da modernidade que não era o seu, nem o dos homens de sua classe e condição em seu novo país.[i] Sem dúvida um anacronismo, um desejo de luz moderna sobre a experiência e a dinâmica brasileira que não era o caso. Todavia, algo que um outro autor, contemporâneo de Cunha Barbosa, foi perfeitamente capaz de enunciar já na época e no lugar.[ii] Visto do seu ponto de vista, o nosso anacronismo se revelava, já então, algo sincrônico. Não por acaso, como veremos.
O viajante alemão Carl Schlichthorst, ao pensar pela primeira vez os horizontes possíveis para a literatura no Brasil das origens e com a experiência de ter vivido aqui por dois anos, nos mesmos anos de 1820 do Niterói de Barbosa, simplesmente escreveu a respeito da possível representação literária do país, fazendo tábula rasa da consciência convencional mais geral dos brasileiros: “A mitologia grega, na maior parte baseada em fenômenos da natureza, faria triste papel sobre o céu tropical. Poderá a Aurora servir para abrir com seus dedos cor de rosa o reposteiro de um dia, cujo esplendoroso colorido faria empalidecer o próprio Apolo? Ninfas e faunos serão por acaso habitantes adequados às florestas virgens e eternamente verdes, em cujo seio inviolado se escondem mais maravilhas do que as poderia criar a mais viva fantasia?
As primeiras tentativas de musa brasileira fazem já supor que tomará um voo mais original e que o Brasil conservará sua independência, quer poética, quer política.”[iii] O espírito de independência e liberdade de movimentos do viajante, e seu fundo iluminista popular particular, como veremos adiante, já projetava na riqueza natural, na novidade e na modernidade compulsória da nova nação um princípio de inquietação e de invenção que, durante muito tempo, nosso real conservadorismo, vindo de outro fundamento, não permitiria confirmar. Além disso, ele pensava o vínculo entre cultura e política como chave do desejo de autonomia e de continuidade nacional.
O que importa é que, de algum modo, no epicozinho retardatário de 1822, uma quase alegoria carnavalesca a contrapelo do desejo elevado de seu autor, superficial brasileira, sem referências na historicidade que situava o próprio país, já estava indicada e talvez até mesmo já formada, com grande antecipação mas com estrutura social de razões clara que lesava a possibilidade de forma, a equação simbólica difícil de nossa famosa e real aristocracia do nada, a qual Paulo Emílio Salles Gomes, discípulo sério de Oswald de Andrade, combateu a irresponsabilidade nos anos duros de 1930 a 1970.
Lá também estava, até podemos dizer, a consciência de ocupante, lépida e pronta para produzir o próprio espaço nacional que lhe correspondia, nos termos críticos de Paulo Emílio na década de ditadura de 1970: consciência estrangeirada no nada de um passado ou de um futuro inexistentes naqueles termos do que seria a vida mesma do espaço nacional, ou seja, de tudo o que implicasse a vida social. Estrutura de sentido e subjetivação própria de parte significativa das elites locais – as mesmas que Oswald de Andrade ridicularizaria sem piedade, pelos mesmos motivos, em suas obras em prosa de vanguarda dos anos de 1920.[iv]
Creio tratar-se possivelmente, também, por exemplo, da mesma posição simbólica questionável reeditada a respeito da qual Antonio Candido, amigo íntimo de Paulo Emílio e crítico original de Oswald, comentando romance de pendor filosofante, intelectualista e universal de José Geraldo Vieira, A quadragésima porta, em um momento de grande força crítica, ainda na década de 1940, escreveu batendo com urgência histórica: “que nunca mais sejam possíveis no Brasil obras semelhantes e classes que as tornem viáveis e significativas”. O crítico concluía ser aquele um espírito de classe brasileiro que passou inteiramente incólume aos efeitos da revolução de 1930.[v]
Era a posição da dura consciência crítica moderna nacional a respeito daquele extrato social, com sua simbólica irresponsável e não íntegra, na qual simplesmente “o que impressiona é o seu desligamento total do Brasil, de nossos problemas, de nossa maneira de ver os problemas”, nos termos de Candido, quando expressam o seu mundo imaginário meio mágico e meio morto, simplesmente deslocado da vida produtiva e de qualquer ordem de compromisso, social, popular, crítico ou, até mesmo, livremente estético. Um famoso espaço elevado, mortificado e distanciado, “da precedência do umbigo sobre o mundo” segundo o crítico, de tipo flor de estufa, nos termos de Sérgio Buarque de Holanda, ou dos ricos entre si do Brasil, nos termos de Machado de Assis, o mesmo espaço de razões que, em uma batalha secular, nosso modernismo e nossa cultura crítica local confrontou sempre, buscando uma nova realidade formal e social, ao longo de todo século XX.
“Ainda quando se punham a legiferar ou a cuidar de organização e coisas práticas, os nossos homens de ideias eram, em geral, puros homens de palavras e livros; não saiam de si mesmos, de seus sonhos e imaginação. Tudo assim conspirava para a fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria asfixiada. (…) Era o modo de não nos rebaixarmos, de não sacrificarmos nossa personalidade no contato de coisas mesquinhas e desprezíveis.”[vi] Leia-se, a vida dura, violenta e fora de todo parâmetro de progresso liberal da sociedade de proprietários, escravizados e homens livres, incluindo aí, ou melhor, excluindo, as ilusões estratégicas iluministas centrais.
Ao mesmo tempo, espaço social e simbólico positivamente alinhado com o poder, afirmativo satisfeito da própria submissão a uma soberania qualquer, como também anotou Sérgio Buarque, espaço cultural ideológico que é uma de nossas formações de longa duração, do continuum criado por força do escravismo, como disse Alberto da Costa e Silva. Era a famosa cultura do medalhão, inconsequente para todo sentido de modernidade inquieta, adulatória e rebaixada, praticamente demenciada do ponto de vista da vida do conceito, como de modo satírico e condensado Machado de Assis enunciou, formalizou e pesquisou em detalhes espantosos, em seus romances de segunda e de terceira fases.
Que formas semelhantes àquela fossem encontradas pouco mais tarde em José de Alencar – no alegorismo grosseiro e no mau gosto satisfeito, sem nenhum traço de vergonha, de classe, que passava por elevado e decoroso, de O Guarani por exemplo – e, já no século XX, no tradicional pensamento fetichista atrasado à direita brasileiro, particularmente no mórbido quatrocentrismo paulista – claramente expressas no cinema mofado das elites jogando o gamão de suas existências anti-modernas da Vera Cruz, na “tradição sublime da burrice lenta e grave dos Paulistas”, nos termos de Mário de Andrade[vii], daquela flora social “indolente e exótica, como as suas orquídeas, e mais do que se imagina”, de Lévi-Strauss[viii] – e fossem abertamente denunciadas em uma espécie moderna de construção em abismo do passadismo e do kitsch nacional por Glauber Rocha, ainda em 1967, em Terra em transe – e também como efeito de superfície e festivo, em nosso animado tropicalismo musical – e que, ainda hoje, se manifestem traços fortes desta barbárie arcaizante cultural nas ruas e na nova tentativa de política de direita no Brasil pós-moderno, agora misturados à subjetivação do novo sujeito universal do consumo globalizado, talvez ainda mais rebaixado, esse grande circuito de repetições do kitsch mortificado, brasileiro, hoje maníaco e determinado industrialmente, vulgar, mas igualmente demente, revela a verdadeira força de uma íntegra convicção nacional, de fundamento.[ix]
Desconexão da história como programa e sistema delirante de ideias para a aproximação abstrata do poder, com produção de non sense aplicado e como cultura, autoritária e satisfeita, é uma prática ideológica vernácula brasileira. É a persistente dimensão simbólica nacional, que revemos hoje como catástrofe cultural meio universal, de boçalidade do mal, de descompromisso com a inteligência, apoiado no predomínio direto sobre o trabalho. Como disse perfeitamente Eric Williams, “o abastecimento de mão de obra de baixa condição social, dócil e barata, só pode ser mantido com a degradação sistemática [da terra] e o esforço deliberado de sufocar a inteligência.”[x] É possível reconhecermos o valor contemporâneo do programa? As coisas do Brasil de agora o tornaram evidente, não é necessário negá-lo. É o nosso mundo conservador ativo, que realiza constantemente, para nossa miragem de país e para a contagem sem fim dos mortos, a sua própria “dialética de ambos os polos de Ordem e Progresso, com a mistura de um pouquinho de progresso com regressão”[xi] segundo outro escritor alemão, já falando na estrutura suspensa de nosso próprio tempo.
Foi exatamente este tipo de mentalidade e de homem que Machado de Assis, mais uma vez, foi o primeiro a formular e apontar virtualmente o fundamento kitsch real, o seu mau gosto anti-moderno morto vivo, no compromisso subjetivo com o que não existia mais, a falsa cultura clássica, a irresponsabilidade das ideias vazias e a impotência garantida em sociedade de escravos. Tudo isso está presente na estranha cena de abertura de Dom Casmurro, em que Bento de Albuquerque Santiago, o Bentinho, nos conta como, quase envelhecido e bem congelado no ressentimento da própria vida, e já em 1899…, buscava mais ou menos reconstruir a casa de sua infância – a casa da mamãe Dona Glória, que o prometera ao seminário católico, do qual fora salvo pela consciência aguda das coisas da menina Capitu[xii] – com a reprodução fantasmática das efígies pintadas no teto da casa original de figuras da história de Roma, Cezar, Augusto, Nero (!) e Massinissa (!!). Fetichismo arcaizante e negativo evidente, voltado de novo para mundo clássico que não existia, que congela o infantil no velho, anti-moderno por excelência, de um passado que já passara, mas que, para esse modo de ver as coisas, nunca devia passar e, por puro desejo, não passa.
Passadismo, e cultura morta, impotência social e autoritarismo, são os valores de tal constituição cultural, talvez em relação de origem, fundo de valores, de algo que é o real proto-pós-modernismo, autoritário, maníaco e violento, tão local, hoje em voga.[xiii] Espírito cujo fundo cultural é confissão de fé, tentativa sempre reposta de juntar os tais caquinhos de um mundo passado para os seus próprios sujeitos, campo obsessivo muito especial, que pressupunha escravidão.
Também, o ódio histérico atual, que imanta fortemente a capacidade de pensar de setores da classe média brasileira que adoraram se converter em massas nas ruas, no sentido freudiano da ideia, e a sua destruição política interessada e calculada da história e do sentido daquilo que foi o governo Lula no país, talvez ainda tenha contato significativo com aquelas formas não integradas, não modernas nem responsáveis, que formavam a origem e o fundo autoritário e anticrítico, agregado compulsoriamente ao poder, que sociologicamente antecedeu a tudo no Brasil.[xiv] O sujeito e sua cultura comum da violência, desta ordem brasileira, que se reedita de crise em crise, de transe em transe – na ideia da descontinuidade mais ou menos constante de nosso processo histórico, de Glauber Rocha, que projeta sobre nós imagem circular, incompleta, ao invés da linha infinita do progresso central – que já foi percebida como textura política do mundo da vida e da cultura há muito tempo.
Por exemplo, por Carl Schlichthorst: “o leitor dificilmente compreenderá os sentimentos desagradáveis, o incômodo e as ofensas causadas por uma sociedade em que as mais delicadas atenções podem ser calcadas pela violência nela reinante, pelas baixas intrigas que a movem e pela falta de ideias razoáveis, o que se torna mais sensível em um país onde o espírito encontra pouco alimento.”[xv]
Ainda temos Cunhas Barbosas em meio aos nossos tão radicais quanto violentos supermodernos alt-rights intervencionistas bolsonaristas de manifestações de domingo à tarde na Avenida Paulista, capazes de sustentar tranquilamente o arcaísmo resoluto, mas esperto, de um governo Temer, e uma regressão anti-moderna astuta como o virtual neofascismo de um governo de extrema direita plenamente assumido no Brasil, sempre beirando o ridículo, super kitsch, useiro e vezeiro de suas “imagens disparatadas, imprecações heroico-asnáticas, tiradas patético-pernósticas”[xvi] agora baratas e falsificadas industriais, vulgar no último, mas também sempre a favor de todo interesse particular, e força qualquer de capital, de qualquer natureza que seja, da bala à queimada generalizada, e daí a sua contemporaneidade? Ou, de fato temos coisa nova, e ainda pior, no que com muita condescendência tem se chamado hoje de nova direita no Brasil? Qual é a nova ordem de poder e de cultura para a velha pulsão da agregação automática brasileira, seu elitismo alienado e seu mais tradicional, profundo e verdadeiro besteirol cultural, marca identitária que acompanha de perto nosso “reacionarismo burguês exacerbado”, como dizia Florestan Fernandes sobre estas coisas?
Teoricamente aliás, para a vida da sociologia política no Brasil, a situação parece um tanto aquela pensada pelo próprio Florestan em suas pesquisas sobre a permanência das formas sociais pré-modernas e da natureza oculta presente do racismo à brasileira, ao concluir que, não querendo explicar o presente inteiramente pelo passado era, porém, necessário considerar que no Brasil presente e passado “foram reconstruídos conjuntamente”. Presente e passado estavam “interligados nos pontos de junção, em que a sociedade de classes emergente lançava suas raízes no anterior sistema de castas e estamentos ou nos quais a modernização não possuía bastante força para expurgar-se de hábitos, padrões de comportamento e funções sociais institucionalizadas, mais ou menos arcaicas.”[xvii]
Um dos pontos importantes da vida simbólica brasileira contemporânea – e seu último transe, em uma sucessão secular de crises – é saber o quanto a nova ideologia avançada da modernidade ultraliberal do capitalismo globalizado, de grandes fundos internacionais que reduzem a margem de manobra das nações para a própria vida social à nada, simplesmente reencontra, ainda uma vez, nossa velha disposição para a auto-elevação descomprometida de elite, da reafirmação da tradição autoritária nacional a mais básica, produzida no mesmo movimento do desprezo pela vida pobre e popular.[xviii] É certo que já vimos coisas desta ordem em outros momentos de violência, do pacto de alto e de baixo no Brasil, que guardam esta lógica no tempo: “Em menos palavras: no conjunto de seus efeitos secundários, o golpe apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado; a revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei etc. (…) Sistematizando um pouco, o que se repete nestas idas e vindas é a combinação, em momento de crise, do moderno e do antigo: mais precisamente, das manifestações mais avançadas da integração imperialista internacional e da ideologia burguesa mais antiga – e obsoleta – centrada no indivíduo, na unidade familiar e suas tradições.”[xix]
Neste amplo campo de sentidos da tradicional expropriação à brasileira, e sua estupidez atávica e falaciosa, a manutenção dos valores retrógrados de mentalidade constantes entre nós se articula e faz parte da produção de um verdadeiro fator de Capital especial, próprio ao nosso caso, de país que se formou assim: a possibilidade constante de se derrubar a ideia e o sistema de alguma democracia em trabalho, para o ganho a qualquer tempo de uma espécie avançada e renovada de capitalismo de acumulação primitiva, um ataque direto a fundos sociais, de regulação púbica e, sempre, contra a possibilidade do aumento do poder social, seja ele até mesmo de consumo, do trabalho no Brasil.[xx] Algo se dá assim mais ou menos da forma que Rosa Luxemburgo compreendeu a dinâmica imperialista do Capital quando projetado mundial, sempre pronta a ser primitiva nas periferias do mundo, pagando razoavelmente os intermediários locais do crash, é claro, e confirmando a ética radical de sua estupidez.[xxi]
Nesta forma constante de salto para o passado, para um princípio formativo que também é antigo, mas que serve à acumulação do presente, algum poder no Brasil se desresponsabiliza, e isto faz parte do processo ideológico e da formação da subjetividade, dos próprios resultados concretos de sua política. Como de fato se desresponsabilizou por completo, por exemplo, da parte violenta da crise econômica do tempo presente, pós impeachment de Dilma Rousseff, que lhe coube – economia efetivamente parada quatro anos, até o momento, 12,5 milhões de desempregados durante todo período Temer e além, flerte aberto com novo tipo de fascismo – criada pela própria política extremada da construção de uma crise política de mais de ano e meio, artificial e interessada, em um país que sofria a crise geral de um contexto mundial.
Precisamos saber se, mais uma vez, como em toda nossa tradição moderna marcada com este explícito travo de atraso anti-moderno, vamos avançar na progressão da riqueza sem avançarmos nos direitos à integração social, como fizemos no século do Império escravocrata, durante a República Velha oligárquica e na brutal ditadura civil-militar de capitalismo selvagem brasileiro de 1964-85.[xxii]
Por isso, o dito de Antonio Candido, de 1945 – em seu momento rigoroso de “não é mais possível” de Paulo Martins em Terra em transe, de 1967 – continua suspenso no ar frente os movimentos de grande violência, para trás, que o Brasil sempre conheceu: “que nunca mais sejam possíveis no Brasil obras semelhantes e classes que as tornem viáveis e significativas”.
*Tales Ab´Sáber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros de O sonhar restaurado, formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Editora 34).
Referência
Tales Ab’Sáber. O soldado antropofágico: escravidão e não-pensamento no Brasil. São Paulo, n-1 Hedra, 2022, 334 págs.
Notas
[i] A anacronia é um problema de subjetivação política da crítica, na medida mesma em que parte de um universo próprio de referências históricas e desejos sociais, desde onde o crítico situa seu objeto. Ela só pode ser evitada sendo reconhecida, e dialetizada, entre o presente e o passado, por isso: “Mesmo sem querer recuar conceitos anacronicamente, parece que o Caramuru pode ser considerado uma epopeia do tipo que se chamaria hoje de colonialista, porque glorifica métodos e ideologias que censuramos até no passado. Mas que ainda são aceitos, recomendados e praticados pelos amigos da ordem a todo preço, entre os quais se alinharia o nosso velho Durão, que era filho de um repressor de quilombos e hoje talvez se situasse entre os reacionários, com todo o seu talento, cultura e paixão. Como sabemos, o Caramuru é uma resposta ao Uraguai, cujo pombalismo ilustrado estava mais perto daquilo que no tempo era progresso. Mesmo sendo progresso de déspota esclarecido, useiro da brutalidade e do arbítrio” (Antonio Candido, “Movimento e parada”, op. cit., p. 7).
[ii] Podemos também observar a graça e a arte do anacronismo com ainda mais precisão se compararmos a respeitosa e emocionada visão de Cunha Barbosa expressa por Gonçalves Dias no poema elegíaco em sua memória, nos Segundos cantos, e os efeitos atuais da obra e do personagem sobre mim. Deste modo, o poeta escreveu em 1848:
Canto inaugural
À memória do cônego Januário da Cunha Barbosa
Onde essa voz ardente e sonorosa,
Essa voz que escutamos tantas vezes,
Polida como a lâmina de um gládio,
Essa voz onde está?
No rosto popular severa e forte,
No púlpito serena, amiga e branda,
Pelas naves do templo reboava,
Como oração piedosa!
E a mão segura, e a fronte audaciosa,
Onde um vulcão de ideias borbulhava
E o generoso ardor de uma alma nobre
– Onde param também?
(…)
Secou-se a voz nas fauces ressequidas
Parou sem força o coração no peito
Quando somente um pé firmava a custo
Na terra prometida!
E a mão cansada fraquejou… pendeu-lhe.
Inda a vejo pendente, sobre as páginas
Da pátria história, onde gravou seu nome
Tarjado em letras d’oiro.
Em seguida a introdução que tem o cônego historiador na maior conta possível daquilo que era o projeto comum de uma primeira geração de escritores, inventar um país, o poeta se refere, em termos tão fortes quanto passíveis de serem lidos com ambiguidade irônica, ao poema mítico Niterói:
Pendeu-lhe… quando a mente escandecida
Talvez quadro maior lhe afigurava
Que a luta acerba do Titã brioso,
Última prole de Saturno.
Inveja Claudiano pincel válido,
Que nos retrata o cataclismo horrendo
Que ele – poeta – não achou nos combros
Da ignívoma Tessália!
Inveja… mas às formas do Gigante
Sorri-se o grande Homero; – e o cego Bardo
Da verde Erin, entre os heróis famosos
Prazenteiro o recebe!
Tudo indica que o mais belo e acabado poema da expressão nacionalista de Gonçalves Dias, O gigante de pedra, com sua referência à natureza titânica carioca que parecia querer se descongelar finalmente como testemunho da história, teve alguma origem e influência em seu respeito pessoal por Januário da Cunha Barbosa. Ele foi uma refatura séria do seu pobre Niterói.
[iii] Capítulo ensaio “Literatura Brasileira”, de O Rio de Janeiro como é, 1824-1826 – uma vez e nunca mais, de C. Schlichthorst, Rio de Janeiro: Editora Getulio Costa, 1943, p. 157. Daqui para frente citado como Scht.. Sobre o livro e o modo de Schlichthorst circular e narrar a cidade do Rio de Janeiro de então, ver Marina Haizenreder Ertzogue, “‘O estrangeiro’: enredos imaginados sobre a solidão em Carl Schlichthorst, Carl Seidler e François Biard”, Nuevo Mundo Mundo Nuevos, revista evolutiva en la Web americanista, 2008.
[iv] “Rejeitando uma mediocridade, com a qual possui vínculos profundos, em favor de uma qualidade importada das metrópoles com as quais tem pouco o que ver, esse público exala uma passividade que é a própria negação da independência a que aspira. (…) A esterilidade do conforto intelectual e artístico que o filme estrangeiro prodiga faz da parcela de público que nos interessa uma aristocracia do nada, uma entidade em suma muito mais subdesenvolvida do que o cinema brasileiro que deserdou.” Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 101.
[v] Podemos observar, na crítica, a pletora da variação brasileira dos valores universalizantes, sem lastro social ou dimensão histórica, típicos de uma elite que os dispensou sempre: “Sonho de verão de um burguês recalcado, o seu romance é intrínseca, intimamente, fruto do idealismo burguês que caracterizou o nosso século até a presente guerra, – com o seu cortejo de tabus: crença na supremacia do Espírito, subordinação a ele das coisas contingentes, redenção moral pela Arte, predominância das elites cultas. (…) O drama do livro, e a sua força, vem dessa precedência terrível do umbigo sobre o mundo” (Antonio Candido, “O Romance da nostalgia burguesa”, em Brigada ligeira, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1945, p. 33).
[vi] Sérgio Buarque de Holanda, no capítulo “Novos tempos”, de Raízes do Brasil, op. cit., p. 179.
[vii] Em correspondência a Paulo Duarte, citada por Edu Teruki Otsuka em “Antonio Candido e Mário de Andrade (anotações preliminares)”, Revista Scripta, PUC Minas, v. 23, n. 49, 2020.
[viii] Tristes trópicos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 91.
[ix] Uma das chaves da força de Terra em transe está em investigar e dar a ver o vínculo profundo existente entre kitsch arcaizante e política reacionária e antissocial no Brasil. Ismail Xavier revelou este momento estético político de nosso conservadorismo reacionário em uma verdadeira dialética do kitsch brasileiro nas tensões existentes entre Terra e transe e O bandido da luz vermelha: “[Para Rogério Sganzerla] O kitsch é como que uma ‘segunda natureza’ presente na condição periférica; é traço do ser nacional que se observa com humor sem o simbolismo do Mal, próprio a Terra em transe e seu confronto de caminhos, valores. Para Glauber, o kitsch é a manifestação visível do sinistro; é o desfile das máscaras demoníacas do poder que se repõe como o Mal na história da América Latina, dado grotesco desconfortável cuja presença ostensiva causa estranhamento, mal-estar, não o riso. Ele traz as figuras do pesadelo da derrota, é produto da política, e não pode ser assimilado com aquele tom de autogozação próprio a Sganzerla quando aponta sua onipresença como fisionomia da ‘miséria brasileira’. Em O bandido, o estilo canhestro das expressões e gestos tem seu próprio elã, sua graça, antes de ser um sinal da incidência do mal, face visível da repressão ou do que é decadência precoce do oprimido. Há, portanto, uma dissolução do código moral da face visível do mundo que Glauber, ao dramatizar o kitsch, articulou a seu cerimonial da história, encruzilhada onde a nação oscila entre a redenção e a danação. O ‘não é mais possível’ de Paulo Martins, perante o jogo infernal das aparências, é expressão exasperada do desengano que, no entanto, quer ir mais fundo porque supõe poder encontrar algo de consistente. Busca, enfim, uma reposição da verdade e leva a tensão da derrota ao limite. Invertendo esse drama, resta o caminho da dessacralização radical, a perda de cerimônia diante do nacional como sistema, digamos, metafísico, que Glauber manteve”. Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento, cinema novo, tropicalismo, cinema marginal, 2ª edição, São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 191 e 192.
[x] Eric Williams, Capitalismo e escravidão, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 34.
[xi] Hans Magnus Enzensberger, em entrevista a F. de São Paulo, em 12/12/1999, sobre o Brasil de então, que é o de há muito, citado por Paulo Arantes em “A fratura brasileira no mundo”, em Zero à esquerda, São Paulo: Conrad, 2004, p. 30. O grifo em itálico é meu.
[xii] Ver a respeito do valor da consciência crítica da criança e da menina na literatura realista do século XIX brasileiro, Roberto Schwarz, Duas meninas, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
[xiii] Paralelamente a esta figura social do reacionarismo anti-intelectual brasileiro, bem comum, tínhamos também a oscilação de dependência e radicalidade ocasional, crítica e dever edificante da nação do intelectual moderno e modernizante. As duas águas da vida cindida, que não se encontram, quando convivem em má conciliação. Paulo Arantes chega a pensar o paradoxo contemporâneo de tal figura de crítica no Brasil, no tempo do Estado lulista: “Para ser historicamente mais exato, intelectual no Brasil está sempre empenhado nalguma construção nacional, imaginária ou real, porém em constante ameaça de interrupção e reversão colonial. A novidade tremenda é que pela primeira vez os da minha tribo, progressistas e marxisantes, inverteram o sinal deste empenho construtivo atávico, passando a cavalgar com o deslumbramento de todo arrivista a onda mundial das desintegrações que se sabe”. Em “Um intelectual destrutivo”, Extinção, São Paulo: Boitempo, 2007, p. 230.
[xiv] Sigmund Freud, Psicologia das massas e análise do eu e outros textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[xv] Scht., p. 32. Ou ainda: “Como sentia de modo diferente no hemisfério meridional! Ali a alma se alegrava com a paixão crescente e vivia nela, todos os pensamentos se dirigiam à sua satisfação e nenhuma consideração moral dificultava os meios para alcançar esse fim. Põe-se de lado toda delicadeza, calcam-se aos pés a justiça e a equidade, e até o ponto de honra se compreende de modo diverso do da Europa. O ódio e a vingança se enfeitam como o nome harmonioso de força de caráter, censuram-se os sentimentos mais brandos do coração, como a compaixão e a bondade, e ao perdão chama-se fraqueza” (p. 82).
[xvi] Nas palavras de outra crítica modernista ao mesmo fenômeno, de Antônio de Alcântara Machado, em Cavaquinho e saxofone (solos), 1926-1935, Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 362.
[xvii] E prossegue: “[Nos deparamos na cidade de São Paulo das pesquisas] com as duas dimensões, que articulam as experiências e contatos raciais seja ao tronco comum do regime escravocrata e senhorial, seja às transformações mais avançadas da ‘sociedade competitiva’ e da ‘civilização industrial no Brasil’. (…) O professor Roger Bastide e eu demos grande atenção aos dois focos (vistos e ligados como tendências que chegam a tornar-se concomitantes, em um processo contínuo – e não como polos extremos e estanques de um suposto gradiente sociocultural, situado fora e acima do tempo e do espaço, como é de gosto de uma sociologia descritiva que teve sua voga no Brasil.) (…) A intenção foi ligar a desintegração do sistema de castas e estamentos à formação e à expansão do sistema de classes, para descobrir como variáveis independentes, constituídas por fatores psicossociais ou socioculturais baseados na elaboração histórica da ‘raça’ ou da ‘cor’, poderiam ser e foram realmente recalibrados estrutural e dinamicamente.” Florestan Fernandes, O negro no mundo dos brancos, (1972), São Paulo: Global, 2013, edição eletrônica. A formulação de Florestan é apenas uma desta estrutura lógica do horizonte formativo do país como ordem de desenvolvimento permanente, envolvendo sempre a crítica histórica do tempo original negativo da nação, o espaço colonial escravista, e seu modo de produção e reprodução expandido: “O Brasil de hoje, apesar de tudo de novo e propriamente contemporâneo que apresenta – inclusive estas suas formas institucionais modernas, mas ainda tão rudimentares quando vistas em profundidade – ainda se acha intimamente entrelaçado com seu passado. Daí o grande papel e função do historiador brasileiros, que muito mais ainda que seus colegas de outros lugares onde já se romperam mais radicalmente os laços com o passado – na medida bem entendido em que este rompimento é possível – lida com dados essenciais e imprescindíveis para o conhecimento e interpretação do presente. Historiografia de um lado, e doutro, Economia, Sociologia e Ciência Social em geral, podemos dizer que quase se confundem ou se devem confundir no Brasil. Apenas se distinguem nos métodos de pesquisa e de elaboração científica – e mesmo assim com muitas restrições. (…) [Ao historiador cumpre] portanto acentuar mais a sua atenção para aquelas circunstâncias históricas que, passadas embora, se projetam mais vivamente, em seu desdobramento e processamento futuro, nas circunstâncias de nossos dias.” Caio Prado Júnior, História e desenvolvimento, São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 18. Ou ainda, “[Sergio Buarque de Holanda articulava outras duas ideias em Raízes do Brasil] Uma, o perigo de persistência naqueles dias do tipo de autoritarismo denunciado em nossa evolução histórica. Autoritarismo que assegurava a sobrevivência de classes dominantes em declínio, mas tenazmente agarradas ao poder e procurando transferir a sua substância para as formas novas que este assumia. A outra ideia se refere à única solução que Sérgio considerou certa: o advento das camadas populares à liderança.” Antonio Candido, “Sérgio em Berlim e depois”, em Vários escritos, op. cit., p. 332.
[xviii] Uma percepção e problematização já “tradicional” de nosso campo crítico, de uma história que por vezes parece andar em círculos, ao menos desde de Caio Prado Júnior. Por exemplo: “(…) Não se pode dizer que o cinismo seja uma ideia nova no Brasil. Para se ter noção de nossa espantosa atualidade no capítulo, bastaria lembrar a luminosa franqueza com que nossos pais fundadores advogavam a causa ultramoderna do liberal-escravismo. Enquanto na metrópole um espesso véu vitoriano ainda recobria o interesse nu e cru do pagamento em dinheiro, numa longínqua sociedade colonial a exploração prosperava a céu aberto, direta e seca. Na metrópole, todos faziam, porém a rigor não sabiam de nada, ao passo que na periferia todos sabiam muito bem o que estavam fazendo. Só fomos alcançados nessa corrida do cinismo moderno quando o colapso anunciado da civilização burguesa madrugou na desenvoltura com que as novas elites imperialistas iam rifando velhas salvaguardas ideológicas (justiça, igualdade etc.) sob pretexto (agora abertamente cínico) de que encobriam uma conspiração dos fracos para sabotar a vitória dos fortes. Deu no que deu, o triunfo sob tortura da cínica frieza burguesa nos campos de extermínio. (…) Os efeitos [hoje no Brasil] deste sinistro vaudeville ideológico (modernismo econômico no topo, sociedade no ralo, escarnecida como bobagem metafísica) se encontram, mais uma vez, desigualmente distribuídos entre centro e periferia. Assim, a mesma máquina de guerra que se encarniça contra a excepcionalidade europeia, sente-se em casa no Brasil. Não é para menos: nascemos como entreposto comercial e estamos acabando como mercado emergente – eufemismo para circuito auxiliar de valorização patrimonial dos capitais que rodam o mundo. Como a força de trabalho escrava era contabilizada como um bem de produção, com direito a provisões para manutenção e amortização, não será difícil avaliar a magnitude do conforto moral e científico que o atual jargão da autenticidade econômica rende à boa consciência cínica dos herdeiros das segregações coloniais de sempre. Hoje, como ontem, a ostentação da motivação econômica das condutas continua chique a valer, como diria o saudoso Damaso Salcede.” Paulo Eduardo Arantes, “Eles sabem o que fazem”, Zero à esquerda, São Paulo: Conrad, 2004, pp. 109 e 111. Apenas recordando, Damaso Salcede era personagem secundário de Os maias de Eça de Queirós, aburguesado, pulha e ciente dos próprios privilégios.
[xix] Roberto Shwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, em O pai de família e outros ensaios, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 71 e 73.
[xx] Ou, esta verdadeira potência local do Capital, que desconhece democracia, vista do ponto de vista do mundo do Capital: “Houve de fato um tempo em que as idas e vindas da luta de classes arrancavam, na forma de tréguas mais ou menos duradouras, instituições que não brotariam por geração espontânea no terreno adverso de uma sociedade antagônica: sindicatos, sufrágio universal, legislação do trabalho, seguridade social, etc. Como era de se prever tais conquistas provaram não ser nem cumulativas nem irreversíveis, as que sobrevivem continuam a se esvaziar. (…) A luta simplesmente mudou de patamar. Onde antes parecia haver composição de interesses a luta política assumia a forma de uma barganha, a atual ditadura da escassez parece estar imprimindo à luta política a dinâmica da guerra – imposta aliás pelo próprio campo inimigo, quando iniciou o desmanche do arranjo anterior, alegando que, num mundo globalizado de empresas soberanas (como nos tempos coloniais em que as grandes empresas comerciais dispunham de forças armadas privativas e controlavam territórios) o novo parâmetro passa a ser a guerra econômica total.” Paulo Arantes, “Bem-vindos ao deserto brasileiro do real”, em Extinção, op. cit., p. 277.
[xxi] Ver a respeito Eduardo Barros Mariutti, “Rosa Luxemburgo: imperialismo, sobreacumulação e crise do capitalismo”, Revista Crítica Marxista, n. 40, 2015.
[xxii] A força da desintegração social de agora, todavia, é reunida novamente pela integração geral na mercadoria como imagem, do mundo como instagram, facebook e tik tok, meios de comunicação e práticas de vida. O espetáculo como vida, subjetivando a todos, reencontra nossa estupidez antimoderna de fundo como projeto.
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