Michelle Bolsonaro de joelhos sobre a grama: a estética de Deus e do Diabo
O exorcismo realizado no Palácio do Alvorada será apenas o primeiro passo para continuarmos propondo um projeto de civilização
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Felizmente estamos nos despedindo da família mais maquiavélica – para dizer o mínimo – que já habitou o Palácio da Alvorada.
A cena da então primeira-dama de joelhos sobre a grama do Alvorada foi tão simbólica quanto devidamente bem explorada por jornalistas e artistas. De joelhos em cima da grama... Houve, inclusive, um minuto de silêncio para velar os defuntos. Que ato-falho coletivo! Freud deve estar gargalhando. Na Idade Média, uma das punições aos condenados pela inquisição consistia em assistirem à própria missa de corpo presente ANTES de serem queimados na fogueira.
Alguma semelhança ao que ocorreu?
Nossa luta concreta, na verdade, está apenas começando. O exorcismo realizado no Palácio do Alvorada será apenas o primeiro passo para continuarmos propondo um projeto de civilização baseado no Estado Democrático de Direito, onde a ideia de OPRESSÃO cede lugar à percepção de INCLUSÃO. Essa dicotomia de projetos de criação comunitária parece nunca ter sido, na história do Brasil, tão evidente.
Por isso, a partir de agora, e continuando em 2023, seguirei publicando aqui meus estudos sobre cultura brasileira, normose, antropologia cultural, filosofia e demais ferramentas para entender a complexidade do Brasil, principalmente depois de este país ter experienciado a nefasta necropolítica do nazifascismo travestida de “bolsonarismo”. A extrema direita, em todo o mundo, tem tentado encontrar rótulos menos indigestos, associada a nomes contemporâneos, para esconder que na verdade reproduz exatamente o nazifascismo e seu projeto coletivo de OPRESSÃO EXTREMISTA e SEGREGACIONISTA, no lugar da INCLUSÃO que o verdadeiro projeto civilizatório exige.
A figura apelativa da então primeira-dama de joelhos (sobre a grama... com a piada pronta que isso significa) retoma a questão de “luta do bem contra o mal” que os nazifascismos ao longo da história evocaram.
Nélida Piñon, que partiu esta semana, observa o Brasil assim em seu A república dos sonhos: “Por isso sobrando nas esquinas brasileiras milhões de olhos tristes e almas acabrunhadas, a despeito do uso dos pandeiros e dos tambores africanos. […] O Brasil vem mentindo para si mesmo a cada hora”.
A tratativa segundo a qual o que está ocorrendo seria, no fundo, uma luta do “bem” contra o “mal” só pode, de fato, concretizar-se com bases moralistas, tentando frear com todas as forças as agendas progressistas de costumes e as emancipações e empoderamentos culturais. Isso porque essas agendas encarnariam a manifestação do “mal”, verdadeiros “espíritos obsessores”, e a única forma de lidar com eles seria sufocar as suas expressões sem qualquer tentativa de diálogo.
O carnaval, nesse ponto, festa tão tipicamente brasileira quanto o próprio catolicismo devocional, num dos outros muitos paradoxos inevitáveis para se compreender a complexidade do Brasil, seria uma das ameaças maiores a esses projetos de “governos” sebastianistas e mercantis. É como se existisse, num ângulo, uma ESTÉTICA DE DEUS; em outro ângulo, uma ESTÉTICA DO DIABO; e em um terceiro ângulo (incluído), uma ESTÉTICA DE DEUS & DO DIABO. Complexio oppositorum, como diriam os teólogos medievais...
Na minha formação, penso que a de filólogo frequentemente se manifeste. Por isso não me satisfaço com “conceitos”, de pathemata em Aristóteles a lektón nos estoicos (falarei de ambos), de forma passiva. As polissemias e as fronteiras tênues precisam ser averiguadas, como o fiz até agora.
Distingo, assim, moralismo de moralidade, não apenas pelos sufixos que discriminam o mesmo radical “moral” (-ismo e -dade), que, com efeito, não são pouco sintomáticos. Haja vista que o próprio substantivo “homossexualismo” acusa preconceito intrínseco, ainda que inconsciente, ao sujeito da enunciação que o profere, diferentemente do que ocorre na análise do enunciado ou do discurso de quem expressa o substantivo “homossexualidade”.
Assim, a distinção que faço entre “moralismo” e “moralidade”, mesmo que à guisa de reflexão, seria a mesma que há nos personagens Jean Valjean e o inspetor Javert de Os miseráveis, de Victor Hugo. Ao passo que a moral de Javert é dogmaticamente e artificialmente baseada numa busca vertiginosa pelo que é “certo” ou “errado”, “bem“ ou “mal”, de forma maniqueísta e platônica, a moral de Valjean se baseia numa análise fenomenológica e concreta do bem-estar empírico dos outros seres humanos, de forma aristotélica, num verdadeiro exercício de alteridade e empatia.
O MORALISMO de Javert, nesse sentido hugoliano, precisa de aparatos abstratos, livros de conduta, cartilhas transcendentalistas, códigos e leis impessoais e inaplicáveis, dogmas, coerções, coações, contorcionismos e normoses sem sentido; é uma moral que persegue e atropela o ser humano em nome de “algo maior” que é muito pouco distinguível ou até cognoscível. Por outro lado, a MORALIDADE de Valjean, no mesmo contexto, se guia a partir de mapas concretos de humanidade e atualizações constantes de normas e normalidades, repudiando as normoses, tendo como finalidade o que houver de humano, que muitas vezes é simbólico e cultural, por sobre a literalidade dos códigos abstratos e totalizantes, que muitas vezes são normóticos.
O moralismo é explicitamente a busca abstrata e “absoluta”, muito pouco demarcada e sem fronteiras nítidas, pela manutenção da velha suposta luta do “certo” contra o “errado”, do “bem” contra o “mal”. Figura do alto escalão do governo Bolsonaro, que já mencionei em sua luta (fálica e amante da masculinidade) pelo armamentismo da população, explicita essa visão do moralismo em detrimento da moralidade: “A integridade, seja de uma pessoa ou de um povo, se destrói com a inserção cultural e psicológica do relativismo, enquanto se ataca a bússola moral que nos diz o que é certo e o que é errado”, dispara. E se arrisca desajeitadamente à crítica intelectual, artística e política: “Essa foi a essência da Semana de 22 e ainda é a essência dos Partidos Comunistas”, arremata à maneira de Quincas Borba. Para quem quiser, segue a fonte: In: <https://www.brasildefato.com.br/2021/06/24/responsavel-por-expurgo-de-livros-chama-de-rato-quem-critica-a-cloroquina>
Tratarei de aspectos da Semana de 22 em outros momentos. Sabemos que “comunista” é o termo-coringa com que os bolsolavistas se referem a qualquer um que discorde da mais ínfima parcela de seus postulados totalizantes.
A propósito da moral, Daniel Piza concorda implicitamente com minha visão, que abaixo explicitarei, de que Machado vai muito além dos rótulos de “realista-naturalista”, justamente porque transpassa, sem deixar de lado o aprofundamento quando necessário, essa questão. Lembremos que o próprio Aires, personagem que apresenta traços autobiográficos e memorialistas de Machado de Assis, dirá, passeando pelo “tédio à controvérsia” de seu caráter e profissão diplomáticos: “E andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismos!”
Ao falar do episódio da severa crítica de Machado de Assis à primeira publicação de O primo Basílio, de Eça de Queirós, em 1878, Piza tece análise sobre a carta de resposta que Eça escreveu da Inglaterra para Machado com a seguinte ponderação:
“A carta, além de comprovar que os pseudônimos não eram muito eficazes em proteger a identidade dos autores, é uma demonstração de elegância. Eça reconhece os defeitos de seu romance, mas gostaria de discutir com Machado a importância do realismo para o “progresso moral da civilização”. Do ponto de vista futuro, porém, o problema do seu livro, como do naturalismo em geral, era o excesso de moral, não a falta dela.” (PIZA, 2005, p. 184. Sublinhei)
Mas e o carnaval?
O carnaval é um epifenômeno que exatamente põe uma lupa sobre as questões morais do povo, confrontando moralidade e moralismo e indo para além das camadas da cebola de Nietzsche.
Falarei disso na próxima coluna.
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