Literatura e Memória Política no Recife
O escritor é obrigado a ser a memória que dá continuidade à história, que mostra a vocês, que mostra para mim mesmo quando escrevo, de onde nós viemos. E quando nós procuramos saber de onde nós viemos, terminamos por saber quem somos
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Nesta sexta-feira, tentarei falar na Bienal do Livro de Pernambuco sobre o tema “Literatura e Memória – A ditadura no Recife”. A partir das 13 horas, no auditório Círculo das Ideias.
Como veem, tenho que cuidar da palestra daqui a pouco e tenho que escrever ao mesmo tempo a coluna. É muito difícil. Então a saída é recuperar as palavras que falei para estudantes na Escola Técnica da Encruzilhada, no aniversário da Anistia. Elas têm a ver com o tema da fala na bienal às 13 horas. Acompanhem as próximas linhas, por favor. A fala aos estudantes foi esta.
Eu sempre procuro retomar a memória política do Recife quando escrevo. E, seguramente, eu não faço isso como uma coisa planejada, digamos assim, como um projeto prévio. Não. Desde o meu primeiro romance, “Os corações futuristas”, e depois com “Soledad no Recife, mais adiante com “O filho renegado de Deus”, e no mais recente, “A mais longa duração da juventude”, essa é a minha caminhada na literatura. Quero dizer, nesses livros que tenho escrito, procuro retomar a nossa juventude, a nossa adolescência, quando nós tínhamos a idade de vocês, quando éramos alunos iguais a vocês, de farda e angustiados.
Existe um fato, que já disse inclusive à filha de Soledad Barrett: existe um livro que me segue e me força a dar continuidade a ele e vai para onde eu for: é o livro “Soledad no Recife”. Quando eu penso que não, que estou liberado, vem uma ou outra pessoa me dizer: “Olha, em Soledad no Recife você escreveu aquilo...”.
No projeto mais ambicioso de romance, “A mais longa duração da juventude”, eu retomo a pessoa de Soledad Barrett como personagem, a partir de depoimentos de pessoas que a viram e viveram com ela. Nele, utilizo momentos da encenação do monólogo belíssimo sobre Soledad, que o talento da atriz Hilda Torres levou para o teatro. E levo às páginas do romance também a pessoa da filha única de Soledad, Ñasaindy Barrett. Então elas vêm para o romance “A mais longa duração da juventude”, porque é chamada de volta a pessoa de Soledad, quando narro aqueles anos terríveis de pesadelo que nós vivemos.
Há uma hora, quando eu vinha de ônibus para esta escola, eu vinha refletindo, olhando as ruas, os prédios, e comentei com a minha esposa: “Olhe, aqui era um colégio onde nós tínhamos um centro cultural, aqui perto deste colégio, no bairro de Campo Grande, nós nos encontrávamos”. E eu venho notando, e este é o salto da observação do ônibus e de quando eu ando pelas ruas do Recife: a função do escritor termina sendo o de fazer falar a memória. Percebem? Se a gente não fala essa memória, ela se perde. Vocês, estudantes, não têm essa memória da ditadura no Recife. É impossível que vocês tenham, até em razão da idade. E, pior: não há uma continuidade da experiência histórica na escola, nem nos livros didáticos, e muito menos na televisão, no rádio, nos meios de comunicação. Não há.
Ainda há pouco, quando eu publiquei lá no Face de Bruno Albertim um trecho de artigo que escrevi sobre o artista Tonfil, que além de cantor é um escultor que faz grande trabalho com esculturas das mãos que seriam dos escravos em Pernambuco, que ele põe como a representação do trabalho dos escravos, eu observei: os mais jovens não sabem o quanto era difícil ter fotos. Na era do selfie, a coisa mais comum do mundo é tirar uma foto. Hoje, se perdeu completamente a noção de que, na minha infância por exemplo, os pobres só tinham o direito à foto, e quando tinham esse privilégio, no dia do aniversário. Quando podiam.
Quero dizer, há uma larga vida no passado sem fotografia. E sem registro. Então o escritor é obrigado a ser a memória que dá continuidade à história, que mostra a vocês, que mostra para mim mesmo quando escrevo, de onde nós viemos. E quando nós procuramos saber de onde nós viemos, terminamos por saber quem somos. Por mais modernos, por mais jovens que vocês estejam, vocês falam a língua portuguesa. E esta língua não nasceu agora. Ela veio antes de vocês, bem antes de mim, ela veio bem antes dos nossos avós... Isto é, nós temos ao falar o português uma continuidade da história da qual não temos consciência. E o escritor está chamado a revelar a história com esta língua, que em si é memória também. E se torna a consciência expressa para todos.
Então é este o princípio do meu trabalho: procurar falar dessa história, da belíssima cidade do Recife, da imortal cidade do Recife, a partir das pessoas deste lugar, e dos seus personagens. Entre eles está Soledad Barrett, que entregou a própria vida e juventude aqui na cidade do Recife.
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