Lição da guerra contra o aedes egypt

"O fato de São Paulo concentrar metade dos casos de dengue do país pode modificar a luta contra o aedes egypt, transmissor de várias doenças, muito mais graves, até. No início do século passado, a febre amarela só foi combatida para valer quando chegou ao Rio de Janeiro, ameaçando a riqueza gerada pelas exportações de café", afirma Paulo Moreira Leite; em entrevista ao programa Espaço Público, o professor Marcos Boulos explica que as epidemias só costumam ser enfrentadas quando atingem grandes "interesses econômicos"

"O fato de São Paulo concentrar metade dos casos de dengue do país pode modificar a luta contra o aedes egypt, transmissor de várias doenças, muito mais graves, até. No início do século passado, a febre amarela só foi combatida para valer quando chegou ao Rio de Janeiro, ameaçando a riqueza gerada pelas exportações de café", afirma Paulo Moreira Leite; em entrevista ao programa Espaço Público, o professor Marcos Boulos explica que as epidemias só costumam ser enfrentadas quando atingem grandes "interesses econômicos"
"O fato de São Paulo concentrar metade dos casos de dengue do país pode modificar a luta contra o aedes egypt, transmissor de várias doenças, muito mais graves, até. No início do século passado, a febre amarela só foi combatida para valer quando chegou ao Rio de Janeiro, ameaçando a riqueza gerada pelas exportações de café", afirma Paulo Moreira Leite; em entrevista ao programa Espaço Público, o professor Marcos Boulos explica que as epidemias só costumam ser enfrentadas quando atingem grandes "interesses econômicos" (Foto: Paulo Moreira Leite)


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A leitura do primeiro volume do Diário da Presidência, de Fernando Henrique Cardoso, contém lembranças reveladoras sobre a tragédia atual de nossa saúde pública, que em 2016 pode se transformar na mais grave de nossa história -- as doenças transmitidas pelo aedes egypt, muito mais preocupantes e ameaçadoras do que a mais conhecida delas, a dengue. 

Pelo Diário, descobre-se que em 1996, há exatamente 20 anos, já se falava sobre a importância de dar combate ao aedes egypt. Recordando um jantar em companhia do ministro da Saúde Adib Jatene, Fernando Henrique conta que a pauta da conversa envolveu a necessidade de se organizar "um forte combate ao mosquito da dengue. Pareceu-me uma coisa de vulto e que tem um sentido social, porque é saneamento."

No mesmo parágrafo, Fernando Henrique recorda que compareceu a um encontro de jovens filiados ao PPB, o partido de Paulo Maluf que integrava a base aliada de seu governo. Ali, dedicou-se a "falar dessa campanha da dengue. Já comecei a fazer propaganda, como é do meu estilo, mostrar com clareza as coisas do país."

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O tudo e o nada pode ser visto nas décadas seguintes, quando FHC terminou o primeiro e o segundo mandato, depois foi substituído por Luiz Inácio Lula da Silva e, este, por Dilma Rousseff. O que se vê por estes dias ajuda a "mostrar com clareza as coisas do país."

Em 30 anos, o aedes egypt cresceu e se multiplicou várias vezes sem ser combatido de forma efetiva. Tornou-se um elemento constante da paisagem urbana brasileira, tão previsível que já não chamava a atenção das autoridades nem dos jornalistas. Até que, em anos recentes, comprovou-se que o aedes egypt é capaz de transmitir doenças como a febre chicungunya, que pode durar meses e provocar dores insuportáveis nas articulações. Também está associado à transmissão da síndrome Guillan-Barré, que provoca paralisias graves, inclusive do sistema respiratório.

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Embora faltem dados conclusivos, a maioria dos pesquisadores envolvidos com uma epidemia de microcefalia em recém-nascidos -- mais de 3000 casos registrados no Brasil, coisa nunca vista em qualquer lugar do mundo, em qualquer época -- tem poucas dúvidas de que é possível associar o mosquito a uma doença que pode causar sequelas incuráveis em suas pequenas vítimas.

Entrevistado ontem à noite no programa Espaço Público, da TV Brasil, que em breve estará disponível no youtube, o professor Marcos Boulos, um dos principais infectologistas do país, fez diversas observações relevantes. A entrevista é uma aula ministrada com a clareza de quem domina o assunto e não tem dificuldade de expor dúvidas e perplexidades.

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Também há lugar para certezas. A principal neste caso é a seguinte. Para o professor, as epidemias só costumam ser enfrentadas e vencidas quando "há um interesse econômico."

Dedicado a moléstias tropicais e doenças infecciosas desde 1972, quando se diplomou, Boulos fez uma longa carreira acadêmica na Universidade de São Paulo e hoje coordena, na Secretaria de Saúde do Estado, os esforços para combater o aedes egypt e as doenças associadas.  Seu argumento lembra velhas teses deterministas do século XIX . Podem parecer simplórias na visão de determinados observadores. Mas no caso brasileiro, a visão faz muito sentido e se demonstra pela experiência histórica.

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Boulos recordou no programa  que o país só erradicou a febre amarela -- transmitida pelo mesmo aedes egypt -- porque a doença chegou ao Rio de Janeiro, colocando em risco a sobrevivência de uma sociedade que dependia do plantio, compra e venda de café, em torno do qual se construía a maior fatia da riqueza do país e se organizavam as grandes fortunas. Naquele início do século XX, a doença saíra dos bairros pobres, das senzalas, dos cortiços e ambientes sem qualquer amparo, para chegar ao mundo dos ricos. Era economia e também sociologia, na verdade.

Numa demonstração do caráter radical atingido pela campanha de Oswaldo Cruz -- e que refletia a necessidade da dar uma resposta a altura da situação -- as autoridades não só combatiam o mosquito, mas invadiam casas e vacinavam cidadãos à força, gerando a célebre Revolta da Vacina, recorda o professor. O cuidado se compreende. 

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Nas grandes epidemias, ninguém está inteiramente a salvo, mesmo aqueles que, em tempos normais, têm direito a uma proteção mais segura e a um atendimento rápido e em geral eficaz, nos raros casos em que isso se faz necessário.  Com a sabedoria que o longo convívio com moléstias  graves ajuda a consolidar, Marcos Boulos deixou claro que a morte de uma filha, vítima de febre amarela, deu motivos até pessoais para Rodrigues Alves, presidente da República, a empenhar-se a fundo na guerra contra a doença.

Se esta visão está correta, pode-se imaginar -- esta parte da análise é minha -- que a anunciada mobilização contra o Aedes Egypt de vários escalões do Estado brasileiro, do governo federal às prefeituras, passando também pelos governos estaduais,  ocorre com um atraso de anos, talvez décadas, mas tem boas chances de produzir bons resultados até o final de 2016.

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Isso porque pela primeira vez o mosquito chegou a São Paulo, Estado que pode ser definido como o Rio de Janeiro do século XXI. Concentra o verdadeiro poder econômico -- e grande parte do poder político real. É a maior economia, o centro financeiro e tecnológico, o principal mercado de tudo.

Em 2016 São Paulo também concentra mais da metade dos casos de dengue, que cresceram 160% entre 2014 e 2015. O número relativo de vítimas fatais é ainda maior, desproporcional: 70%. Embora ainda não tenha sido registrado  um número significativo de casos de febre chicungunya nem de microcefalia, mais comuns em outras regiões, é razoável imaginar que cedo ou tarde  eles irão ocorrer, num mundo de viagens intensas e frequentes.

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Desde dezembro de 2007, quando o PSDB e o DEM recusaram quatro votos que poderiam permitir um reforço de até R$ 36 bilhões para a Saúde através da CPMF -- criada pelo mesmo Adib Jatene do jantar de 1996 com Fernando Henrique -- a elite de São Paulo se mostrou a principal peça de resistência a iniciativas dessa natureza.

Costuma promover campanhas permanentes contra  toda proposta capaz de representar um reforço a medidas destinadas a proteger o bem-estar da população, a começar pelo projeto de restabelecer a própria CPMF. Outro cuidado é impedir uma reforma tributária que eleve a contribuição dos mais ricos e poupe a classe média. Através de publicidade nos jornais, tenta-se estigmatizar parlamentares que lutam por propostas progressivas.

É como se o Estado mais rico pudesse ser autossuficiente e isolar-se em si mesmo.

O quadro atual mostra uma situação com problemas agravados, mais difíceis de serem enfrentados em função de decisões erradas e, quando certas, tomadas com atraso. Desfalcada de verbas,  a saúde pública não oferece sequer o "interesse econômico" capaz de motivar investimentos na proteção da população. Sem um "mercado consumidor", como produzir pelo menos repelentes eficazes, urgentes, em quantidade necessária?

O aedes egypt e toda as tragédias que ele produz mostra a ilusão dessa visão. Cabe lamentar a dor e sofrimento que essa situação provoca, com perdas irreparáveis. Mas é possível  reconhecer que ela pode trazer um aprendizado útil a todos.

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