Lula e a responsabilidade social
A questão da responsabilidade fiscal talvez seja o aspecto que carrega o maior simbolismo desse embate que se dá atualmente nos bastidores da campanha
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À medida que se consolida a expectativa de vitória do ex Presidente Lula nas eleições de outubro próximo, as forças políticas conservadoras e os interesses econômicos esgotam suas últimas tentativas em busca de uma solução diferente. A cada divulgação de pesquisa de opinião reafirmando a tendência que vem se mantendo desde o ano passado, o jogo do xadrez político sofre uma nova reacomodação. Já foi ensaiada a tal da terceira via, com uma série de nomes e balões de ensaio que mal conseguiram se sustentar no páreo por algum tempo. A pouco mais de três do primeiro turno, o nome do momento é o da Senadora Simone Tebet (MDB/MS), mas dificilmente ela conseguirá emplacar sua candidatura como uma alternativa viável à polarização inescapável entre Lula e Bolsonaro.
Pelo caminho tortuoso da opção terceirista já atolaram figuras que vão desde o apresentador global Luciano Huck até seu colega Datena, passando por figuras políticas mais ou menos conhecidas como João Dória, Sérgio Moro, Eduardo Leite, Arthur Virgílio e Luciano Bivar, dentre tantos outros. Pouco a pouco, todos foram sendo obrigados a desistir ou abandonaram o projeto pessoal antes mesmo que a inviabilidade eleitoral se evidenciasse.
Tendo em vista a incapacidade de apresentar alguém com um perfil mais próximo dos interesses das classes dominantes, os setores que se convenceram da desgraça que representaria para o País mais um mandato de quatro anos para o atual ocupante do Palácio do Planalto saem a campo. A estratégia que lhes resta é a de buscar a maior influência possível no programa e na formação da equipe econômica de um eventual terceiro mandato de Lula.
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O bombardeio já começou e se apresentou todos os dias nos espaços dos grandes meios de comunicação. O objetivo é afastar o candidato de seu círculo mais próximo e impedir que a configuração dos planos de governo apresente qualquer semelhança com os esboços de alguma heterodoxia e de uma pitada de desenvolvimentismo. Parecem resignados em ter de aceitar o “sapo barbudo” mais uma vez, mas querem isolá-lo de contatos que consideram contaminados com ideias de populismo e irresponsabilidade da condução da política econômica. Devem se lembrar dos “bons tempos” de Antonio Palocci e Henrique Meirelles, a dupla que começou no Ministério da Fazenda e no Banco Central, respectivamente, em 2003.
O financismo quer isolar Lula.
A disputa pelo coração e pela alma de Lula envolve o questionamento das propostas relativas a temas centrais, a exemplo do teto de gastos, da reforma trabalhista, da responsabilidade fiscal e reforma tributária. O receio em enfrentar os interesses do financismo é e tal ordem que figuras do entorno do candidato terminam por incorporar a defesa dos desejos do próprio sistema financeiro. Em suas declarações públicas, alguns assessores e interlocutores o fazem por convicção mesmo, outros por uma postura amedrontada e recuada frente às reações dos poderosos. Espertamente, Lula evita qualquer manifestação mais assertiva que possa parecer como comprometedora e vai seguindo na campanha.
A questão da responsabilidade fiscal talvez seja o aspecto que carrega o maior simbolismo desse embate que se dá atualmente nos bastidores da campanha e também, cada vez mais, na frente do palco. Porém, a polêmica vem de muito longe. Esse tema sempre foi muito caro aos profissionais e estudiosos que concordavam com as teses que deram suporte teórico, político e ideológico aos mais de 40 anos de hegemonia do pensamento neoliberal pelo planeta afora. Assim, aqui no Brasil houve uma tentativa de esmagamento de todos aqueles que buscávamos denunciar as mazelas causadas pela implementação das medidas de política econômica derivadas de tal visão do mundo e da economia.
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A contraposição às propostas que se apresentavam como alternativas ao conservadorismo do establishment carregava nas tintas de uma suposta demagogia e irresponsabilidade na condução das políticas públicas. No caso brasileiro, a persistência de processos inflacionários ao longo das décadas de 1980/90 e os sucessivos fracassos nos planos de estabilização macroeconômica tornavam ainda mais sensível o debate e dificultava a apresentação, como viáveis, de alternativas que tornassem menos idolatrada a decisão de optar pela solução extremada da austeridade fiscal.
A preocupação com o suposto descontrole da equação nas contas públicas levou a tenhamos hoje 3 regras severas para impedir o aumento endividamento público e dificultar o gasto governamental. Trata-se de medidas que convivem na nossa institucionalidade jurídica e contribuem de forma severa para as nossas dificuldades de superação do estado de letargia e de recessão das atividades econômicas. São elas: i) a regra de ouro; ii) a Lei de Responsabilidade Fiscal; c) o teto de gastos.
As regras da austeridade fiscal são péssimas.
A “regra de ouro” é uma definição que foi inserida no texto da Constituição Federal em 1988, com o objetivo de impedir que o Estado aumentasse sua dívida apenas para realizar despesas correntes. O inciso III do art. 167 estabelece a vedação ao seguinte:
” (…) a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta (…) “
Decifrando o financês, isso significa que o endividamento só pode ocorrer para realização de despesas de capital. Assim, todos aqueles gastos que não sejam os de investimento e similares devem se dar apenas com a cobertura de fontes tributárias, sem que o Estado possa lançar títulos para cobrir despesas com educação, saúde, pessoal e demais. No entanto, como a rigidez da medida dificulta a operação da administração pública em situações extraordinárias, criou-se a gambiarra da referida aprovação de créditos suplementares ou especiais do Orçamento pelo Congresso Nacional, com a finalidade de passar ao largo da proibição.
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A Lei Complementar nº 101/2000 ficou conhecida como a lei de responsabilidade fiscal. Sua aprovação deu-se na sequência de negociações levadas a cabo pela equipe de Fernando Henrique Cardoso com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O Brasil vinha de conseguir um empréstimo do órgão para cobrir dificuldades na área externa e a instituição multilateral exigiu que fossem introduzidas em nossa legislação medidas para acabar com aquilo que eles qualificavam como uma suposta “irresponsabilidade na condução da política fiscal”. A emenda saiu pior do que o soneto e o espírito de vira-lata acabou vingando mais uma vez. O texto aprovado é extremamente rígido nas definições e nos limites para o exercício soberano de nossa política econômica, criando um conjunto de regras e metas a serem cumpridas pelos governos que terminam por engessar as necessidades de melhoria dos serviços públicos e por limitar o raio de ação da política econômica de forma geral.
Data deste momento o compromisso institucional com a geração de superávit primário pelos agentes que estiverem no comando da economia. Assim criou-se o estigma de que a não geração de tais resultados teria o significado de conduta irresponsável na política fiscal, por exemplo. Isso significa que o Estado brasileiro incorporou em sua legislação a priorização das despesas financeiras em relação a todas as demais. Afinal, esse é verdadeiro significado de “superávit primário”. Por meio de tal abordagem, todos os gastos não-financeiros são adjetivados de primários. Assim, para obter um superávit nestas contas é necessário realizar um esforço de compressão de despesas como saúde, educação, previdência, saneamento, segurança, salários e demais. A obtenção do superávit é automaticamente dirigida ao pagamento das despesas ditas “não primárias”, as financeiras. Por meio de tal artimanha, portanto, as despesas com pagamento de juros da dívida pública nunca tiveram nenhum tipo de controle em seu crescimento.
Superávit primário e pagamento de juros.
Nunca é demais lembrar que, desde que passou a ser contabilizado pela Secretaria do Tesouro Nacional em 1997, o montante total relativo ao pagamento de juros da dívida pública acumulou o impressionante volume de R$ 7,5 trilhões até janeiro de 2022. E é preciso pontuar que destes mais de 24 anos, quase 14 foram de governos do PT. Os mandatos de Lula e Dilma foram responsáveis por R$ 4,2 tri desse total. Caso o compromisso prioritário fosse com a responsabilidade social e não com a fiscal, é bem possível que os números fossem outros. Um próximo mandato de Lula não pode continuar nessa toada.
A Emenda Constitucional nº 95 foi aprovada em dezembro de 2016 e completa o ciclo de medidas a serviço da austeridade. Logo apelidada de regra do teto de gastos, ela introduziu na Constituição Federal a mais violenta das rigidezes. Ao criar o eufemismo de um “Novo Regime Fiscal”, o dispositivo nada mais faz senão proibir qualquer tipo de crescimento das despesas públicas por longo 20 anos. Pouco importam as condições da macroeconomia para que essa proibição deva ser obedecida. Os tributos podem ter crescido, as necessidades da população podem ter aumentado, a economia pode estar atravessando uma recessão com necessidades de aumento de gastos para seu enfrentamento adequado. Nada disso reduz o risco de enquadramento do dirigente político em crime de responsabilidade, passível de impeachment.
Ora, esse é o quadro da tempestade perfeita em que nos encontramos desde um bom tempo. Os governos dos países desenvolvidos e as próprias instituições multilaterais já superaram essa visão desde a crise econômico-financeira de 2008/9 e passaram a flexibilizar as exigências de austeridade para seus próprios países. Mas por aqui, os interesses do financismo impedem que tais medidas sejam revistas. A primeira reação justamente vem com a acusação injusta e desonesta de irresponsabilidade e populismo por parte dos proponentes.
A prioridade deve ser “responsabilidade social”.
Lula tem afirmado em diversas ocasiões que chegou a hora de colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Ora, para levar a cabo tal promessa e para recompor o quadro de destruição do Estado e de desmonte de políticas públicas que foi implementado desde 2016, o próximo governo vai ter de romper com a política de austeridade fiscal, tal como foi aplicada ao longo dos últimos anos. Não será apenas com as necessárias medidas de justiça tributária que a administração pública federal vai encontrar os recursos urgentes para recuperar o protagonismo do Estado, para superar a recessão e para colocar o País na trilha do crescimento e do desenvolvimento.
A estratégia para enfrentar o desmantelamento e para suprir as necessidades emergenciais de serviços públicos no curto prazo vai exigir medidas que vão contra essas regras atuais da austeridade fiscal criminosa. O novo governo será obrigado a revogar a emenda do teto de gastos e deverá optar por aumentar o nível de endividamento de forma imediata para conseguir recursos com o intuito de recolocar minimamente as coisas em ordem no País. Não nos esqueçamos dos níveis alarmantes de desemprego e a carência que se generalizou com a miséria crescente por todo o território nacional.
Caso Lula continue a entoar o mantra da responsabilidade fiscal, tal como sugerido por alguns de seus assessores mais próximos, ele não conseguirá enfrentar os duros desafios colocados para seu eventual terceiro mandato. Não adianta seu entorno dizer hoje que Lula foi um cumpridor da responsabilidade fiscal no passado. Os desafios colocados para 2023 são muito distintos daqueles que havia em 2003. Além disso, não devemos, nem de longe, nos inspirar na política de austeridade comandada por Palocci à época para encarar os desafios de hoje.
Já é passada a hora de recolocar o debate nos termos da urgência de um governo que pratique e se comprometa mais com a “responsabilidade social”. Esta deve ser a meta fundamental do próximo quadriênio, devendo-se flexibilizar o que for necessário na política fiscal para que os objetivos centrais do governo sejam atendidos. É preciso romper com a lógica burra de obediência cega aos contratos com o “mercado” e eliminar de uma vez por todas com a forma natural como são encaradas as medidas de penalização dos setores da base de nossa pirâmide da desigualdade, sempre submetidos aos efeitos perversos das políticas de austeridade.
Deixemos que as forças ligadas ao financismo façam a defesa de seus próprios interesses. O movimento popular e as forças progressistas devem se manter na defesa de um programa de governo que rompa com austeridade fiscal, condição necessária para colocar o pobre no orçamento e para pôr em prática as condições com o objetivo da retomada de um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil. Isso significa que o foco do debate é a urgência da responsabilidade social. O resto vem a reboque.
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