Meus 50 anos com Dan Ellsberg

O homem que mudou os EUA

Daniel Ellsberg numa conferência de imprensa na cidade de Nova York em 1972.
Daniel Ellsberg numa conferência de imprensa na cidade de Nova York em 1972. (Foto: Reprodução)


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Artigo de Seymour Hersh originalmente publicado no Substack do autor em 8/3/23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

Eu penso que seja melhor que eu comece pelo fim. Em 1º de março, eu e uma dúzia de amigos de Dan Ellsberg e companheiros ativistas recebemos uma nota de duas páginas registrando que ele foi diagnosticado com um câncer incurável no pâncreas e que ele estava recusando-se a receber quimioterapia, porque o prognóstico, mesmo com quimioterapia, é terrível.

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Em novembro último, num feriado de Ação de Graças passado em família, em Berkeley, eu dirigi alguns quilômetros para visitar o Dan na sua casa, na vizinha localidade de Kensington, que ele compartilha há décadas com a sua esposa Patrícia. A minha intenção era de rir com ele durante algumas horas sobre a nossa obsessão mútua — o Vietname. Mais de cinquenta anos depois, ele ainda estava ponderando sobre a guerra como um todo, e eu ainda estava tentando entender o massacre de My Lai. Cheguei às 10 da manhã e nós conversamos sem pausa — sem água, sem café, sem biscoitos — até que a minha esposa veio me buscar e para dar um ‘Oi’ e visitar Dan e Patrícia. Ela foi embora e eu fiquei alguns minutos mais com o Dan, porque ele queria me mostrar a sua biblioteca de documentos que poderiam ter resultado numa longa sentença de prisão para ele. Em algum momento, por volta das 6 da tarde — estava escurecendo — Dan me acompanhou até o meu carro e nós continuamos a conversar sobre a guerra e sobre o que sabia — oh, as coisas que ele sabia — até que eu disse ter que ir embora e liguei o carro. Aí, ele disse, como sempre dizia: “Você sabe que eu te amo, Sy”.

Então, esta é uma estória sobre uma tutela que começou no verão de 1972, quando Dan e eu nos conectamos pela primeira vez. Eu não me lembro quem chamou quem, mas eu estava então no New York Times e o Dan tinha alguma informação de dentro sobre horrores da Casa Branca que ele queria que eu fosse atrás — coisas que não haviam sido incluídas nos ‘Pentagon Papers’.

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Eu estava planejando escrever sobre a minha amizade com o Dan depois da sua passagem; mas, no fim de semana passado, meu filho mais moço me lembrou que ele ainda tinha um pouco dos materiais de truques mágicos que o Dan tinha lhe dado em meados dos anos de 1980, quando o Dan estava hospedado com a nossa família — como ele sempre fazia quando visitava Washington. “Por que não escrever sobre ele agora?”, ele perguntou. Por que não?

A primeira vez que eu soube da importância do Dan foi no verão de 1971, quando ele foi expulso [do Ministério da Defesa] por entregar os Pentagon Papers ao New York Times poucas semanas depois que o jornal começou a publicar uma série de estórias destruidoras sobre a desconexão entre o que nos contavam e aquilo que realmente estava ocorrendo. Estes papéis permanecem sendo até hoje a mais vital discussão sobre uma guerra vista por dentro. Mesmo após as revelações do New York Times, as suas sete mil páginas jamais seriam totalmente lidas.Eu estava trabalhando, então, para a revista New Yorker num projeto sobre o Vietname e soube que tinha sido o Dan quem tinha vazado, uma semana e pouco antes do nome dele aparecer em público. A sua expulsão era inevitável e, em 26 de junho, após ter se escondido em Cambridge (Massachussets), Dan entrou no escritório do Procurador Geral dos EUA em Boston — havia dezenas de jornalistas lhe aguardando — e teve uma breve conversa com os repórteres antes de se entregar por algo que todos esperavam, que seria o julgamento do século. Ele falou para a multidão que esperava que “a verdade nos libertará desta guerra”. E depois, quando ele galgou os degraus até o tribunal, um repórter lhe perguntou como ele se sentia sobre ir para a prisão. A resposta dele me chocou então e ainda me arrepia: “Você não iria para a prisão para acabar com esta guerra?”

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Fiz a minha parte em expor o massacre de My Lai e publicar um livro sobre isso em 1970. Eu estava, então, no processo de escrever um segundo livro sobre o acobertamento feito pelo Exército sobre a matança. “De jeito nenhum”, eu pensei comigo mesmo, “de jeito nenhum eu iria para a prisão — especialmente por contar uma verdade indesejada”. Acompanhei o subsequente julgamento de Ellsberg num tribunal federal em Los Angeles e até escrevi sobre os malfeitos dos bandidos da Casa Branca que invadiram o escritório do psicanalista de Ellsberg — a pedido do presidente Nixon. (O caso do governo foi arquivado depois que a extensão da espionagem contra Ellsberg ordenada pela Casa Branca se tornou pública.)

Foi no início do verão do ano da eleição de 1972, quando Ellsberg e eu fizemos contato um com o outro. Eu estava indo adiante sobre a guerra perdida no Vietname e os malfeitos da CIA para o Times. Uma vitória de Nixon parecia certa, apesar da odiada guerra continuar, devido a um tropeço após o outro na campanha do pré-candidato Democrata, o senador George McGovern. Dan tinha duas estórias que pensou que poderiam mudar a dinâmica das eleições de novembro.

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Gostei dele logo de cara. Ele era tão sincero, tão brilhante e belo quanto uma estrela de cinema, e tão repleto do tipo de informações internas sobre a Guerra no Vietname que poucos tinham. E tão disposto a compartilhá-las, sem preocupações sobre as consequências. Ele compreendeu que, sendo a fonte de informações e procedimentos altamente secretos, ele estava assumindo todos os riscos e que eu, como repórter, iria escrever as estórias que seriam aclamadas e não me colocariam em risco algum. Em algum ponto das nossas conversas, eu o levei para a minha casa para termos uma boa refeição. A campanha dele contra a Guerra no Vietname o estava literalmente consumindo e ele se entrosou imediatamente com a minha esposa e nossas duas crianças pequenas. Ele fazia truques mágicos, ele era maravilhoso no piano — Dan conseguia tocar os Beatles e Beethoven — e ele se conectou com todos nós. A nossa amizade estava lacrada — para sempre. Confesso que, já tarde naquela noite — nós dois éramos corujas da noite — ele e eu levamos o cão para caminhar e encontramos tempo para nos sentarmos num meio-fio em algum lugar e fumar alguns cigarros tailandeses. Eu preferi não perguntar como o Dan sempre conseguia ter um suprimento daqueles bagulhos vindos do sudeste da Ásia. Ele falou sobre todos os arquivos selados e trancafiados sobre a Guerra no Vietname dos quais ele conseguia se lembrar, com a sua memória fotográfica, em perfeitos detalhes.

No início dos anos de 1980, eu estava escrevendo um livro longo e muito crítico sobre os sórdidos dias de Henry Kissinger como conselheiro de segurança nacional de Nixon e Secretário de Estado, com um foco no Vietname. Em algum ponto, Dan passou mais de uma semana na nossa casa, levantando-se às 6 horas da manhã para ler as 2.300 páginas de manuscrito datilografado. Ele entendeu que eu não queria saber das suas análises e discordâncias com as minhas conclusões, mas somente erros factuais. Uma manhã, Dan me disse que eu havia lido erroneamente uma matéria de meados dos anos de 1960 no Washington Post sobre a guerra, de autoria de Joe Kraft, cuja coluna, na época, era daquelas que se devia ler. Argumentei e ele foi duro. Então, eu fui e carro até o meu escritório na cidade, mexi nas caixas de arquivos e encontrei aquela coluna. Dan se lembrou dos detalhes de uma coluna escrita vinte anos antes num jornal diário. A sua memória era amedrontadora.

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Havia dois abusos da Casa Branca que ele queria que eu expusesse antes da eleição presidencial do outono de 1972. Dan me contou que Nixon e Kissinger — para quem ele havia escrito um importante estudo político depois que ele foi nomeado como conselheiro de segurança nacional — estiveram fazendo escutas telefônicas dos seus ajudantes e de membros do gabinete. A segunda dica que Dan tinha para mim era que Kissinger havia dado ordens a alguns dos seus ajudantes para produzirem um plano para usar armas nucleares táticas no Vietname do Sul, caso estas fossem necessárias para acabar com a guerra nos termos dos EUA. Caso eu pudesse conseguir uma ou duas fontes que declarassem ‘on the record’ — a esta altura havia uma quantidade de antigos ajudantes de Kissinger que haviam pedido demissão silenciosamente devido à Guerra no Vietname — Dan disse que isto poderia levar os Democratas à presidência. Isto era um tiro no escuro, mas eu tentei tudo durante o verão para encontrar alguém que tivesse informações de primeira mão, as quais Dan não tinha, e que estivesse disponível para confirmar as informações do Dan — mesmo se fosse como pano de fundo. Obviamente, estava entendido que eu teria que contar a Abe Rosenthal, o editor-executivo do Times, quem era a minha fonte “off-the-record”.

Aquele foi um verão difícil para mim, porque havia uns poucos ex-ajudantes de Kissinger que facilmente confirmaram as informações de Dan, porém que não concordavam que eu revelasse os seus nomes ao Times. Em um dos casos, com um cara muito decente que tinha muitas esperanças de conseguir um cargo sênior no futuro governo, eu cheguei perto, ajudado pelo fato de que a sua esposa — eu sempre fazia estas visitas à noite — disse ao seu marido: “Oh, pelo amor de Deus, simplesmente conte a ele a verdade”. Ela repetiu isso seguidas vezes. Fale-se de experiências dolorosas. Não é necessário dizer que o casamento deles não durou muito tempo. A raiva da esposa de que a verdade não estava sendo dita me ajudou a compreender a obsessão de Dan com uma guerra cujos piores elementos simplesmente não eram conhecidos do público. Eu não consegui fonte alguma ‘on the record’ a tempo da eleição, mas, nos anos subsequentes, eu consegui as estórias.

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Havia uma estória que Dan me contou ao final de 1993 que parecia capturar a vida secreta em uma guerra importante. Ele havia ido para lá e para cá em missões curtas ao Vietname do Sul enquanto estava trabalhando como funcionário sênior do Departamento de Estado, mas em meados de 1965 ele agarrou uma chance de juntar-se a uma equipe em Saigon que estava comprometida com a pacificação — ganhar corações e mentes — dos aldeãos do Sul. O seu líder era Ed Lansdale, um herói da contra-insurgência da CIA nos seus esforços iniciais de encaminhar insurgentes comunistas nas Filipinas.

Eu sempre fiz boas anotações durante os meus encontros com Dan, não porque eu planejasse escrever sobre ele em algum momento — eu sabia que ele escreveria as suas memórias — mas porque eu estava tendo um seminário sobre como as coisas realmente funcionavam por dentro. Leia as palavras dele e você poderá julgar como a vida podia ser complicada no topo.

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“Em 1965”, Dan começou, “eu havia feito um estudo sobre a crise dos mísseis em Cuba e eu tinha quatro autorizações de segurança acima de ultra-secreto, incluindo autorizações sobre os U-2 [aviões-espiões]” e autorizações da Agência de Segurança Nacional [NSA]. Ele também entrevistou Bobby Kennedy duas vezes sobre seu papel na crise. As autorizações de Ellsberg eram tão sacrossantas que ele deveria se registrar em um escritório especial ao chegar em Saigon e a partir de então ele não poderia viajar fora de Saigon sem um carro blindado ou em um avião bimotor ou melhor. Ele contornou o sistema ao não se dignar a registrar, uma raridade em um mundo de guerra onde as autorizações ultra-secretas eram vistas por muitos como evidência de machismo.

E, assim, Ellsberg trabalhou em Saigon com Lansdale. “Durante um ano e meio”, Ellsberg contou, “eu passava quase todas as noites a escutar Lansdale falar sobre as suas operações clandestinas nas Filipinas e, antes disso, no Vietname do Norte nos anos de 1950. A esta altura, eu estava trabalhando com segredos durante anos e eu pensava saber que tipo de segredos podiam ser omitidos de quem. Eu também pensava que Ed e eu tínhamos um bom conhecimento de trabalho um com o outro e com os nossos segredos. Cada item de informação era catalogado nas nossas mentes e você sabia para quem você diria e o quê você diria. Em tudo isso, Jack Kennedy foi mencionado e Bobby também, mas não havia menção alguma feita por Lansdale sobre Cuba e nenhuma menção de que Lansdale jamais tivesse trabalhado para Jack e Bobby Kennedy”.

Uma década mais tarde, depois que ambos os irmãos Kennedy haviam sido assassinados, eu escrevi uma série para o New York Times sobre a espionagem da CIA sobre centenas da milhares de manifestantes estadunidenses contra a guerra no Vietname, membros do Congresso e repórteres — tudo isso em violação da carta da agência de 1947 que proíbe qualquer atividade doméstica. Isso levou ao estabelecimento do Comitê Church do Senado em 1975. Esta foi a mais extensiva investigação parlamentar sobre as atividades da CIA desde o início da agência. O comitê expôs as atividades de assassinatos da CIA, das operações executadas sob ordens que claramente vinham de Jack e Bobby Kennedy, apesar de que nenhuma ligação direta tenha sido publicada no relatório final do comitê. Mas o comitê reportou extensivamente sobre um grupo secreto autorizado por Jack Kennedy e operado pelo seu irmão Bobby para criar opções para aterrorizar Cuba e assassinar Fidel Castro. A operação clandestina tinha o codinome de ‘Mongoose’ [Mangusto, um animal carnívoro]. E o comitê reportou mais tarde, que ela foi liderada por Ed Lansdale em 1961 e 1962.

Ellsberg me contou que ele ficou estupefato. “Quando eu soube sobre Lansdale e Mongoose”, ele disse, “isto me revelou uma capacidade de manter segredos num nível interno que iam muito além do que eu imaginava. Isto foi como descobrir o seu vizinho do lado e seu companheiro de pescarias no fim de semana” — note-se que Ellsberg jamais pescou na sua vida — “e um amigo próximo e querido que, quando ele morreu, revelou-se que seria o Secretário de Estado”.

“Isso foi surpreendente, porque Mongoose era exatamente o tipo de operação sobre a qual eu esperava ouvir de Lansdale. Ele contava sobre operações clandestinas o tempo todo. Penso que o presidente Kennedy disse a Ed para ‘manter a sua fodida boca fechada’.

“Quando você esteve num sistema com um nível tão alto quanto possível de segredo, você compreende quais são as coisas sobre as quais se fala. E você tem uma sensação dobre o que deve ser resguardado. Eu estava ouvindo tudo sobre outras operações clandestinas, mas alguém — não Lansdale — havia posto uma tampa sobre Mongoose”.

Após o assassinato de Jack Kennedy, Ellsberg teorizou que “qualquer investigação a fundo sobre a sua morte teria levado a muitas operações clandestinas”. O ponto que ele fez foi que não havia evidências que a Comissão Warren, que foi montada para investigar o assassinato, o tivesse feito.

Em todas as muitas horas de tutoria de Dan, como compreendi anos depois, ele compreendeu e empatizou com a minha ansiedade — até mesmo com a minha necessidade — de saber tudo que eu pudesse sobre o seu mundo de segredos e mentiras, de coisas ditas em voz alta e escondidas em documentos de alto segredo. E assim, ele se tornou o meu tutor e me ensinou quando e como olhar nos cantos escondidos da comunidade de inteligência dos EUA.

Em retorno, eu lhe dei a minha amizade e lhe dei as boas-vindas à minha família. Ele amava ter longas conversas com a minha esposa, uma médica, de ensinar truques mágicos para as crianças e de tocar canções de Billy Joel e coisas similares no piano para eles. Todos sentimos desde o início que ele tinha a necessidade de ser uma criança inocente também, mesmo que servisse como uma breve pausa na sua constante ansiedade e na culpa que ele carregava na sua alma sobre o que seus EUA haviam feito ao povo vietnamita.

Dan me mostrou um amor de quem está dentro, assim como ele e Patricia irradiavam amor e aceitação aos seus muitos amigos e admiradores que, como eu, jamais esqueceremos as lições que ele nos ensinou e aquilo que aprendemos.

Não há maneira que eu aguarde que ele vá embora sem dizer o que quero dizer agora mesmo.

Para assistir Ellsberg falando numa conferência de imprensa na véspera do Ano Novo de 1971, clique aqui. Para assistir o documentário de 2009 sobre Ellsberg — ‘The Most Dangerous Man in America’ [O Homem Mais Perigoso dos EUA] — clique aqui.

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