Lição de literatura

Nesta quarentena, autores fundamentais são bem-vindos e necessários. Aliás, eles são os que nos recebem e nos perguntam de forma carinhosa ou severa: “Por que andaste tanto tempo longe de mim?”. Por isso voltamos, e por isso estamos felizes pela volta. É como um novo despertar



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Sem qualquer dúvida, sei que não sou pessoa indicada para ministrar lições de literatura, ora, lições, não sou nem mesmo qualificado para indicar leituras essenciais, daquelas que não poderíamos deixar de conhecer, sob pena de vagar nas trevas da ignorância. 

Mas sinto ao mesmo tempo que tenho o dever de socializar uma alegria, uma tristeza, uma luz ou luzes, para que não fiquem só minhas.  Esse é o motivo pelo qual divido com vocês esta pequena indicação: li pela terceira vez o conto “O despertar” do magnífico Isaac Bábel, e o resultado é um encanto contínuo, assim como nos poemas que revisitamos e sempre vem a descoberta de novos sentimentos. Para falar bem ponderado, digo que “O despertar” é um belo conto. E por quê?

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Já no primeiro parágrafo o autor nos fala, na tradução de Nivaldo dos Santos: 

“Todas as pessoas do nosso círculo – corretores, lojistas, funcionários de banco e cantores de funeral – ensinavam música a seus filhos. Sem ter perspectivas para si mesmos, nossos pais inventaram essa loteria. Eles a ergueram sobre os ossos dos pequenos. Odessa foi envolvida por essa loucura mais do que as outras cidades. E, na verdade, ao longo de décadas a nossa cidade forneceu crianças-prodígio para os palcos de todo o mundo. De Odessa saíram Mischa Elman, Zimbalist e Gabrílovitch, e ali começou Jascha Heifetz”. (Negrito meu)

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Notem que já no primeiro parágrafo Isaac Bábel nos derruba com uma lição de realidade. Para narrar uma história ao que tudo indica autobiográfica (e pouco importa se é ou não um retrato da sua vida), de imediato vem uma lição de realidade, na medida em que ele integra ao conto a história da própria cidade e dos gênios precoces que ela gerou. Que lição para os “grandes imaginosos”, para os fantasistas que posam de donos de uma imaginação vasta e sublime. Que lição!

No desenvolvimento do conto vem a exposição do método férreo, pesado, de formação de crianças miúdas e franzinas para a música. Não cometerei spoiler, nem mesmo para mostrar um momento altíssimo de terror da criança que narra o conto quando adulto. 

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Ele está no livro “Clássicos do conto russo”, da Editora 34. Nesse livro estão feras em momentos geniais da literatura, e cito só alguns sobre os quais em outra oportunidade terei de falar: Gógol, Turguêniev, Dostoiévski, Tolstói nos magistrais “De quanta terra precisa um homem?” e “Senhor e servo”, Tchekhóv no extraordinário “Um caso clínico”, Górki apaixonado em “Sobre o primeiro amor” e “Vinte e seis uma”, Isaac Bábel.... Como diante de tanta beleza resolvi lembrar o conto “O despertar”? - Foi só pela lição de literatura, que descobri a ferros: a melhor imaginação é a memória. A melhor técnica é a expressão da verdade. 

Nesta quarentena, autores fundamentais são bem-vindos e necessários. Aliás, eles são os que nos recebem e nos perguntam de forma carinhosa ou severa: “Por que andaste tanto tempo longe de mim?”. Por isso voltamos, e por isso estamos felizes pela volta. É como um novo despertar. 

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