Lula calibra discurso e acerta no alvo

"Viagem de Lula marcou uma calibragem do discurso relativo à política externa: num sentido, uma retificação; em outro, uma nova ênfase", diz Aldo Fornazieri

Luiz Inácio Lula da Silva
Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Ricardo Stuckert)


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A viagem de Lula a Roma e a Paris marcou uma calibragem do discurso relativo à política externa em dois sentidos: num sentido, foi uma retificação de posição; em outro, um acréscimo, uma nova ênfase. O aspecto da retificação diz respeito à guerra na Ucrânia e às iniciativas de paz. As posições anteriores que Lula vinha manifestando foram vistas como filo-russas e expressavam um desequilíbrio entre o discurso e a realidade. Aquelas posições diminuíam as chances de Lula de ter um papel relevante nas iniciativas de paz, pois seriam recusadas pela Ucrânia por serem parciais. 

No contexto do encontro com o papa Francisco e nas entrevistas e discursos em Paris, Lula calibrou seu discurso: afirmou que a posição do Brasil é a de condenação da invasão da Ucrânia e ponto. Isto quer dizer: Lula disse que o Brasil se coloca em linha com o direito internacional e com a Carta da ONU, que condenam a invasão de países e a ocupação territorial. Ao restringir suas manifestações a este ponto, Lula assume uma posição de neutralidade. Não emite juízo de valor em relação ao governo da Ucrânia e nem ao regime de Putin. Não busca responsabilizar mais um e menos outro ou equiparar as responsabilidades. 

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A condição fundamental para ter um papel relevante na busca de um caminho para a paz consiste exatamente na abstenção da emissão de juízos de valor acerca das partes em conflito. Consiste também em se abster de dizer o que a Rússia ou a Ucrânia devem ceder ou ganhar. Não é este o papel de um mediador da paz.

O mediador da paz é, fundamentalmente, um facilitador da construção de caminhos e processos de diálogos em busca de soluções dos conflitos e de promoção da paz. E pelo novo tom do discurso parece que é esse o papel que Lula se atribui. Ao assumir este papel, ele terá condições de dialogar tanto com Moscou, quanto com Kiev. Terá condições de atrair outros países para o exercício de uma pressão em favor do início de um processo de paz. Os mediadores facilitam, mas quem deve dizer o que aceita ou não aceita são russos e ucranianos.

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A luta contra a desigualdade e pela igualdade parecia ter sido esquecida pelos deuses e pelos humanos nos fóruns internacionais. No discurso que fez na Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Global, em Paris, Lula foi duro e forte contra esse esquecimento. Esquecimento de uma luta que é das mais antigas das sociedades humanas e que teve poucos avanços até hoje e pouco os terá no futuro se ela não for colocada no centro da ação política e social daqueles que lutam por mudanças no mundo, no sentido da justiça, da igualdade e da liberdade. 

Até as próprias esquerdas abandonaram o discurso pela igualdade, como constatam vários pesquisadores e escritores. Parece que essa palavra perdeu o encanto que tinha no passado. No século XIX a palavra “igualdade” provocava paixões até mais fortes do que as paixões amorosas, observava o pensador liberal Tocqueville. A palavra “igualdade” foi o fermento que fez vicejar as democracias modernas. Foi a luz que mobilizou milhões de pessoas pelas lutas por direitos. Foi o fogo que fez arder os corações de milhões de trabalhadores que lutaram pelo socialismo. 

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Por que a bandeira da igualdade foi esquecida e abandonada? Este abandono expressa o mais veemente atestado de derrota mundial das esquerdas. Sim, porque o mais evidente distintivo da esquerda, o mais claro emblema de sua identidade, é a luta pela igualdade. A igualdade era o valor interdependente com os valores da liberdade e da solidariedade na Revolução Francesa. Norberto Bobbio radicou a distinção entre esquerda e direita no par antinômico igualdade/desigualdade.

Mas se a igualdade, no sentido geral do termo, foi abandonada pelos discursos dos partidos políticos de esquerda, parece que ela se refugiou nas demandas de grupos sociais específicos. Ela aparece como exigência de igualdade de gênero, de raça, igualdade de direitos de diversos grupos específicos. As lutas pela igualdade são lutas fragmentadas levadas adiante pelos movimentos da diversidade. Mas a luta pela igualdade precisa ter um sentido universalizante que deveria ser conferido pelos partidos políticos.

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Foi isso o que Lula fez em Paris: “Não é possível que, numa reunião com tantos países, a palavra desigualdade não apareça”. Chamou a atenção para a realidade de um mundo cada vez mais desigual. Uma desigualdade que aumenta entre ricos e pobres no interior de cada país e uma desigualdade que aumenta em termos globais. 

A luta pela igualdade não deve ser colocada ao lado da luta ambiental. As duas lutas andam entrelaçadas, são inseparáveis. Não há como salvar o planeta sem que se reduzam as desigualdades e a pobreza. Não há como salvar o planeta sem uma redistribuição global das rendas e riquezas, sem equacionar o problema da forma de produzir e da forma de distribuir os alimentos. 

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Lula fez uma dura cobrança aos países ricos. Os ricos precisam ser cobrados em suas responsabilidades quanto ao clima e quanto às desigualdades. Não dá para ser ambientalista sem combater as desigualdades e o combate às desigualdades precisa enfrentar a questão do clima.

A luta interna no combate às desigualdades precisa ter um eixo central na política tributária. Os programas sociais compensatórios, embora necessários, não têm a força para reduzir as desigualdades de forma alargada e perene. O Brasil precisa acabar com o sistema tributário regressivo, substituindo-o por um progressivo. O Brasil precisa acabar com os privilégios públicos que saqueiam os recursos. O Brasil precisa democratizar o orçamento para que ele seja universalizado e não privatizado pelos grupos de interesse que cercam os parlamentares e o poder Executivo. 

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Os governos de esquerda precisam identificar um conjunto de reformas e um conjunto de políticas públicas orientadas no sentido de menos igualdade para mais igualdade. Esta deve ser a marca distintiva dos governos de esquerda na América Latina – a região mais desigual do mundo. Somente reformas e políticas públicas que tenham este sentido serão capazes de criar uma nova identidade das esquerdas na América Latina num momento em que as distinções entre esquerda e centro-esquerda, de um lado, e direita liberal, de outro, estão bastante diluídas.

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