Marrocos, o teatro de striptease no Recife

O aniversário ontem da cidade do Recife me faz republicar o texto sobre o Teatro Marrocos do nosso Dicionário Amoroso do Recife. E a razão chega a ser engraçada. Já observei em outro lugar, e aqui volto a observar, que os jovens não têm a memória da sua cidade porque ninguém lhes fala da realidade humana da terra, e neste passo caminham numa ignorância histórica



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O aniversário ontem da cidade do Recife me faz republicar o texto sobre o Teatro Marrocos do nosso Dicionário Amoroso do Recife. E a razão chega a ser engraçada. Já observei em outro lugar, e aqui volto a observar, que os jovens não têm a memória da sua cidade porque ninguém lhes fala da realidade humana da terra, e neste passo caminham numa ignorância histórica do mundo. 

Explico rápido. Certa vez, eu voltava do Recife Antigo com minha filha e seus amigos, quando passamos na altura do Teatro de Santa Isabel. Esse teatro todos conhecem, ou melhor, todos veem. Então virei o rosto para o outro lado da avenida e apontei; 

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- Ali ficava o Marrocos. 

- Mas continua Marrocos – me respondeu o mais sabido. 

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- Não - eu lhe respondi – esse prédio aí é uma agência da Caixa Econômica. Eu me refiro ao Teatro Marrocos, talvez o único teatro no Brasil a ter espetáculos de striptease. Sabem o que é? É o espetáculo onde a vedete tira a roupa, fica nua lentamente diante do público ao som de música. 

- Sério?! Que massa! Top!

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Então continuo agora, com o que não pude falar nesse dia. Copio o texto que publiquei no Dicionário Amoroso do Recife. 

Ele ficava ali, na vizinhança do Teatro de Santa Isabel, do Palácio da Justiça e do Palácio do Governo, que também chamam de Palácio do Campo das Princesas. Com vizinhos tão nobres, não poderia mesmo sobreviver o Teatro Marrocos. Para os mais jovens e para os de fora, que são uma forma de ser jovem em uma cidade, porque sabem pouco da história do lugar, anoto que o Teatro Marrocos foi a promessa de sexo em um mundo de sexo reprimido no Recife. Isso quer dizer, pelo que os adolescentes viam nos anúncios dos jornais: ali no Marrocos as artistas do corpo tiravam a roupa, faziam um striptease até o clímax do voyeurismo. Antes do ponto culminante, havia peças de teatro de revista com suas vedetes de coxas de dominar toda a vista, que levantavam bem alto as pernas para revelar as curvas desejosas, queridas e carnosas das nádegas. 

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Poderia ser dito que, pela evolução da cena, onde mais adiante haveria a felicidade do strip apoteótico, aquelas nádegas tudo poderiam, baixar o céu, levantar a terra, descer a lua, mudar a rota dos planetas, destruir a Igreja, a moral e os proclamados bons costumes. Nesse espaço de liberdade, de arrasar tudo, é que residia o seu imenso poder de sedução. Pois existe uma tentação mais irresistível que o aceno do proibido? Quando meninos, abríamos os jornais e o anúncio do Teatro Marrocos, da Companhia Barreto Júnior, na mesma página dos filmes do dia, era um espetáculo maior que a epopeia de Cecil B. DeMille. Enquanto se mostrava a imagem de Moisés abrindo o Mar Vermelho no grandioso Os Dez Mandamentos, uma venenosa vedete anunciava que hoje tem Bi-bi-bi no Bó-bó-bó. O que era aquilo? Os meninos seguravam Os Dez Mandamentos, mas imaginavam o verdadeiro fenômeno de abrir o Mar Vemelho: o que podia ser bi-bi-bi no bó-bó-bó? Então somente podia ser tudo, bi-bi-bi era o sexo no melhor bó-bó-bó. Então fechávamos a página do jornal, e de certa maneira, como aconteceria nos anos maduros com a impressão perseguidora de um bom poema, fechávamos a página, mas a imagem do striptease não nos deixava. Impróprio até 18 anos. 

Nas vezes em que íamos ao centro do Recife, à cidade, como se dizia, e passávamos em frente ao Teatro Marrocos, que anunciava o show em tabuletas com estrelinhas do céu em fundo escuro, como se fosse o Gran Circo de Moscou, mal podíamos olhar para o pecado que tanto desejávamos. “Hoje tem Bi-bi-bi no Bó-bó-bó”. E seguíamos o passo, quando o mais humano seria ficar em frente à tabuleta, acariciá-la e lhe dizer “hoje sou o primeiro da fila, sem falta”. Mas seguíamos, vendo o futuro que seria mais tarde. Então os homens, os rapazes maiores, os felizes do tempo entravam nesse futuro. E caíam na perversão gozosa de costumes, do mundo das mulheres nuas. O paraíso, as coxas, o espetáculo era bem pensado. Vinham as vedetes de biquinininhos, um riso aberto nos lábios rubros, encarnados, vermelhos mais acesos que o da maçã no Éden, e soltavam piadas de duplo e triplo sentidos, que se resumiam num só: “Vamos foguetear?. A cama é uma festa. Vamos?”. 

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Ali elas anunciavam as promessas de bem-aventurança, porque depois da Ponte Buarque de Macedo havia as pensões da noite, na Rio Branco, na Marquês de Olinda, na Chantecler, na Bahiana, Iê-Iê-Iê Drinks, que se escrevia com Y, yê-yê-yê. Sabem? Os rapazes tinham o mesmo sentimento dos meninos nas matinês dos domingos, quando o cinema antecedia uma festa de aniversário com bolo e guaraná, um prelúdio da alegria. Então as vedetes no Marrocos anunciavam o vindouro, com a insinuação do pecado real para os homens. Ah, então ela, a suprema, a estrela maior aparecia, às vezes com fogos de artifício, música de banda, e pouco a pouco, em música mudada para o jazz fino feito navalha, ia se despindo, passo a passo, peça a peça, enquanto os rapazes clamavam para ser o céu mais ligeiro. O ruim, ou melhor, o quase ruim do striptease era que ele se dava em gotas para as bocas sequiosas, vorazes, que tudo queriam abarcar. Mas não. Às vezes em música de Henry Mancini, da Pantera Cor de Rosa, ela descia luvas, meias, blusa, e lá no limite dos confins da paciência, exibia o sexo desejado, simples, puro e natural, mas tão desnaturalizado pela repressão e fetiche. Então gritos de bárbaros e batidas de pés, saltos, braços abertos e propostas mais indecorosas e chulas ecoavam. Mas a tantalizadora sorria e fechavam as cortinas. Alheia, a pretendida, como se estivesse surda aos convites dos senhores ricos que lhe jogavam aos pés champanhes, joias, casa, luxos e carro com motorista por algumas noites. 

Assim era. Mas “não sei se eram essas coisas todas não. O espetáculo era até comportado, não tinha nem sombra de pornografia”, falam os que tiveram a graça de frequentar o Teatro Marrocos. Não sei se o leitor me acompanha, mas o Marrocos era bem melhor na imaginação dos meninos que nunca puderam assistir a um só espetáculo. Pois assim foi o Marrocos, igualzinho ao imaginado. O sonho dos meninos é um domínio legítimo da realidade.  

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