Maior herança de dom Paulo é a coragem

"Em 1973, apenas duas semanas depois de ter sido promovido Cardeal por Paulo VI, dom Paulo Evaristo Arns mostrou a que veio: abriu a Catedral da Sé para que se fizesse uma missa em homenagem a Alexandre Vannuchi Leme, estudante assassinado pela ditadura", recorda Paulo Moreira Leite, colunista do 247; para ele, dom Paulo "deixou como herança moral um compromisso irredutível  com os direitos humanos, numa sucessão de gestos de coragem que vão muito além de seu próprio tempo e, espera-se, seja possível preservar no período de risco e ameaça que se avizinha"

Dom Evaristo Arns
Dom Evaristo Arns (Foto: Paulo Moreira Leite)


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  A história do cardeal Paulo Evaristo Arns se confunde de forma tão intensa com a história da lutas democráticas do país que chega a ser difícil distinguir uma da outra. Morto aos 95 anos, dom Paulo teve uma existência a altura da grandeza dos desafios e lutas que o país enfrentou no final do século XX e início do XXI. Compreensivelmente, foi perseguido e atacado por adversários das causas generosas que assumiu e reverenciado e defendido por quem esteve ao lado dos fracos e indefesos nos momentos mais duros da luta contra a ditadura militar de 1964.  Deixou como herança moral um compromisso irredutível com direitos humanos, numa sucessão de gestos de coragem que vão muito além de seu próprio tempo e, espera-se, seja possível preservar no período de risco e ameaça que se avizinha.

 Há diversos momentos significativos nas encruzilhadas em que a biografia de dom Paulo e a história do país se encontraram.  Em outubro de 1970, por decisão do Papa Paulo VI, dom Paulo tornou-se  arcebispo de São Paulo, assumindo o lugar de dom Agnelo Rossi. Para entender o significado integral dessa mudança, basta recordar a atuação de dom Agnelo sublinhada em dois episódios relatados por Carlos Maranhão no recém-lançado livro "Roberto Civita -- O dono da banca." Maranhão recorda que, incomodado com uma edição da revista Realidade que trazia a fotografia de um parto na própria carpa, dom Agnelo agiu pessolmente para impedir a circulação da revista, exercício comum naqueles tempos de ditadura aberta.

  Personalidade que se movia sem atritos pelos circulos do regime que  a Igreja ajudara a instalar com imensas mobilizações de fiéis em 1964, naquele ouubro de 1968 dom Agnelo  só precisou dar um telefonema ao governador de São Paulo, Laudo Natel, para que milhares de exemplares fossem retirados de circulação e destruídos.

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   Um segundo caso foi ainda mais grave. Quando surgiram denúncias de que um grupo de frades dominicanos haviam sido torturados no Departamento de Ordem Política e Social, dom Agnelo chegou a visitá-los no local. Saiu de lá dizendo "à imprensa que não houve tortura," relatou um dos prisioneiros, Frei Betto ao autor do livro, ressaltando que "estavam todos quebrados" quando foram ouvidos por dom Agnelo.

     A partir da nomeação de dom Paulo como Arcebispo, ocorreu uma mudança nos valores e prioridades da Igreja em São Paulo e, em função de uma liderança exercida com firmeza e gestos coerentes, no país inteiro. O primeiro gesto foi exemplar. Dom Paulo pôs à venda o aristocrático palacete da Cúria Metropolitana de São Paulo, sob medida para recepções para ricos, poderosos e influentes que sempre fizeram a opção preferencial da Igreja desde os tempos coloniais, para adquirir terrenos nos bairros pobres de periferia, agora o alvo prioritário de sua mensagem. Num país fechado por botas, fuzis e pela tortura, ele abriu a Igreja para os movimentos populares, as lutas contra a carestia, as oposições sindicais. 

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O ano de 1973, um desses momentos em que a repressão política se encontrava no ponto máximo de violência e criminalidade pura, mas a resistência democrática dava os primeiros sinais claros de vigor e retomada, dom Paulo mostrou uma dignidade exemplar. Duas semanas depois de ter sido promovido a Cardeal por Paulo VI, com direito a brasão e lema, honrarias típicas de nobreza, o novo príncipe da Igreja marcou sua indicação com um gesto de coragem em defesa da condição humana, quando um estudante de Geologia da USP, Alexandre Vannuchi Leme, foi executado no DOI CODI paulista. Procurado por lideranças em construção de um movimento estudantil que dava os primeiros passos para se reerguer após os golpes covardes dos anos anteriores, dom Paulo abriu as escadarias e bancos do maior templo católico da maior cidade brasileira, a Catedral da Sé, para mostrar que os perseguidos e desamparados já não estavam mais sós. Enquanto os jornais reproduziam a versão oficial do regime, dizendo que Alexandre conseguira escapar e morrera atropelado por um caminhão durante a fuga, dom Paulo deixava claro que, com ele, a mentira não valia.

Eu estava lá e lembro de sua voz grave nos dizendo, através dos alto falantes, com palavras que chegam a rua, sobre a maldição de quem ousava tocar no "sangue de seu irmão."

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Foi ali, naquele momento de tragédia e medo, que muitos brasileiros aprenderam uma verdade escondida por séculos de opressão, preconceito e ignorância, e que a partir de então nos acompanharia para sempre, como memória e referência  -- a noção de que os direitos humanos ajudam a formar a democracia como um valor universal, e devem ser reconhecidos em qualquer pessoa, qualquer que seja raça, origem social ou convicção política. Estava ali o embrião de uma força que pouco depois ficaria muito maior. Dois anos mais tarde, diante da tortura e morte de Vladimir Herzog, dom Paulo abriu as portas de seu templo para uma homenagem a um jornalista judeu, gesto que teria um impacto decisivo na derrota da ditadura. Em 1978, quando o presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter esteve no país, com auxílio de um amigo de tantas horas, o reverendo Jaime Wright, o cardeal conseguiu driblar a segurança da ditadura e entregar duas listas de desaparecidos -- brasileiros e argentinos -- ao chefe de governo que firmara um compromisso inédito com direitos humanos. Em março de 1985, quando os poderosos de sempre promoviam uma nova festa de conciliação entre elites verde-amarelas em torno de Tancredo Neves-José Sarney, o Príncipe deu uma contribuição permanente a dignidade nacional com o lançamento de "Brasil Nunca Mais". No mesmo instante em que a ditadura tentava sair de mansinho, com todos os crimes sob o tapete e juras de amor eterno aos novos amigois, o Cardeal dava nova prova de valentia.  Produzido sob sua supervisão direta por um grupo de religiosos, jornalistas e advogados com acesso aos arquivos dos tribunais militares, de onde sairam documentos e provas irrespondíveis, três decadas demais Brasil Nunca Mais permanece com um documento fundamental da história brasileira. Contém fatos e provas que muitos gostariam de esquecer -- mas que a firmeza particular do Cardeal  não permitiu que fossem apagadas. O objetivo era esse mesmo, escreveu ele num prefácio onde fazia questão de  demonstrar um engajamento absoluto pela proteção de garantias e direitos. Nos últimos parágrafos, dom Paulo escreveu: "que ninguém termine a leitura desse livro sem se comprometer, em juramento sagrado com a própria consciência, a engajar-se numa luta sem tréguas, num mutirão se limites, para varrer da face da Terra a prática de torturas."

 

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    Quatro anos depois, tinha curso, a partir da Santa Sé, uma operação brutal, conduzida pelos métodos burocráticos que marcam grandes organizações para esvaziar e destruir uma força que se tornava temível do ponto de vista de ideias conservadoras, em alta dentro e fora da Igreja. Aliado assumido de Ronald Reagan no combate aos regimes comunistas da Europa do Leste, João Paulo II travou uma perseguição implacável, politicamente motivada e especialmente injusta contra a liderança de dom Paulo, cujas convicções humanitárias eram profundas e inegáveis, mas, com exceção de um anti-comunismo interesseiro, com noções típicas Idade da Pedra, jamais poderiam ser classificadas como esquerdistas ou coisa parecida. Usando argumentos administrativos típicos das decisões autoritárias,  que tentaram fugir de um debate político que seria inevitável no caso de uma intervenção direta e clara, o Vaticano esquartejou a arquidiocese de São Paulo. A liderança de dom Paulo foi esvaziada por um longo período em função disso, embora não tinha sido inteiramente silenciada. Em 2002, quando já passara dos 80 anos, o encontrei rezando uma missa em Jaçanã, bairro popular de São Paulo, animado como se tivesse acabado de sair do seminário.

   É certo que parte da herança moral de dom Paulo sobreviveu e se frutificou. Impossível deixar de reconhecer inúmeros pontos de contato entre o que dom Paulo disse e pregou com os sermões de Francisco, papa que se tornou uma liderança universal como a Igreja não possuía. há muito tempo, desempenhando um papel único nos dias que correm.  

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