"Medida Provisória": afrofuturismo à brasileira
Lázaro Ramos mobiliza ícones importantes em "Medida Provisória". Mas faltou mão firme para tornar o filme consistente e cuidado para driblar suas armadilhas
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Embora se baseie numa peça de 2011 – Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação – Medida Provisória se inspira diretamente no descaminho fascista que o governo e parte da sociedade brasileira tomaram a partir do golpe de 2016. Isso fica claro, inclusive, com a paráfrase da vexaminosa cena da votação do impeachment de Dilma Rousseff no Congresso. Num futuro próximo mas indeterminado, o governo brasileiro recusa-se a pagar reparações financeiras aos afrodescendentes pelos séculos de escravidão e oferece em troca a deportação para a África como "prêmio" de retorno às origens.
A tal medida provisória torna-se, então, uma ferramenta para embranquecer o país. Enquanto as pessoas de "melanina acentuada" são caçadas pela polícia para serem deportadas, a médica Capitu (Taís Araújo), seu marido advogado Antonio (Alfred Enoch, o Dean Thomas da franquia Harry Potter) e o primo deste, André (Seu Jorge), decidem resistir ao cerco isolando-se no apartamento onde moram.
O argumento distópico, bastante interessante, é apresentado com boas ideias como a campanha Resgate-se Já e o surgimento do Ministério da Devolução. Essa introdução, porém, cedo se dilui por uma série de equívocos na caracterização de personagens e na condução da narrativa. O casal se move em cenários e gestual muito estilizados, mais próximos de um pastiche dos blacks chiques de Spike Lee nos anos 1990 que da realidade dominante entre nós. Do outro lado, os brancos racistas são caricaturas unidimensionais como a vizinha que pleiteia cotas para brancos (Renata Sorrah), a inspetora que se queixa de ser "xingada de preta" (Adriana Esteves) ou o ministro que afirma ser "mais barato recolher um cadáver do que enviar essa gente para fora do país".
A intenção de pintar André como um personagem tragicômico tampouco se integra bem ao fio dramático preponderante. A relação do trio principal resulta frouxa e pouco convincente por conta de perfis indecisos e interpretações ora pálidas, ora exacerbadas. Afora a quantidade de diálogos emitidos de maneira pouco inteligível.
Em matéria de direção, Lázaro Ramos e seus assistentes demonstram engenhosidade na decupagem, no trabalho de câmera (fotografia de Adrian Teijido) e na imposição de um ritmo supostamente ágil. No entanto, essa agilidade frequentemente se torna atropelo e anula o impacto potencial de muitas sequências de ação ou tensão.
Quando Capitu foge a uma perseguição e se refugia no Afrobunker, versão hipermoderna de um quilombo, Medida Provisória carimba seu passaporte para o afrofuturismo. Mais uma vez, as promessas se frustram com um aproveitamento superficial das propostas cenográficas. É nesse ambiente que lembra um Teatro Oficina africanizado que se passa a cena mais discutível do filme. Num paralelo bastante infeliz, um personagem negro é atacado e morto na rua enquanto um rapaz branco (de sobrenome Blanco!) é linchado por pretos intolerantes dentro do bunker. Toda a ênfase de luto é colocada em relação ao negro, ao tempo que a morte do branco passa em branco (desculpem o jogo de palavras), sem causar nenhuma comoção ou crise de consciência nos seus algozes.
Medida Provisória procura apoiar-se numa série de referências caras à causa afrobrasileira. A medida governamental leva o número 1888 em alusão ao ano da Abolição da Escravatura, Emicida e a professora Diva Guimarães são coadjuvantes de destaque, Conceição Evaristo aparece numa caminhada alegórica, Elza Soares é ouvida e reverenciada, Capitu cita indiretamente Machado de Assis. Tudo isso depõe a favor do engajamento de Lázaro Ramos na luta pela igualdade racial. Seu filme de estreia como diretor de ficção tem o mérito de mobilizar esses ícones e levar à tela uma hipótese fértil. Pena que não teve mão firme para torná-la consistente, nem cuidado para driblar suas armadilhas.
>> Medida Provisória está no Now.
O trailer:
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