Lula do Brasil em uma selva de espelhos

Ainda com problemas jurídicos, e não ousando se projetar como um líder revolucionário, Lula, mesmo assim, não deve jamais ser subestimado

(Foto: Reprodução)


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Uma surpreendente decisão do Supremo Tribunal que, embora ainda não definitiva, devolve os direitos políticos a Lula, atingiu o Brasil como uma bomba semiótica e mergulhou o país em um reality show encenado em uma selva de espelhos partidos.

De início, parecia que três variáveis permaneceriam imutáveis.

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  • Os militares brasileiros comandam o espetáculo - e isso não iria mudar. Eles mantêm um total poder de veto sobre a possibilidade de Lula vir a concorrer a um terceiro mandato como presidente em 2022 - ou ser novamente neutralizado por meio de alguma manobra jurídica no momento em que eles bem entendessem. 
  • O Presidente Bolsonaro - cuja popularidade oscilava em cerca de 44% - teria agora total liberdade para mobilizar todas as cepas da direita contra Lula, com o pleno apoio da classe dominante brasileira.
  • O Ministro da Economia pinochetista Paulo Guedes continuaria a ter rédea solta para destruir por completo o estado, o setor industrial e a sociedade do Brasil em benefício do 0,001%.

Mas então, 48 horas mais tarde, veio o tour-de-force de Lula: um discurso e uma entrevista coletiva que duraram por proustianas três horas - começando com uma longa lista  de agradecimentos na qual, de forma muito significativa, os primeiros nomes foram o presidente da Argentina Alberto Fernández e o Papa Francisco, implicando um futuro eixo estratégico Brasil-Argentina.

Durante essas três horas, Lula deslanchou um magistral ataque preventivo.  Perfeitamente consciente de não estar ainda livre de problemas jurídicos, longe disso, ele não tinha qualquer possibilidade de se projetar como um líder revolucionário. Na complexa matrix brasileira, apenas a evolução dos movimentos sociais poderá, em um futuro distante, criar as condições políticas para alguma possibilidade de revolução radical.

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Lula, portanto, optou pela segunda melhor jogada: ele alterou por completo a narrativa, traçando um contraste nítido com a medonha terra arrasada presidida por Bolsonaro. Ele enfatizou o bem-estar da sociedade brasileira, o papel necessário do estado como fornecedor de serviços sociais e organizador do desenvolvimento, e o imperativo de criar empregos e aumentar a renda das pessoas.

"Quero que as Forças Armadas cuidem da soberania do país", ele ressaltou. A mensagem política para os militares brasileiros - que atualmente são quem dá as cartas na charada política - foi inequívoca.

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Quanto à autonomia do Banco Central, Lula afirmou que o único a lucrar foi o "sistema financeiro". E ele deixou bem claro que o principal cenário em que "devem ter medo de mim" seria no caso de as melhores fatias do Brasil produtivo - como a gigante nacional Petrobrás - serem vendidas por uma ninharia. Ele, assim, se posicionou firmemente contra a sanha privatizadora neoliberal atualmente dominante.

Obama-Biden

Mesmo sabendo que Obama e Biden foram os (silenciosos) supervisores estrangeiros do golpe de lawfare em câmara lenta armado contra a presidenta Dilma Rousseff, entre 2013 e 2016, Lula não pôde se dar ao luxo de confrontar Washington de forma direta. 

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Evitando lançar uma bomba de fragmentação, Lula não mencionou que o então vice-presidente Joe Biden passou três dias no Brasil, em maio de 2013, tendo se encontrado com Dilma para discutir, entre outros assuntos importantes, as fabulosas reservas petrolíferas do pré-sal. Uma semana depois, o primeiro capítulo de uma retumbante revolução colorida brasileira  tomou as ruas.

Lula se esquivou de uma outra bomba de fragmentação potencial quando disse: "Eu tinha a intenção de construir uma moeda forte com a China e a Rússia para não depender do dólar americano. Obama sabia disso".  

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Isso é verdade. Mas Lula poderia ter ressaltado que é muito possível que essa tenha sido a motivação fundamental do golpe - e da destruição de um Brasil emergente, então a sexta maior economia do mundo, e em vias de acumular um vasto capital político por todo o Sul Global.

Lula está longe de estar suficientemente seguro para acusar toda a elaboradíssima operação Obama/Biden/FBI/Departamento de Justiça que criou as condições para a farsa da Operação Lava-Jato - agora totalmente desmascarada. O Deep State dos Estados Unidos está de olho. Observando tudo. Em tempo real. E eles não vão deixar sua neocolônia tropical escapar sem uma briga.

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Mesmo assim, o Show Lula foi um convite encantatório, hipnótico, dirigido a dezenas de milhões de pessoas grudadas a seus smartphones, uma nação terminalmente exausta, horrorizada e enfurecida por uma tragédia de muitas frentes presidida por Bolsonaro.

Daí o inevitável  turbilhão que se seguirá.

O que fazer?

Se for confirmado que Lula está mesmo de volta, ele terá pela frente uma tarefa sisífica. O desemprego está em 21% em nível nacional, e em mais de 30% nas regiões mais pobres do Nordeste. Na faixa de 18-24 anos, ele é de quase 50%. O auxílio emergencial pago pelo governo durante a pandemia foi inicialmente fixado em pouco mais de 100 dólares - enfrentando fortes protestos da oposição. Agora, ele foi reduzido para míseros 64 dólares, enquanto a oposição insiste na manutenção dos 100 dólares que ela, de início, havia rejeitado.

Para 60% da classe trabalhadora brasileira, o salário mensal é menor que o valor do salário mínimo em 2018, que era de cerca de 300 dólares.

Contrastando com esse implacável empobrecimento, frações significativas dos industriais brasileiros gostariam que a orquestra de neoliberalismo pesado de Paulo Guedes continuasse tocando sem qualquer empecilho. O que implica uma hiperexploração em série da força de trabalho e a venda indiscriminada dos bens estatais. Uma grande proporção dos depósitos do pré-sal - em termos das reservas já descobertas - não é mais de propriedade brasileira.

Os militares entregaram de fato a economia do país ao setor financeiro transnacional. O Brasil, literalmente, depende do agro-negócio mercenário para pagar suas contas. Assim que a China alcançar a segurança alimentar, tendo a Rússia como um grande fornecedor, esse arranjo irá se desfazer, e as reservas externas minguarão.

Falar da "desindustrialização" brasileira - como faz a esquerda liberal - não faz o menor sentido, uma vez que os vorazes industriais, eles próprios, apoiam o neoliberalismo e o rentismo.

Acrescente-se a isso uma explosão do narcotráfico como consequência direta do colapso industrial do país, aliado ao que poderia ser definido como a paulatina evangelização ao estilo americano da vida social expressando a anomia predominante, e temos aí o caso mais patente do capitalismo de desastre destroçando uma das grandes economias do Sul Global no século XXI.

Então, o que fazer?

Falta o revólver fumegante

É claro que não há revólver fumegante. Mas todo o jogo de sombras aponta para um acordo. Agora, congregando-se em torno de Lula estão, com exceção dos militares, os mesmos atores que tentaram destruí-lo - aquilo que é chamado de "juristocracia", os poderosos interesses da mídia, a deusa do mercado.

Afinal, Bolsonaro - a encarnação de um projeto militar que vem sendo desenvolvido desde pelo menos 2014 - não é apenas ruim para os negócios: sua inconsequência psicótica é pura e simplesmente perigosa.

Por exemplo, se Brasília excluir a Huawei da 5-G no Brasil, não vai demorar muito para que os mercenários do agronegócio tenham que comer sua própria soja, porque a retaliação chinesa será devastadora. A China é o maior parceiro comercial do Brasil.

Os principais meandros do enredo continuam sem resposta. Por exemplo, se a decisão do Supremo Tribunal - que pode ser revertida - foi tomada apenas para proteger a operação (ou bandidagem) Lava-Jato e seu cripto-superstar ao estilo Elliot Ness hoje totalmente desacreditado, o provinciano juiz Sergio Moro.

Ou se uma nova via crucis judiciária será desencadeada contra Lula, se os responsáveis assim o decidirem. Afinal, o STF é um cartel. Praticamente todos os onze ministros estão comprometidos, em algum grau.

A variável suprema é aquilo que os senhores imperiais realmente desejam. Ninguém dentro do Beltway tem uma resposta conclusiva. O Pentágono quer uma neocolônia - com um mínimo de influência russa e chinesa, ou seja, um BRICS fraturado. Wall Street quer a pilhagem máxima. Do jeito que as coisas andam, tanto o Pentágono quanto Wall Street nunca estiveram tão felizes. 

Obama-Biden 3.0 querem alguma continuidade: o sofisticado projeto aplicado em inícios e meados da década de 2010 para esmagar o Brasil por meio da Guerra Híbrida desencadeada sob seu patrocínio. Mas, agora, esse projeto precisa de uma administração "aceitável": para as lideranças democráticas, Bolsonaro, em todos os níveis, está irremediavelmente ligado a Trump.

Essa, portanto, é a questão crucial a ser observada no longo prazo: Lula/Obama-Biden 3.0.

Pessoas próximas aos militares, em Brasília, estão tecendo a narrativa de que se o Deep State/Wall Street conseguirem o que querem - a China fora do 5-G, aumento da venda de armas, privatização da Eletrobrás, nova política de preços para a Petrobrás - os militares podem, mais uma vez, descartar Lula a qualquer momento.

Sempre em modo negociação, Lula está em ação desde antes da decisão do STF. Em fins de 2020, Kiril Dmitriev, dirigente do Fundo Russo de Investimentos em Desenvolvimento, que financiou a vacina Sputnik V, teve uma reunião com Lula, após ter identificado o ex-presidente como um dos signatários de uma petição de autoria do Prêmio Nobel de Economia Muhammad Yunus propondo que as vacinas contra a covid-19 sejam um bem comum. A reunião foi fortemente incentivada pelo presidente Putin.

Isso acabou por fazer com que dezenas de milhões de doses da Sputnik V fossem disponibilizadas a um grupo de estados do Nordeste brasileiro. Lula desempenhou um papel crucial na negociação. O governo brasileiro, que antes havia se curvado às pesadas pressões dos Estados Unidos para demonizar a Sputnik V, mas que agora se viu confrontado com o desastre da falta de vacinas, foi forçado a embarcar nessa iniciativa, chegando ao ponto de tentar usurpar o crédito.

No pé em que as coisas andam, essa fascinante e frenética telenovela política talvez esteja exibindo todos os sinais de uma operação psicológica misturando artes marciais e luta livre - estrelando alguns caras legais e uma abundância de canalhas.

A casa (militar) gostaria de dar a impressão de que está controlando todas as apostas. Mas Lula - como o consumado praticante da política "flutue como uma borboleta, pique como uma abelha" - não deve jamais ser subestimado.

Assim que o abrandamento da Covid-19 o permitir - em grande medida graças à Sputnik V - o melhor que Lula tem a fazer é pegar a estrada. Soltar nas ruas as sofridas massas trabalhadoras, energizá-las, conversar com elas, ouvir suas queixas. Internacionalizar o drama brasileiro e, ao mesmo tempo, tentar transpor o abismo entre Washington e os BRICS.

E atuar como o verdadeiro líder do Sul Global que ele nunca deixou de ser.

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