Marighella, o filme

A interpretação de Seu Jorge para Marighella é qualquer coisa de extraordinária, e de tal maneira, que nem sentimos a restrição que a direita lhe fez sobre a cor, que seria muito negra para o mulato histórico

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Em 2014, no Recife, tive a honra de participar com Mário Magalhães de um debate sobre “Literatura de guerrilha”. Naquele dia, tivemos a mediação do jornalista  Inácio França. Eu consegui falar sobre ”Soledad no Recife”, enquanto Mário, sobre “Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mudo”. Na ocasião, todos pudemos ver o talento e honestidade de Mario Magalhães ao escrever a biografia do extraordinário guerrilheiro. Assim como soubemos das descobertas da vida do biografado, que não escaparam do trabalho do pesquisador, escritor e jornalista.  Mas não podíamos adivinhar o filme que viria dirigido por Wagner Moura. 

Sete anos depois, vi ontem Marighella no cinema. Diria mesmo, tive a ilusão de revê-lo como um militante apaixonado, pela intimidade clandestina com que o bravo personagem avulta. A interpretação de Seu Jorge para Marighella é qualquer coisa de extraordinária, e de tal maneira, que nem sentimos a restrição que a direita lhe fez sobre a cor, que seria muito negra para o mulato histórico. Ora, o mulato Marighella! Na tela, o mulato é negro, negro, negro, a sua presença. Isso quer dizer, em vez da cor, o que vemos é um homem íntegro, inteiro, da mais valente humanidade. E mais, permitam este alumbramento, que pude notar depois:  o personagem Marighella transborda da tela. Se alguém o procurar para além do retângulo branco, o encontrará, porque não só o guerrilheiro é imenso, mas porque a interpretação de Seu Jorge é grande, não cabe nos estreitos limites da tela do cinema. Buñuel dizia que a cada aparição de Antonio das Mortes no filme de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na terra do sol, que a cada Maurício do Valle na imagem, o genial espanhol queria pular da cadeira no cinema. De modo semelhante, podemos dizer: a cada fala e presença de Seu Jorge, temos vontade de pular da cadeira e gritar “Marighella, presente!”.   

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Já no começo do filme, desce uma conquista sobre o público: para as cenas do assalto a um trem, canta Chico Science a música “Monólogo ao pé do ouvido”, com os versos 

“Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras”

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Olhem a música aqui https://www.youtube.com/watch?v=AkePvxvbrUw 

A partir daí estamos conquistados pelo casamento plástico e musical em um só assalto. Wagner Moura é um senhor diretor. No escuro do cinema, eu não podia parar as imagens para escrever. Nem pedir luz para escrever num caderninho que levei para as emergências. Mas no escuro, ainda assim, escrevi pelo tato, pelo formato imaginado das letras que escreveria, estas anotações: 

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A música e Chico Science no começo 

Seu Jorge como Marighella. Ótimo!

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Fusquinhas e Rural na paisagem.

E com a última frase rascunhada eu quis dizer; carros fusca e rural willys na paisagem, como isso tem um poder detonador da memória da ditadura. Pois numa rural, foi transportado para a morte o Padre Henrique no Recife. Numa rural, existem tantos depoimentos de militantes clandestinos. Aquele veículo era uma estética para os torturadores. E os fuscas estavam presentes na história do Brasil, a transitar da repressão à resistência. Poucas vezes a história dos anos da ditadura aparece tão bem representada no cinema. 

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Para este artigo, pesquisei as notícias sobre o impacto do filme. Elas oscilavam entre o elogio sem ver a produção nas telas e o mais brutal reacionarismo. Entre os extremos, li no G1: “Mesmo cercado de polêmicas e com alguns excessos, é o filme do ano. Pela parte técnica, já seria um filmão, desses que vale a pena ver: tem ação, perseguição, romance, drama e história”. Mas que imparcialidade! É cômico, é tragicômico, que a jornalista fique entre prestar fidelidade ao grupo que a emprega, pois Marighella é da Globo Filmes, e a própria ideologia conservadora. Marighella e o filme do ano, mas...

Quais seriam as polêmicas e excessos, segundo a notícia? Na verdade, a crítica se excede em desconhecimento histórico, como aqui: “O uso da palavra patriota, no entanto, é o que mais chama atenção. Os personagens enchem a boca muitas vezes para dizer que o são. Em uma das cenas, que de fato ocorreu, um guerrilheiro é torturado pela polícia enquanto grita: ‘vocês estão matando um brasileiro’.

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Quem disse isso em desespero antes de ser assassinado em 1969 foi o operário e guerrilheiro Virgílio Gomes da Silva. No filme, ele se tornou Jorge, interpretado lindamente por Jorge Paz. A intenção é clara: resgatar os símbolos nacionalistas da direita e da extrema-direita e reaproximá-los da esquerda”

A jornalista não sabe que os comunistas sempre foram patriotas, que tomaram a frente da defesa da pátria do Vietnã à China e União Soviética, passando pelo significado caro a comunistas como Gregório Bezerra. Gregório, sob espancamento bárbaro a cano de ferro pelo coronel Vilocq nas ruas do Recife em 1964, viveu esta cena: 

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= Diga, bandido, sou um traidor da pátria! – gritou-lhe o coronel na rua. 

Ao que Gregório respondeu: 

- E eu sou um patriota, coronel!

Isto é histórico, o sentido da pátria como a terra do povo, da história da sua gente. Isso é o que move os resistentes em todos os países invadidos. Do Exército Vermelho à França. 

Mas em outros pontos assim continua a “imparcialidade” de quem não viveu a ditadura nem leu sobre o que comenta:   

“Também é declarada a intenção de colocar Carlos Marighella como um herói nacional, muito bondoso, munidos de belos discursos conciliadores. Por fim, há intenção de resgatar a imagem de uma igreja engajada com a luta pela democracia.

São essas intenções claras demais que tornam algumas cenas excessivas e tiram a naturalidade tanto do filme quanto da história real da ditadura militar e suas forças de resistência”.

Mas a Igreja ao lado dos resistentes, dos militantes clandestinos em combate à ditadura, também é histórico, não é criação de roteiro dignificante. Não sei a idade da jornalista, mas ainda que seja tão jovem que acabou de nascer, não é desculpa para o que não sabe. Lembro do que ocorreu comigo em uma serenata em Olinda. Ao pedir a um violonista que tocasse “Nada além” de Custódio Mesquita, ele me respondeu querendo fazer piada: 

- Não o conheço. Não é do meu tempo. 

Ao que eu lhe respondi: 

- Napoleão Bonaparte também não é do meu tempo. Mas eu tenho a obrigação de saber quem ele é. 

Voltando à noite de ontem, no fim da sessão eu fiquei sentado no cinema até as últimas informações técnicas na tela. Paralisado. Sem saber como iria escrever estas linhas hoje. 

reproducao
Foto de Francêsca Calado – o filme na tela do cinema

Mas afinal eu soube, ao me levantar da cadeira. Isto: Marighella é um filme de coragem e arte. Não sei em que medida, em que proporção de mistura. Penso que é fundamentalmente arte. É um mulato negro, negro, negro, como o povo brasileiro. Um filme de arte e coragem. Pois como é possível uma grande arte sem a coragem de enfrentar o fascismo dominante no Brasil? Wagner Moura, Seu Jorge, todo elenco, vocês fizeram isto: Marighella, presente. Bravos!

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