Mediocridade vicejante

"Me refiro à criação de uma ‘Frente Parlamentar contra o aborto'. O tema deveria ser planejamento familiar e prevenção, e não um debate retrogrado"

(Foto: ABr)


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Fazia algum tempo que eu não caminhava pelo centro de Campinas. Outro dia passando pela avenida Francisco Glicério parei na altura do número 1269, edifício Diogo Prado, onde meus avós, Pedro e Maria moraram por década e meia no 3º andar, apartamento 5, entre a rua Bernardino de Campos e a rua General Osório.

Lembrei do meu avô, já aposentado, lendo jornal à mesa, era um ritual que exigia silêncio absoluto; havia uma expressão que ele, frequentemente, usava depois de ler os jornais, ele exclamava, ora indignado, ora incrédulo: “a mediocridade viceja”; era sua reação às notícias relacionadas a política local – apenas a sua radical oposição à ditadura militar era mais contundente.

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Ele dizia que Campinas estava condenada a ser uma ‘metrópole de fundo de quintal’, pois, mesmo tendo todos os atributos para ser moderna, multicultural, criativa e criadora, a elite empresarial e política eram mesquinhas e medíocres e assumiam pautas retrogradas. A partir dessas lembranças comento iniciativa dos nossos nobres edis a qual, certamente, seria e catalogada como ‘mediocridade vicejante’ por ele.

Me refiro à criação de uma ‘Frente Parlamentar contra o aborto’. 

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Não sei bem para que serve a tal ‘frente’, pois não conheço ninguém ‘a favor do aborto’.

A meu juízo o aborto é uma triste realidade social e uma questão grave de saúde pública. O fato é que o autor da proposta é um querido amigo, pontepretano e vereador experiente. Jorge Schneider convenceu outros dezenove vereadores a votar a favor da aprovação.

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Penso que sempre cabe o debate responsável, que no caso deveria ser sobre o direito de acesso aos serviços e ações de saúde de qualidade para as mulheres - o que não acontece efetivamente no Brasil, mesmo com o advento de políticas públicas que incluíram a saúde sexual e reprodutiva das mulheres.

Não é propriamente o meu lugar de fala, mas o que a câmara municipal deveria debater, para ao final propor aperfeiçoamento ao sistema de saúde, são os temas como: (a) saúde sexual e reprodutiva; (b) Planejamento familiar, inserido nas Estratégias de Saúde da Família; (c) ações direcionadas à saúde integral da mulher, abrangendo a prevenção da gravidez indesejada, pois é essa gravidez que leva ao aborto induzido. 

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O tema deveria ser planejamento familiar e prevenção da gravidez indesejada e não um debate retrogrado, machista, moralista e distante da realidade; o aborto é uma realidade social e ser ‘contra’ ou ‘a favor’ não mudará essa realidade, o que muda a realidade é conhecer a realidade e, indignando-se com ela, agir para mudar.

Sabe-se que a maioria das vezes, as mulheres em situação de pobreza recorrem ao aborto clandestino como forma de "planejamento familiar", pergunto aos senhores vereadores: onde está a ‘Frente parlamentar a favor do Planejamento’?  

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Do aborto clandestino emerge questão de saúde pública, pois na maioria das vezes, acaba provocando complicações biopsicossociais à mulher e abortar em condições desfavoráveis à saúde é uma violação dos direitos humanos, principalmente para as mulheres com baixo grau de escolaridade, pobres e negras. 

Senhores, sejamos cordatos, no Brasil o aborto é criminalizado na maioria das situações, e disso decorre uma perversidade para com as mulheres, especialmente, às de classe social menos favorecida: o aborto clandestino e inseguro. 

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Recorri a estudo de Karla Ferraz dos Anjos, Vanessa Cruz Santos, Raquel Souzas e Benedito Gonçalves Eugênio sobre os temas aborto, saúde pública e direitos humanos para escrever esse artigo. Lá pelas tantas o texto traz o seguinte: O aborto realizado de maneira insegura, em contextos de ilegalidade, tal qual a situação brasileira, resulta em sérias consequências para a sociedade, pois compromete a saúde da mulher, com elevada morbimortalidade. Além disso, sobrecarrega o sistema de saúde, implica em custos, diminui a produtividade, traz inúmeras repercussões familiares e estigmatiza a mulher”.

O estudo demonstra ainda que o risco à vida para mulheres negras, analfabetas ou semianalfabetas é 2,5 vezes maior do que para mulheres brancas. Esse aspecto estará no escopo de preocupação da frente “do contra”? 

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Em relação às mulheres negras a mortalidade materna em consequência de aborto é 5,5 vezes maior do que na categoria de mulheres brancas. 

Tenho consciência da orientação do Papa Francisco sobre o tema: “O aborto acrescenta-se à dor de muitas mulheres, que agora trazem dentro de si profundas feridas físicas e espirituais, depois de ter cedido às pressões de uma cultura secular que desvaloriza o dom de Deus da sexualidade e o direito à vida dos nascituros.”, mas o aborto é uma das principais causas de morte materna no mundo, e sua maior incidência acontece em países em desenvolvimento, por falta de políticas públicas eficientes de conscientização para a importância do planejamento familiar.

Por isso pergunto: à classe política incumbe enfrentar a realidade ou afirmar os dogmas da sua fé? 

Estima-se que no Brasil ocorram mais de um milhão de abortamentos ao ano. Vulnerabilidades, desigualdades de gênero e de acesso à educação, além das múltiplas dimensões da pobreza, como o déficit de recursos econômicos e a dificuldade de acesso à informação e direitos humanos fazem com que o aborto clandestino e/ou inseguro atinja, especialmente, as mulheres negras, pobres e marginalizadas. Isso é justo?

Nesta perspectiva, a defesa da vida começa pela ampliação da políticas públicas de planejamento familiar e a prevenção da mortalidade materna por aborto depende da existência de serviços de saúde estruturados nos vários níveis de assistência, para garantir atendimento às mulheres.

Não seriam essas as questões a serem debatidas?

Essas são as reflexões.

Pedro Benedito Maciel Neto, 59, advogado e pontepretano; sócio da www.macielneto.adv.br; autor de “Reflexões sobre o Estudo do Direito”, ed. Komedi; foi professor universitário; secretário municipal em Campinas e Sumaré; presidente da COHAB e da Fundação Jose Pedro de Oliveira, sendo atualmente Conselheiro da SANASA S.A. – pedromaciel@macielneto.adv.br

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