Marco Aurélio, o guardião da Constituição
"A decisão do Ministro Marco Aurélio de libertar todos os presos condenados em segunda instância, entre os quais o ex-presidente Lula, recolocou por algumas horas o Supremo Tribunal Federal novamente como guardião do texto constitucional", diz o colunista Ricardo Bruno. "Nada pode ser mais essencial do que a preservação do texto constitucional. Muito menos a Lava Jato, eivada de abusos em nome de um propósito sedutor – o combate à corrupção – mas nem sempre real"
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A decisão do Ministro Marco Aurélio de libertar todos os presos condenados em segunda instância, entre os quais o ex-presidente Lula, recolocou por algumas horas o Supremo Tribunal Federal novamente como guardião do texto constitucional. Como bem lembrara recentemente o decano Celso de Melo, há constituições que não preveem explicitamente a presunção da inocência, diferentemente da nossa que consagra de este princípio de modo inequívoco. A despeito da clareza, apesar da objetividade do texto, alguns ministros, sem a outorga que somente o voto poderia conferir, resolveram reescrevê-lo de modo a atender aos reclamos de uma sociedade sedenta por condenações exemplares.
Como não têm base popular para alterar a Constituição através de emenda no Congresso, estes setores encontraram na releitura de alguns enunciados constitucionais a saída para fazer valer o punitisvismo puro e simples, desemparado da legalidade. O ministro Marco Aurélio tem se esforçado, em vão, há quase um ano para fazer o Supremo Tribunal Federal reavaliar o tema por conta de três ações diretas de constitucionalidade, que questionam o não cumprimento do artigo 5º, referente à presunção da inocência. A então presidente Carmém Lucia deu de ombros para as súplicas de Marco Aurélio no sentido de que o tema fosse reavaliado. E a despeito da gravidade do caso, preferiu omitir-se a enfrentá-lo de cabeça em pé diante da sociedade brasileira.
Recém-empossado, o presidente Dias Toffoli marcou para abril, durante a quaresma, a análise da questão, deixando o debate irresoluto por mais quatro meses. Acossado por mais de um ano de omissão, Marco Aurélio, como disse, resolveu agir, tomar posição, se manifestar, ainda que em sua deliberação possa ter alguns equívocos a exigir reparos.
Ao fazê-lo, o ministro mostrou que o STF, pela sua importância, pela sua grandeza, pelo seu poder vertical e terminante, não pode se submeter a manobras políticas para fugir ao compromisso de enfrentar as questões que lhe são colocadas pela sociedade. A manipulação da pauta de votações, por exemplo, é uma dessas deploráveis manobras que reduzem e aviltam o papel institucional da Suprema Corte.
O que é comum no Congresso, uma casa essencialmente política, não pode se repetir no STF, pautado por códigos, regimentos supostamente incontroversos. À instituição é dado o direito terminativo de dirimir dúvidas e apontar soluções, sempre à luz do texto constitucional. Quando há incertezas, é natural que os ministros sejam chamados a supera-las. Quando há certezas, contudo, é inconcebível a atuação do STF, não seja para corroborá-las. Se a lei é clara, o parágrafo é incisivo, e o inciso, indubitável, e ainda assim, o Supremo Tribunal Federal decide diferente, há uma nítida usurpação de poder. Na verdade, neste caso a Constituição está sendo reescrita, em ato avesso ao ditame pétreo de que todo o poder emana do povo. E, portanto, somente os parlamentares eleitos poderiam alterá-la.
Pouco convincente também a argumentação dos críticos de Marco Aurélio. Esquecem-se propositalmente do texto constitucional, abandonam a comprovação de sua reiterada tentativa de levar o assunto a plenário e buscam argumentos em hipotéticas possibilidades para chocar e amedrontar. Esgrimem números incomprováveis de que milhares de criminosos, estupradores e corruptos seriam postos na rua caso prevalecesse sua decisão. Usam um estratagema construído no sofisma e deixam de lado o que deveriam defender primeiro: a Constituição. Nada pode ser mais essencial do que a preservação do texto constitucional. Muito menos a Lava Jato, eivada de abusos em nome de um propósito sedutor – o combate à corrupção – mas nem sempre real.
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