Meu amigo Babenco: “Eu acho que não vou filmar mais”

Colunista do 247 Alex Solnik lembra do encontro que teve com o cineasta Hector Babenco, que faleceu nesta quinta-feira 14; "Em outubro do ano passado fui de novo ao seu refúgio. Mais uma vez elogiei aquela casa de cinema. "O projeto é do Isay Wainfeld", disse ele "que pude bancar com a grana que ganhei com Carandiru". Ficamos a sós naquela sala imensa, decorada por obras fartamente assinadas", recorda; "Ele estava se preparando para lançar 'Meu amigo hindu'", conta Solnik, sobre o último filme do cineasta

Colunista do 247 Alex Solnik lembra do encontro que teve com o cineasta Hector Babenco, que faleceu nesta quinta-feira 14; "Em outubro do ano passado fui de novo ao seu refúgio. Mais uma vez elogiei aquela casa de cinema. "O projeto é do Isay Wainfeld", disse ele "que pude bancar com a grana que ganhei com Carandiru". Ficamos a sós naquela sala imensa, decorada por obras fartamente assinadas", recorda; "Ele estava se preparando para lançar 'Meu amigo hindu'", conta Solnik, sobre o último filme do cineasta
Colunista do 247 Alex Solnik lembra do encontro que teve com o cineasta Hector Babenco, que faleceu nesta quinta-feira 14; "Em outubro do ano passado fui de novo ao seu refúgio. Mais uma vez elogiei aquela casa de cinema. "O projeto é do Isay Wainfeld", disse ele "que pude bancar com a grana que ganhei com Carandiru". Ficamos a sós naquela sala imensa, decorada por obras fartamente assinadas", recorda; "Ele estava se preparando para lançar 'Meu amigo hindu'", conta Solnik, sobre o último filme do cineasta (Foto: Alex Solnik)


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Eu tive um grande amigo, no colégio, que era muito amigo de Hector Babenco. Um imigrante, como eu. Ele polonês, eu ucraniano. Ambos aspirantes a poetas e a cineastas.

A gente era moleque e esse meu amigo me falava de alguém um pouco mais velho que nós, mas muito mais adulto. Outro imigrante, mas argentino.

Ele se virava sozinho, morava sozinho na rua Pamplona (nunca fui ao seu apê, mas gravei o endereço) e fazia filmes – nosso grande sonho. Filmes de propaganda, mas eram filmes, e nós, que babávamos por Glauber, nem isso conseguíamos.

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Tivemos a péssima ideia de abrir uma produtora, numa casinha de vila do Bexiga, e oferecer nossos serviços às agências de propaganda, no que fracassamos rotundamente.

Babenco, no entanto, foi em frente. Com a cara e a coragem, não se importando se eram filmes comerciais ou "de arte", como nós, os pretensiosos, achou um filão, encheu cinemas, ganhou prêmios, chegou ao Oscar!

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A grande amizade com meu grande amigo durou até ele se mudar para o Rio, depois de uma grande decepção amorosa. Do Babenco eu só ouvia falar nas críticas, nas colunas sociais.

Nos anos 90 a revista "Interview" pediu que eu o entrevistasse. Já era um nome consagrado, estava em todas as listas dos dez mais. Me deu a entrevista, mas dias depois telefonou, desesperado, pedindo que eu retirasse uma frase: "O Palácio dos Bandeirantes parece um bolo defecado".

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Não me lembro se não deu tempo ou se o editor-chefe não deixou. Só sei que a frase foi publicada e ele deve ter ficado puto comigo: não queria ficar mal com o governo de São Paulo.

Ele não me procurou para se queixar, nem eu expliquei nada. Mas senti que nunca mais falaria comigo.

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Somente muitos anos depois, talvez por volta de 2010, uma amiga que tinha uma revista chamada "Sax" me convidou para fazer um frila.

Ela tinha encontrado, na piscina do seu prédio, Hector Babenco e – conversa vai, conversa vem – decidiu fazer uma baita de uma entrevista com ele que iria ocupar quase toda a edição.

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Marcamos na casa dele, pertinho do prédio dela. Cheguei antes. Babenco me recebeu carinhosamente, não se lembrou do episódio do bolo defecado, nem eu toquei no assunto. Falamos, sim, do nosso amigo comum, de quem ele gostava muito e eu também.

Ficamos íntimos em dois minutos. Eu andava naquele tempo com uma trouxinha de maconha e o papel smoking. Enrolei um cigarro na cozinha, ele disse que não usava fazia tempo, mas aceitou dar umas tragadas.

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Quando a minha amiga chegou estávamos no meio da fumaça, falando do passado – menos do bolo defecado. Ela não quis participar, mas não nos censurou.

Naquela noite, talvez embriagado pela canabis, Babenco falou de sua vida entediante no balneário de Mar del Plata, onde teve duas paixões: o cinema que frequentava todo dia e uma moça mais velha que ele com quem fez um pacto de morte, que só ele cumpriu – mas conseguiu sobreviver. Para fugir dessa noiva-cadáver e do tédio ele deu tchau à família de classe média baixa e se mandou para São Paulo, levando a malinha e o endereço da irmã de sua mãe.

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Antes de fazer cinema, contou, foi camelô e vendeu lugares em cemitério, até que um dia viu da janela do ônibus algo que o impressionou.

Resolveu descer. Entrou no prédio do Masp guiado pela intuição. Com aquela sem cerimônia dos vinte anos pediu para falar com o diretor. E o mais incrível: Pietro Maria Bardi o atendeu.

"O que você quer"?, perguntou ele. "Gostei muito desse prédio. Quero fazer um documentário sobre esse museu", disse Babenco, sem pestanejar. "Você tem alguma experiência"? "Não, mas já vi muitos filmes, sou vidrado em cinema".

Bardi gostou dele. Nem perguntou como se chamava. Chamou uma assessora a quem recomendou que ajudasse o rapaz no projeto. "Essa moça", contou Babenco, "virou minha primeira mulher: Raquel Arnaud".

Hoje, estupefato, li num blog que Raquel Arnaud, que não era mais sua mulher, o levou ao hospital onde ele teve uma parada cardíaca. Me lembrei, então, do nosso último encontro.

Em outubro do ano passado fui de novo ao seu refúgio. Mais uma vez elogiei aquela casa de cinema. "O projeto é do Isay Wainfeld", disse ele "que pude bancar com a grana que ganhei com Carandiru". Ficamos a sós naquela sala imensa, decorada por obras fartamente assinadas. Para não perdermos o costume, apertamos um. Mas ainda não tive coragem de falar do bolo defecado.

Ele estava se preparando para lançar "Meu amigo hindu", um dos projetos que cogitava no dia em que falou para "Sax". Dessa vez falaria para "247", uma entrevista que deveria ser mezzo cultura e mezzo política (aqui).

Logo de cara, assim que liguei o gravador, ele fez uma previsão trágica, mas certeira:

"Este filme que eu fiz é o último que eu faço no Brasil e estou te dando isso de primeira mão. Eu acho que não vou filmar mais"!

Queixou-se da Ancine a valer:

"Aos poucos fui vendo que eles estavam organizando tudo, editais lançados pela televisão, pela internet, enfim...transformaram o cinema brasileiro em duas grandes correntes. Uma corrente onde se produz cinema de baixo custo e de baixo calão, feito para um retorno comercial rápido apoiado em alguns benefícios e leis que foram criados para quem dá certo e outra metade está ao léu dos famosos programas, editais, então, você tem que se inscrever nos editais e esperar saber se você vai ser convocado ou não, milhares de projetos são analisados por pessoas que não têm nenhuma informação sobre cinema"...

Nem ele nem eu sabíamos, mas suas palavras soavam como necrológio:

"O cinema no Brasil para mim, estou com 69 anos, deu o que deu. Eu sei que poderia ter feito mais do que eu fiz, remei constantemente contra um amigo às vezes, inimigo outras vezes chamado Brasil e agora estou fazendo meu filme de livre e espontânea vontade, com recursos próprios e de alguns parceiros e praticamente ignorando recursos públicos"...

Definiu-se ideologicamente como anarquista:

"Aos 17 anos, quando a minha cabeça começou a ser feita dei um pontapé na bunda do Partido Comunista, onde frequentei muitas reuniões e trabalhava na livraria do diretor do Partido Comunista da minha cidade"...

E justificou:

"Achei que aquilo tudo, que trabalhava com a possibilidade de uma revolução futura não era algo que me interessasse e devo isso aos escritores beatniks, que me ensinaram, de alguma forma, o prazer de viver uma aventura existencial e isso me fez abandonar o Partido Comunista, eu não queria ser um monte de gente, eu queria ser eu. E fugi, cara! Sempre fui um anarquista, não me omito, você sabe que minhas opiniões eu falo, eu não me omito em falar nada, não sou um ser apolítico, sou um ateu convicto".

"Eu não sou nem argentino nem brasileiro, eu sou uma coisa meio híbrida e isso não se adequa, quando falo...E nem judeu... quando eu falo com colegas meus de cinema brasileiro sinto que eles não entendem o que eu falo. E eles devem sentir a mesma coisa com as coisas que eles falam".

"Eu posso trabalhar em qualquer lugar do mundo. Eu tenho nome. Em qualquer lugar do mundo eu sou um profissional, estou na lista dos vinte ou trinta melhores diretores, não na lista dos dez, mas já estive".

Falou da doença, tema de seu último filme:

"Fiquei doente com 38...fiz o transplante com 49...Eu fui muito machucado. Muito machucado. Parei de me perguntar por que. Porque não há resposta".

"Eu me salvei graças à medicina americana, não foi a homeopatia que me tirou do câncer, não foi pilulinha debaixo da língua, foi a medicina, a grande medicina, que são os filhos da puta que só pensam em ganhar dinheiro, porém eles têm pago o preço de salvar o freguês para pegar o dinheiro"!

"Estou sarado aos 70%... então 30% eu tenho que estar administrando ainda...diabetes... alimentação... tem outras colateralidades...outros problemas, enfim, que todo homem de 70 anos começa a ter... não é um privilégio meu... talvez no meu caso seja um pouco mais agudo pelo fato de eu vir com o corpo mais castigado, mais machucado, mais exposto a centenas de noites em hospitais, que isso é uma ferrugem na tua alma".

Relutou muito em falar da situação política em ebulição:

"Desde o cabelo tingido do Renan até as contas na Suíça do Cunha, é tudo a mesma história. São pessoas desqualificadas para respeitar e fazer o país crescer".

"Desde que estou no Brasil, 40 e cacetadas de anos, o único momento que me senti respeitado como cidadão foi no governo Fernando Henrique".

Convidou-me à mesa para compartilhar uma sopa de lentilhas:

"Eu sou diabético. Eu não posso me dar ao luxo de ficar sem comer nada. Vou tomar uma sopinha para ficar com a pança cheia".

Deixei o gravador ligado enquanto ele enchia a pança e então desabafou:

"Eu votei no PT. Nas últimas eleições eu votei no PT. Votei mesmo. Filhos da puta! Que ódio eu tenho daquele Rui Falcão! Daqueles ideólogos filhos da puta! Enfim... fodeu o país"!

Tentei puxar conversa sobre o filme recém-terminado. Perguntei se foi simples fazê-lo. Ele desconversou:

"Não tem nada simples. Você conhece alguma coisa mais complicada do que trepar? Conseguir que o outro fique de perna aberta pra você? Uma vez uma amiga me disse: você acha que é fácil ficar de perna aberta, numa posição tão ingrata, com as pernas levantadas no ar e ter um cara bufando em cima de você querendo te enfiar um negócio"?

E então ele propôs: "Quero fazer alguma coisa com você. Vamos fazer alguma coisa juntos um dia"!

Depois da sopa, levei-o no meu carro para vermos a estreia de uma peça escrita por seu amigo Dráuzio Varela. Não o trouxe de volta, pedi que tomasse um táxi.

Mandou convite para a primeira exibição de "Meu amigo hindu". Eu fui, mas saí no meio para buscar meu filho, para salvá-lo de uma tempestade que desabou sobre São Paulo.

Alguns dias depois me ligou, queria que eu palpitasse sobre o texto do release do filme, que seria lançado nos cinemas em março.

"Você já tem um editor de arte"?, perguntei.

"Agora você me deixou preocupado", disse. "Depois te ligo".

Não ligou. Eu liguei uns dias mais tarde, deixei recado, ele não retornou.

Nunca mais falamos. Não deu tempo de fazermos alguma coisa juntos.

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